Witzel, com seu trompete, nos anos 1970: o governador e o presidente hoje se acusam mutuamente de manipular a polícia, mas, quando aliados, tentaram juntos derrubar o chefe da PF no Rio CREDITO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
A solidão de rambo
Suspeitas de corrupção e conluio com as milícias desmontam Wilson Witzel
Allan de Abreu | Edição 166, Julho 2020
Ao receber a notícia de que seu impeachment tomava corpo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC) passou a enfrentar a mesma desorientação daquele verão longínquo quando se perdeu no meio do mato. Tinha 23 anos e acabara de chegar à Zona da Mata de Minas Gerais, onde o Batalhão de Artilharia do Corpo de Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro faria um exercício militar que o jovem segundo-tenente adorava: simular um combate na selva. Seus superiores o chamavam de “tenente Uítzel”, mas, entre os praças, seu apelido era “Rambo”, pelo seu hábito de levar uma faca presa na panturrilha. Seriam quatro dias exaustivos e excitantes, mas o tenente, encarregado de liderar um dos grupos, saiu de lá enlameado e humilhado, e no ano seguinte sua carreira militar estava encerrada.
No segundo dia dos exercícios, a equipe de Witzel deparou com uma encruzilhada. Nessas circunstâncias, o manual militar prevê que o líder escolha uma entre duas alternativas: ou a equipe se divide em dois grupos para que cada um vá numa direção, ou todos seguem um mesmo caminho. Witzel, porém, tomou uma decisão heterodoxa. “Vocês todos vão para aquele lado, e eu vou sozinho por esse aqui”, disse, segundo a recordação de um dos colegas, que hoje trabalha em Brasília e não quer ser identificado para não se atritar com o governo. Horas depois, os onze integrantes do grupo chegaram de volta ao acampamento dos fuzileiros, mas o tenente estava sumido. Passou-se um dia, e nada de Witzel aparecer. O churrasco que deveria encerrar o exercício militar foi cancelado.
O capitão de fragata Renato Lins Furtado, comandante dos fuzileiros, já cogitava mandar toda a tropa de volta para o Rio de Janeiro e providenciar uma operação de busca e salvamento, quando, no segundo dia de espera, o tenente Witzel surgiu no horizonte. Estava cansado, coberto de lama, com fome e o semblante assustado. Chegou explicando-se: “Escorreguei num barranco e minha pistola saiu do coldre. Fui procurá-la e me perdi.” O comandante Furtado estava furioso, pois tudo começara com a decisão errada na encruzilhada, e esbravejou: “Uítzel, quando chegarmos ao quartel, vou comer a sua bunda!”
Pouco tempo depois, em julho de 1992, quando seu contrato de três anos expirou, o tenente Wilson José Witzel foi dispensado da Marinha. Seus serviços militares, nas regras que disciplinam os oficiais do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), poderiam ter sido estendidos por mais cinco anos – era o que Witzel desejava. Como sonhava em seguir a carreira militar, a demissão precoce marcou sua vida. Casado havia dois meses com uma capitã da Marinha, Sônia de Souza Marques, doze anos mais velha, Witzel ficou sem rumo. “Ele sempre gostou muito dos símbolos militares, do modo de vida militar”, disse um parente próximo, que não quer ser identificado para não abalar sua boa relação com o governador. “Por isso, deixar a Marinha causou nele uma frustração imensa, que ele só conseguiu superar de alguma maneira quando entrou para a política.”
Até reunir seu apoio eleitoral decisivo – da família Bolsonaro e das milícias –, Witzel bateu em muitas portas. Quando começou a pensar em trocar a magistratura pela política, procurou a cúpula do MDB. Na época, ele presidia a Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (Ajuferjes). Com esse cartão de visitas, teve encontros com o ex-governador Sérgio Cabral, com seu sucessor Luiz Fernando Pezão e com o presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani – todos hoje varridos do mapa político pela Operação Lava Jato. Os contatos não prosperaram como Witzel pretendia, mas renderam-lhe uma aproximação com o empresário Mário Peixoto, íntimo dos caciques do MDB fluminense e dono de contratos fabulosos com o governo estadual, que somavam mais de 1 bilhão de reais.
Sem sucesso com a turma do MDB, Witzel recorreu a uma figura que conhecera em Brasília, quando presidia a Ajuferjes: o pastor evangélico Everaldo Dias Pereira, presidente do PSC, que lhe abriu as portas do partido para abrigar a candidatura ao governo do Rio. Em março de 2017, Witzel filiou-se ao PSC e, onze meses depois, deixou a magistratura. “O pastor Everaldo anteviu que a figura do juiz de direito teria muita projeção naquela disputa eleitoral, por causa da Lava Jato e do juiz Sergio Moro. Por isso, acreditou no Witzel”, disse um integrante da campanha do governador. Na época, a opção de associar-se à família Bolsonaro nem era cogitada. Ao contrário. Como na década de 1990 até tentou filiar-se ao PSDB (mas foi barrado pelo tucanato), Witzel ensaiou apoiar Ciro Gomes, então pré-candidato presidencial pelo PDT.
No início de 2018, Witzel encontrou-se com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Propôs ser candidato a vice numa eventual chapa com o ex-prefeito Cesar Maia, pai de Rodrigo. O presidente da Câmara não lhe deu bola. (Depois da eleição, o DEM de Rodrigo Maia aderiu ao governo Witzel: comanda uma secretaria, a de Infraestrutura e Obras, e uma autarquia, a Imprensa Oficial.)
Witzel não desanimou, pelo contrário: exalava autoconfiança e já se imaginava como cabeça de chapa. Conseguiu uma planta baixa do Palácio das Laranjeiras, residência oficial do governador fluminense, e marcou a caneta o quarto que cada membro da família ocuparia. Em busca de apoio, procurou até o ex-prefeito Eduardo Paes, que viria a ser seu adversário na eleição de outubro, e o ex-governador Anthony Garotinho, que se encontrava solto, entre uma prisão e outra. Não conseguiu nada e continuou candidato de si mesmo. No dia 20 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, uma pesquisa do Ibope mostrava que Witzel tinha 1% das intenções de voto. No dia 19 de setembro, a vinte dias da eleição, outra pesquisa do Ibope informava que o ex-juiz agora tinha 2% dos votos. Com seu candidato naufragando, o PSC resolveu contratar a Agência Yxe de Comunicação e Eventos, empresa de marketing digital que pertence a Gutemberg de Paula Fonseca, um ex-árbitro de futebol.
Apesar dos péssimos números de Witzel, Fonseca achou que havia ali um grande potencial e procurou Flavio Bolsonaro, então candidato ao Senado, seu conhecido de outras campanhas. “Eu disse ao Flavio que o perfil do candidato Witzel era o melhor para ele se associar: ex-juiz, ex-militar. Tinha tudo a ver com os Bolsonaro”, contou ele, em conversa com a piauí numa tarde de janeiro. Flavio gostou da ideia. Em fevereiro de 2017, recebera a visita de Witzel em seu gabinete, mas nunca mais o vira. Fez então uma reunião com Witzel e aprovou a aliança. Concordava que um juiz de passado militar tinha tudo para dar certo. Fechado o acordo, Flavio, então candidato ao Senado, começou a levar Witzel em seus atos de campanha. Neles, o ex-juiz distribuía folhetos em que aparecia ao lado do presidenciável Jair Bolsonaro e do próprio Flavio.
O marketing digital da campanha de Witzel criou então cerca de 850 grupos no WhatsApp para divulgar vídeos e mensagens do candidato. Intensificaram-se as entradas ao vivo no Facebook e no Instagram. Witzel adotou as camisetas amarelas, passou a incentivar a abertura de escolas militares e prometer “defesa jurídica” a policiais que matassem em confronto. No domingo anterior ao primeiro turno, participou do ato em que dois bolsonaristas partiram uma placa de rua simbólica, que levava o nome da vereadora assassinada Marielle Franco. Um dos presentes, Rodrigo Amorim, candidato a deputado estadual pelo PSL que também atuara na aproximação do ex-juiz com Flavio, festejou em bolsonarês castiço: “A gente vai varrer esses vagabundos. Acabou Psol, acabou PCdoB, acabou essa porra aqui. Agora é Bolsonaro, porra”, disse. Enquanto a plateia vibrava ao fundo da imagem, Witzel, que filmava tudo com o celular, virou o aparelho para a sua direção e declarou: “É isso aí, pessoal, olha a resposta.” (Semanas mais tarde, Witzel pediu desculpas à família de Marielle. Com 140 666 votos, Amorim foi o deputado mais votado do Rio de Janeiro.)
Com o apoio dos bolsonaristas, incluindo milicianos, Witzel começou a crescer nas pesquisas. No dia 25 de setembro, duas semanas antes do primeiro turno, tinha entre 4% e 7% dos votos. No dia 3 de outubro, a quatro dias da votação, oscilava entre 7% e 9%. Fonseca decidiu então acionar nas redes sociais cerca de 200 mil robôs – ou “equipamentos de inteligência artificial”, nas suas palavras. Ao mesmo tempo, simpatizantes de Witzel conseguiram o apoio da Igreja Universal do Reino de Deus. A dois dias da votação, pastores da igreja receberam quatro picapes carregadas de material de campanha e distribuíram a propaganda em 350 templos no estado. A milícia também mostrou serviço. Em Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, os paramilitares contrataram moradores locais para agitarem bandeiras e distribuírem santinhos de Witzel e Bolsonaro. Na véspera da votação, Witzel tinha cerca de 14% das intenções de voto. Abertas as urnas, explodira: teve 41,28% dos votos.
No segundo turno, que disputou contra Eduardo Paes, Witzel deu um passeio. Elegeu-se com 59,87% dos votos válidos. Ganhou em 89 dos 92 municípios do Rio, mas perdeu na capital.
Quando foi dispensado pela Marinha, em 1992, Wilson Witzel começou a dar aulas de informática para crianças, entrou no curso de direito do Instituto Metodista Bennett e dedicou-se a fazer concursos públicos. Passou para analista do Instituto de Previdência do Município do Rio de Janeiro (Previ-Rio), cargo que exerceu de 1994 a 1998. Diplomado em direito, foi aprovado para defensor público e trabalhou como tal de 1998 até 2001, quando passou no concurso para juiz federal, profissão que abraçou por dezessete anos. Foi juiz na cidade do Rio de Janeiro, em Itaperuna, no interior do estado, em Vitória, no Espírito Santo, e em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Durante alguns anos, combinou a carreira de juiz com a de professor de direito em universidades públicas e particulares no Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu e em Vila Velha, Espírito Santo.
Como professor, era sofrível. Faltava demais e nem sempre tinha se preparado para o assunto do dia. “Por duas vezes, ele usou servidores da Justiça Federal para nos aplicar prova”, disse um ex-aluno, hoje advogado, que pediu o anonimato para evitar prejuízos ao seu escritório de advocacia em decisões judiciais, área em que o governador preserva certa influência. Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), deixou a disciplina de Teoria Geral do Processo a pedido dos próprios estudantes, que reclamavam do despreparo do professor. Como juiz, era correto. Das suas 123 sentenças que chegaram ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 42,3% foram alteradas em parte ou no todo, um índice alto mas não vexaminoso. Ao contrário do que declarou durante a campanha eleitoral, não era uma “máquina de sentenciar”, elogio que disse ter ouvido da juíza Valéria Caldi Magalhães, da 8ª Vara Federal Criminal no Rio. (Na época, a juíza emitiu nota negando a autoria da frase.)
Apesar do fim da carreira na Marinha, Witzel nunca perdeu o éthos militar que também capturou seus irmãos. Terceira geração de uma família de alemães que migraram para o Brasil no século XIX, Witzel nasceu em Jundiaí, no interior de São Paulo, mas, quando ainda era bebê, seus pais se mudaram para Marília, onde passou a infância. Só voltaram a morar em Jundiaí quando Witzel, um garoto tranquilo e aplicado nos estudos, já tinha 10 anos. José Witzel, metalúrgico aposentado, e Olivia Vital Witzel, dona de casa, tiveram quatro filhos, dos quais o governador, nascido em 1968, é o segundo. A primogênita, Marília, casou-se com um oficial da PM. Alexandre, o terceiro filho, é primeiro-tenente do Exército. O caçula, Douglas, é policial militar. Na infância, Witzel aprendeu a tocar trompete, um instrumento popular no meio militar, hábito que mantém até hoje. Concluiu o ensino médio em uma escola técnica, onde cursou agrimensura. Com planos de seguir a carreira militar, mudou-se para o Rio em maio de 1989, aos 21 anos, para fazer o curso de fuzileiro naval.
Mesmo como juiz, Witzel continuou a cultivar símbolos e chegou a se envolver com o mundo policial. No seu primeiro cargo, como juiz substituto na 8ª Vara Federal Criminal no Rio, usava toga em todos os interrogatórios e exigia que advogados e procuradores se levantassem em sinal de respeito sempre que entrava na sala de audiências. Em 2008, quando era juiz da 2ª Vara Criminal Federal em Vitória, no Espírito Santo, alegou que estava recebendo ameaças de morte do narcotráfico, passou a andar com escolta policial e pediu transferência para a 3ª Vara de Execução Fiscal, também em Vitória. O caso nem foi investigado. Colegas da época suspeitam da alegação de Witzel porque não havia em sua vara qualquer processo sensível contra o crime organizado. A piauí examinou as sentenças de Witzel da época. Não encontrou uma única decisão penal contra narcotraficantes.
Trabalhando numa vara fiscal, em que a presença física do juiz é menos requisitada do que em varas criminais, Witzel ganhou o tempo que desejava para fazer mestrado em direito processual civil na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Sua dissertação, segundo levantamento do site da BBC News Brasil, tem 63 parágrafos copiados de seis autores, dos quais apenas um consta das referências bibliográficas. Em 2015, já transferido para ser juiz na 2ª Vara de Execuções Fiscais em São João de Meriti. Witzel começou a fazer um doutorado em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF). Em seu currículo acadêmico, informou que cursara parte de seu doutorado na Universidade Harvard. Em maio de 2019, o jornal O Globo descobriu que era mentira. Witzel tirou a informação falsa do currículo.
Na campanha eleitoral, dando vazão a seu espírito militar, Witzel apresentou-se como dublê de juiz e xerife, recorrendo ao discurso da lei e da ordem. Com o mote “Mudando o Rio com juízo”, prometeu “acabar com essa bandidagem no nosso estado” durante um encontro na Associação de Oficiais Militares Estaduais do Rio de Janeiro. “E não vai faltar lugar para colocar bandido. Cova a gente cava, e presídio, se precisar, a gente bota navio em alto-mar”, disse. Eleito, defendeu que contra suspeitos criminosos o negócio era “mirar na cabecinha e… fogo!”.
Para a cerimônia de posse, mandou confeccionar uma faixa azul e branca, as cores da bandeira fluminense, com o brasão do estado no centro. Presidiu sua primeira reunião de secretariado com o adereço atravessado no peito. No exercício do cargo, posou para fotos segurando uma metralhadora Browning M1919, calibre .30, apareceu vestido com uniforme do Bope, treinando tiro com um fuzil calibre 7.62 mm e fazendo flexões com os pulsos cerrados, junto a policiais.
Em maio do ano passado, antes de embarcar em um passeio num helicóptero da Polícia Civil sobre a cidade litorânea de Angra dos Reis, gravou um vídeo dizendo que ia participar de uma operação “para acabar de vez com essa bandidagem que está aterrorizando a nossa cidade maravilhosa de Angra dos Reis”. Durante o voo, os policiais que o acompanhavam dispararam dez tiros contra uma tenda no meio da mata, confundindo-a com esconderijo de criminosos. A tenda servia para abrigar peregrinos religiosos. Por sorte, estava vazia naquela manhã, evitando uma chacina de inocentes.
Na manhã de 20 de agosto, Witzel deixou-se filmar saindo de um helicóptero pousado sobre a ponte Rio-Niterói, no meio de uma cena de crime. Tudo coreografado. O primeiro a descer do helicóptero foi o secretário de Governo e Relações Institucionais, Cleiton Rodrigues, que, com celular em punho, filmou a descida do governador. Witzel pisou no chão, abaixou o corpanzil até sair do raio das hélices em movimento, sorriu, ergueu os braços e desferiu socos no ar em comemoração: vibrava com os atiradores de elite da polícia fluminense que, minutos antes, tinham abatido o sequestrador de um ônibus. A operação acabara com os últimos 31 reféns sãos e salvos, mas a empolgação do governador, no centro de uma tragédia, virou símbolo da falta de compostura.
O pendor bélico-militar de Witzel estimulou a polícia a apertar o gatilho. Em 2019, os policiais do Rio mataram 10,5 pessoas para cada 100 mil habitantes, a maior taxa do século. Em São Paulo, nem os criminosos mataram tanto – foram 7,2 pessoas por 100 mil habitantes. Nas áreas controladas por milícias, o fenômeno é outro. Assim que caem nas mãos de bandidos milicianos, as comunidades vivem uma aparente pacificação. Os tiroteios desaparecem, os crimes violentos caem. Em 2019, os homicídios diminuíram 28% nessas áreas, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública, uma autarquia vinculada ao governo estadual. A “pax miliciana”, no entanto, é enganadora. Logo depois que tomam o comando, os bandidos milicianos começam a exibir seus métodos de opressão, extorsão e violência, embora os índices de criminalidade se mantenham mais baixos.
“O Rio é um caso curioso em que a criminalidade cai não pelo sucesso das políticas públicas, mas pela maior organização do próprio crime, na forma das milícias”, disse o deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), que presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, em 2008. Para um procurador do Ministério Público Federal, que preferiu o anonimato para não se indispor com as autoridades estaduais, a política de segurança pública do governo Witzel quer sufocar o tráfico de drogas, que ele chama de “narcoterrorismo”, com o apoio à expansão de outra organização criminosa – as milícias. “Denúncias contra a milícia, em geral, são mais emotivas do que aquelas contra as facções. O cidadão se angustia por não ter onde reclamar: a delegacia mais próxima, afinal, pode estar dominada por milicianos”, afirmou José Antônio Borges Fortes, coordenador do serviço Disque-Denúncia no Rio.
Além da família Bolsonaro, as milícias desempenharam um papel relevante na eleição de Witzel. Uma pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), a pedido da piauí, comparou a votação de Witzel em áreas controladas pelas milícias e nas áreas fora da influência miliciana. Constatou que, nos locais dominados pelas forças paramilitares, Witzel teve 12% a mais de votos do que na média do estado. O apoio teve consequências.
Assim que tomou posse em janeiro de 2019, Witzel mudou a estrutura de combate ao crime. Querendo ter contato direto com as polícias, sem intermediários, acabou com a Secretaria de Segurança Pública, órgão que existia desde 1995. No lugar, criou duas secretarias, uma para cada polícia, implantando um modelo que só encontra equivalente em Santa Catarina, e escalou uma turma da pesada. No comando da Secretaria de Polícia Militar, entrou o coronel Rogério Figueredo de Lacerda, notório pela sua passagem no 18º Batalhão da Polícia Militar. A chefia da Secretaria da Polícia Civil ficou a cargo de Marcus Vinicius Braga, que, antes de assumir, escolheu seu braço direito: Allan Turnowski, dono de um histórico de acusações de corrupção e de envolvimento com bicheiros e milicianos.
Com esse arranjo, as áreas da cidade controladas pela bandidagem miliciana ganharam um refresco. Entre 2018 e 2019, período em que a letalidade policial disparou, os policiais mataram 21% menos nas áreas tomadas pelas milícias. Uma pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes, também realizada a pedido da piauí, constatou que a polícia fez no ano passado onze vezes mais operações em áreas do narcotráfico do que em regiões de grupos paramilitares. “Hoje a política de segurança pública do Rio baseia-se em uma parceria velada com a milícia”, acusou o promotor Luiz Antônio Ayres, que acompanha os grupos milicianos fluminenses desde os seus primórdios, em 2001. Em compensação, nas áreas em que não há milícia a polícia matou 34% a mais em 2019, na comparação com o ano anterior, segundo dados do Instituto de Segurança Pública.
Na Cidade de Deus, por exemplo, uma comunidade que está há mais de uma década sob controle do Comando Vermelho – a maior organização criminosa em atuação no Rio –, houve 268 tiroteios em 2019, quase um por dia, de acordo com o Fogo Cruzado, um laboratório de dados que acompanha a violência armada nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e do Recife. O próprio governador disse, em entrevista coletiva em 2019, que se tivesse autorização da ONU “jogaria um míssil” na comunidade. “Com Witzel, a Polícia Militar virou linha de frente dos milicianos”, disse um tenente da PM que pediu para ficar anônimo para evitar uma punição administrativa por criticar a própria corporação. “Nós expulsamos os traficantes para que, em seguida, a milícia tome conta da área”, disse ele.
A parceria clandestina entre a Polícia Militar e as milícias apareceu já em janeiro de 2019, logo no primeiro mês da gestão de Witzel. Na ocasião, policiais militares do 35º Batalhão uniram-se a milicianos para combater o narcotráfico em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio. A operação teve um saldo macabro. Houve mais de cem mortos, entre traficantes e moradores do local, segundo estimativa da Polícia Civil divulgada pelo jornal Extra. A maioria dos corpos nunca foi encontrada. Especula-se que tenham sido enterrados em cemitérios clandestinos, uma prática comum de bandidos milicianos. Um dos policiais chegou a ganhar um carro de luxo BMW de presente pelos bons serviços prestados aos paramilitares. Quatro policiais militares foram presos e respondem a ação na Justiça por associação criminosa e homicídio.
Os exemplos se sucedem. Em junho do ano passado, um grupo miliciano chefiado por Danilo Dias Lima pagou propina de 15 mil reais a policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) para que reforçassem as tropas paramilitares na guerra contra o Comando Vermelho pelo controle de duas favelas em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O confronto durou dois dias e deixou um morto, o Bope cumpriu sua parte e o batalhão da PM da área ficou de braços cruzados. Desde então, as pichações com a sigla “CV”, que representa a organização criminosa expulsa do lugar, deram lugar ao número “5.5”, código militar para comunicação via rádio que indica “alto e claro”, do qual a milícia se apropriou para indicar as áreas sob seu controle.
Os líderes da nova estrutura das polícias no Rio de Janeiro pareciam tocar seu trabalho sem se preocupar com a exposição de suas conexões com as milícias. Mas um depoimento prestado por um preso no Rio Grande do Norte, ao qual a piauí teve acesso, ameaça abalar essa tranquilidade.
O depoimento começou na tarde de 26 de dezembro de 2018, às vésperas de Witzel tomar posse. Naquele dia, um ex-policial militar no Rio de Janeiro chamado Orlando Oliveira Araújo, de 46 anos, sentou-se diante da procuradora Caroline Maciel da Costa, do Ministério Público Federal, em Mossoró, no Rio Grande do Norte, e desandou a falar. Queria defender-se da acusação de que fora o mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco, ocorrido havia nove meses. Conseguiu comprovar sua inocência, mas contou outras coisas. Seis meses depois, em 19 de junho, voltou a depor e fez novas revelações. A leitura das setenta páginas dos dois depoimentos traz detalhes das relações subterrâneas entre a bandidagem miliciana e as mais altas autoridades policiais do governo Witzel.
Orlando Oliveira Araújo foi preso por homicídio e associação criminosa no Rio de Janeiro, e por razões de segurança foi transferido para um presídio em Mossoró, onde está desde 2018. Até 1997, ele trabalhava como policial militar no Rio, quando foi flagrado dirigindo um carro usado em roubo de cargas. Expulso da corporação no ano seguinte, decidiu criar uma milícia em Curicica, na Zona Oeste do Rio, o que lhe valeria o apelido pelo qual ficou conhecido: Orlando Curicica.
Sua milícia cresceu e se expandiu para bairros vizinhos, como Jacarepaguá e Recreio dos Bandeirantes. A lista de atividades criminosas de Curicica não era muito diferente daquilo que toda milícia faz: obriga os moradores a pagar “taxas de segurança”, explora ilegalmente os serviços de transporte público, gás de cozinha, água, tevê a cabo e construção civil, faz venda de cigarros contrabandeados, de munição e de armas de fogo, instala ligações clandestinas de energia elétrica e internet, promove grilagem, invasão de imóveis para revenda e receptação de veículos roubados, sempre impondo sua ordem na base da intimidação, da extorsão e da violência.
Como chefe de milícia, Orlando Curicica conta que conheceu e fez negócios com a cúpula da segurança pública no Rio: Braga, Turnowski e Figueredo de Lacerda. Em seu depoimento, ele revela que, em 2010, Braga e Turnowski, que já então trabalhavam como delegados, mandaram assassinar um sargento do Exército, acusado de matar o filho de um bicheiro. O bicheiro, Rogério de Andrade, procurou Braga e Turnowski, e encomendou a morte do sargento ao preço de 2 milhões de reais, segundo outra testemunha revelou à Polícia Federal. Curicica afirmou em seu depoimento que o sargento foi morto dentro de um hotel em Jacarepaguá.
Segundo Curicica, o então delegado Braga estreitou laços com ele em 2015, quando o policial foi transferido para a 16ª Delegacia de Polícia, na Barra da Tijuca. Na época, disse Curicica, Braga recorreu aos paramilitares para cumprir o seu próprio dever: pediu ajuda aos bandidos milicianos para prender uma quadrilha que assaltara um banco na região. “A gente chegou a montar um cerco com a equipe do doutor Marcus Vinicius pra pegar os ladrões. […] Eles apresentaram como uma prisão deles, mas fomos nós da milícia que fizemos tudo”, disse Curicica, que chama Braga de “doutor Marcus Vinicius”.
Turnowski, por sua vez, recebia propina do jogo do bicho para não apreender máquinas caça-níqueis espalhadas pela capital, ainda de acordo com Curicica. Como delegado, Turnowski trouxe para a sua equipe um grupo de policiais militares na condição de adidos, algo comum na época. Dois eram ligados a forças paramilitares – e um deles se tornaria famoso mais tarde: chama-se Ronnie Lessa, que hoje está preso pelo assassinato de Marielle Franco. Em novembro de 2010, a Polícia Federal gravou um telefonema de Turnowski, no qual ele parecia alertar um inspetor da Polícia Civil, Christiano Fernandes, de que estava sendo investigado. O inspetor, segundo o Ministério Público, estava envolvido com a milícia e recebia até armas apreendidas em operações “oficiais” contra o narcotráfico. “Fica esperto aí porque nego da Federal tá dizendo que caiu na escuta. […] Vê se não tem ninguém mais agarrado. […] Confere suas equipes aí”, avisou Turnowski. Mesmo com o alerta, quando a operação finalmente aconteceu, três meses depois, Christiano Fernandes, bem como seu irmão Giovanni, foram presos*.
Depois disso, Turnowski renunciou à chefia da Polícia Civil e passou alguns anos atuando na área de segurança empresarial da Cedae, a empresa estatal de saneamento do Rio, até que retornou à cúpula da corporação pelas mãos do amigo Braga, já no governo Witzel. Os irmãos Christiano e Giovanni Fernandes, cujas demissões já tinham sido anuladas pelo ex-governador Luiz Fernando Pezão, estavam num limbo administrativo, sem função. Em abril do ano passado, atendendo pedido de Turnowski e Braga, Witzel reincorporou os dois à Polícia Civil. Atualmente, trabalham na delegacia de combate ao tráfico de armas. “Ainda mais agora com doutor Allan Turnowski, esse pessoal chefiando a polícia, volta um monte de bandido a ter poder no Rio de Janeiro”, disse Curicica.
A relação de Curicica com o atual secretário da Polícia Militar, o coronel Figueredo de Lacerda, era ainda mais estreita. Entre 2015 e 2018, período em que comandou o 18º Batalhão da PM em Jacarepaguá, o coronel recebia, disse Curicica, 3 mil reais por mês da sua milícia, “fora os eventos”. No depoimento, o miliciano explica o que são “os eventos”: “Se o batalhão precisasse de dinheiro pra fazer uma festa, a gente tinha que ajudar. Se o coronel quisesse trocar de carro, a gente tinha que ajudar.” Mesmo com mandado de prisão em aberto, acusado de homicídio, Curicica frequentava o 18º Batalhão. Segundo contou, participava até dos tradicionais churrascos das sextas-feiras.
Isso não era tudo. Quando queria ocupar uma área do narcotráfico em sua região, Curicica pagava ao coronel Figueredo Lacerda para ter o apoio dos policiais do 18º Batalhão. No primeiro depoimento, disse que pagava 4 mil. No segundo, falou em 5 mil. “A polícia subia, nós botávamos farda também, subíamos com eles. […] A PM saía, ficava na parte baixa, e nós da milícia fazíamos o enfrentamento com os traficantes lá em cima. Era feito assim em todos os morros. Com isso, o coronel Figueredo ganhou muita fama dos moradores por combater o tráfico, mas ele não tava combatendo o tráfico nada, quem tava combatendo o tráfico era a gente. Só que a gente usava farda, porque subia de viatura. Então a população achava que realmente era a PM.”
Certa vez, o 18º Batalhão recebeu um carro, conhecido como “Caveirão”, cuja blindagem, vencida, precisava ser renovada. Curicica contou que a milícia se juntou a empresários da região para custear os 160 mil reais da reforma. Ele próprio, segundo disse, desembolsou “se não me engano, 20, 25 mil pra ajudar”. A reforma foi feita. Dias depois, o coronel Figueredo apareceu no batalhão a bordo de um BMW, modelo X1, cuja versão zero-quilômetro hoje custa mais de 200 mil reais. “Esse comando foi famoso pelas extorsões, que foram praticadas tanto na área do batalhão quanto dentro do próprio batalhão”, acusou Curicica. Mensagens encontradas pelo Ministério Público em um celular do miliciano, apreendido em 2019, comprovam o pagamento de propinas para policiais do 18º Batalhão na gestão do coronel Figueredo.
Desde a posse de Witzel, o coronel é o secretário de Polícia Militar. O 18º Batalhão que o coronel chefiou durante três anos fez história. No ano passado, sete policiais militares foram presos pela Polícia Civil, sob a acusação de extorquir comerciantes na capital. Examinando-se a biografia dos sete presos, descobre-se que cinco deles trabalharam com o coronel Figueredo no 18º Batalhão, em Jacarepaguá. Já o secretário Marcus Vinicius Braga, da Polícia Civil, deixou o cargo no dia 29 de maio. O governador pressionou pela sua saída, irritado por não ter sido alertado sobre uma investigação policial que, agora, ameaça seu mandato.
Desde o fim do ano passado, uma cópia do depoimento do miliciano Curicica está nas mãos do Ministério Público Estadual no Rio de Janeiro. Todos os implicados no depoimento negam as acusações. Allan Turnowski afirma que, durante seu período à frente da Polícia Civil, houve um recorde de apreensão de máquinas caça-níqueis. Marcus Vinicius Braga diz que nem conhece Curicica e não participou da operação que resultou no assassinato do sargento do Exército. “Minha carreira de dezoito anos na Polícia Civil sempre foi pautada pela ética e pela transparência”, disse. A assessoria da Polícia Militar também defendeu a reputação do coronel Figueredo de Lacerda. Em nota, disse que ele “realizou um comando extremamente positivo à frente do 18º Batalhão (Jacarepaguá), atuação esta que, junto às demais posições eficientes ocupadas ao longo de sua carreira, o credenciaram a ser escolhido para ocupar o posto máximo da corporação”.
O governador Witzel não quis dar entrevista à piauí.
“Parabéns à Polícia Federal. Fiquei sabendo agora. Parabéns à Polícia Federal”, disse o presidente Jair Bolsonaro, festejando a operação contra Witzel realizada no dia 26 de maio, uma terça-feira. Rompido com o governador do Rio desde o ano passado, Bolsonaro comemorava a desgraça do ex-aliado. As desavenças vinham se acumulando, mas só se consolidaram no dia 12 de setembro de 2019, quando Witzel, em entrevista à GloboNews, revelou suas pretensões de concorrer ao Palácio do Planalto e esnobou o apoio de Bolsonaro na sua campanha para o governo estadual. “Eu fui eleito no Rio de Janeiro não pelo apoio do Bolsonaro, porque ele nunca declarou voto em mim”, disse. “As pessoas me escolheram por aquilo que eu sou na minha história.” Dias depois, o senador Flavio Bolsonaro formalizou, por meio de uma nota, o rompimento com Witzel, a quem chamou de “ingrato” e disse que seu comportamento “beira a traição”.
(Recentemente, Flavio Bolsonaro dirigiu-se a Witzel nos seguintes termos: “Você ficava ligando pro Queiroz […] pra ir atrás de mim na campanha. Sabia que o Queiroz tava do meu lado, trabalhando. Um cara correto, trabalhador, dando o sangue por aquilo que ele acredita.” A frase não chamou a atenção pelo sabujismo que imputa a Witzel, mas pelo elogio a Fabrício Queiroz, que Flavio demitiu de seu gabinete pouco antes do segundo turno da eleição presidencial, apesar de ser um “cara correto, trabalhador” que dá “o sangue por aquilo que acredita”. Acusado de ligações com a bandidagem miliciana e investigado por participar da organização criminosa que Flavio é acusado de liderar, Queiroz foi preso em 18 de junho.)
No mês seguinte ao rompimento entre Witzel e Bolsonaro, a tensão escalou para um salseiro público. O presidente acusou o governador de ter vazado à TV Globo o depoimento de um porteiro que o implicava no caso Marielle Franco – semanas depois, o depoente voltou atrás. Bolsonaro não apresentou nenhum elemento para comprovar a acusação, e Witzel atribuiu-a ao “descontrole emocional” do presidente. A inimizade voltou às manchetes com a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual Bolsonaro reclama que suas tentativas de interferência na Polícia Federal não vinham surtindo o efeito desejado. A certa altura, Bolsonaro refere-se ao governador do Rio como “aquele estrume”.
No dia 26 de maio, porém, o presidente estava feliz com a Polícia Federal. Os agentes cumpriam mandados de busca e apreensão em doze endereços. Entre eles, estavam a casa onde o governador morou no bairro do Grajaú, o escritório de advocacia de sua mulher, o Palácio Guanabara, onde o governador despacha, e o Palácio das Laranjeiras, a residência oficial. Witzel e a mulher dormiam quando a polícia chegou às seis da manhã. Ficaram perplexos e apenas acompanharam a ação policial. Os agentes revistaram gavetas e armários, e apreenderam todos os computadores e celulares do governador e da mulher.
O cerco policial ao governador começou antes, no dia 14 de maio, quando o empresário Mário Peixoto, aquele com contratos bilionários no governo, foi preso pela Polícia Federal, em Angra dos Reis. Na mira da polícia pelo seu envolvimento com o ex-governador Sérgio Cabral, Peixoto está sendo investigado pela suspeita de comandar um esquema que, azeitado pelo pagamento de propina a autoridades estaduais, vem desviando dinheiro público na área da saúde na gestão Witzel. O esquema, suspeitam os investigadores, operou antes da Covid-19, e se manteve ativo durante a pandemia.
A investigação chegou à porta do governador porque a polícia encontrou, na casa de um operador financeiro de Peixoto, cópia de um contrato de “consultoria jurídica”, segundo o qual a primeira-dama receberia 540 mil reais em 36 parcelas mensais. Helena Brandão é uma profissional inexperiente, nunca advogou formalmente para empresas e seu escritório de advocacia só fora habilitado a emitir notas fiscais um mês antes da assinatura do contrato. A suspeita dos investigadores é que o documento seja o veículo das propinas ao governador, estratégia que foi usada por Sérgio Cabral e sua mulher Adriana Ancelmo, também advogada. Brandão negou a suspeita em nota, mas a desconfiança dos investigadores foi reforçada pela descoberta de que ela e o governador, em data próxima ao início do contrato, mudaram o regime de casamento para comunhão universal de bens.
A piauí confirmou com três pessoas que trabalharam na campanha eleitoral de Witzel que Peixoto bancou boa parte das despesas do ex-juiz, embora seu nome não apareça na prestação de contas entregue ao tribunal eleitoral. Ao assumir, Witzel fechou seis contratos com a Atrio Rio Service Tecnologia e Serviços, empresa hoje em nome do filho de Peixoto. Dos seis contratos, quatro foram feitos sem licitação. Para obtê-los, Peixoto desembolsou um “cachezinho básico”, segundo disse um operador do esquema em telefonema interceptado pela Polícia Federal: “[Peixoto] tá pagando um cachezinho, aquele cachezinho básico, 500 mil para um, 1 milhão para outro. Ele não é brincadeira, não.” Peixoto, que até o fim de junho permanecia preso no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu 8), mandou dizer à piauí que não financiou a campanha de Witzel e não tem com ele nenhuma relação ilícita. “Qualquer acusação neste sentido é absolutamente descabida e irreal”, informou sua defesa.
No fim da manhã em que a polícia bateu na sua porta, Witzel convocou uma entrevista para acusar Bolsonaro de usar a Polícia Federal para persegui-lo. No dia anterior, em entrevista à Rádio Gaúcha, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) dissera que a PF estava prestes a deflagrar operações contra desvios na área da saúde nos estados. “Já tem alguns governadores sendo investigados”, informou a parlamentar. O anúncio prévio por uma deputada bolsonarista de operações que deveriam ser sigilosas levantou a suspeita elementar de que Bolsonaro estava usando a PF para intimidar seus inimigos políticos. Os governadores de nove estados, numa nota divulgada dias depois, criticaram a operação e dirigiram-se a Bolsonaro nos seguintes termos: “Após ameaças políticas reiteradas e estranhos anúncios prévios de que haveria operações policiais, intensificaram-se as ações espetaculares, inclusive nas casas de governadores, sem haver sequer a prévia oitiva dos investigados e a requisição de documentos.”
As duas suspeitas – dos desvios de Witzel e da manipulação de Bolsonaro – contaminaram a investigação de tal modo que ficou difícil distinguir entre bandidos e mocinhos. Na entrevista que deu logo depois da batida policial, Witzel disse: “Quero manifestar minha absoluta indignação com o ato de violência que, hoje, o estado democrático de direito sofreu. […] Não vão conseguir colocar em mim o rótulo da corrupção. […] a Polícia Federal deveria fazer o seu trabalho com a mesma celeridade que passou a fazer aqui no estado do Rio de Janeiro, porque o presidente acredita que eu estou perseguindo a família dele, e ele só tem essa alternativa, de me perseguir politicamente.”
Os ex-aliados, que hoje trocam acusações mútuas de manipulação policial, já estiveram juntos em maquinações contra o comando da Polícia Federal no Rio. Em abril do ano passado, uma investigação da PF descobriu que policiais civis estavam extorquindo empresários. O então secretário de Polícia Civil, Marcus Vinicius Braga, irritado com a investigação da PF sobre seus comandados, reclamou ao governador, que concordou com o secretário. Juntos, bolaram um plano para derrubar o então superintendente da PF no Rio, Ricardo Saadi, e colocar no seu lugar um delegado federal amigo, lotado no Espírito Santo. Witzel recorreu a Bolsonaro, pois eram aliados ainda, e pediu o afastamento de Saadi. Bolsonaro gostou da ideia e encaminhou o pleito ao então ministro da Justiça, Sergio Moro. Como se sabe, Moro não atendeu ao pedido de Bolsonaro. A maquinação Witzel-Bolsonaro não deu certo, mas, quatro meses depois, agora sem lobby do governador, Saadi caiu.
Em sua carreira como juiz, Wilson Witzel envolveu-se em algumas polêmicas. Em 2010, foi um dos organizadores de um encontro de magistrados federais em um resort de luxo na ilha de Comandatuba, no Sul da Bahia, patrocinado por estatais e grandes empresas privadas, como a Souza Cruz, em que pese a Emenda Constitucional nº 45 proibir juízes de receber auxílios ou contribuições de pessoas físicas e empresas. O episódio ficou conhecido como “farra dos juízes federais”. Oito anos depois, em janeiro de 2018, quando já preparava sua candidatura ao governo do estado, ele deu uma palestra para outros juízes, gravada em vídeo. A certa altura, contou que recorria a uma mutreta para aumentar seu salário por “acúmulo de função”. Disse o seguinte: “Eu recebo [uma gratificação], expulsei o juiz substituto da minha Vara, falei: ‘Ô, negão, ou você vai viajar lá para ficar um ano fora, ou vou te expulsar da Vara.’ Brincadeira, adoro meu juiz substituto. Mas, se ele ficar, eu não recebo. Aí a gente faz uma engenharia… Todo mês, quinze dias por mês, o juiz substituto sai da Vara.” Ou seja: todo mês, Witzel recebia um adicional de 4 mil reais por acumular a função dele e a do juiz substituto. O caso não lhe valeu nem uma reprimenda.
O outro episódio ocorreu no início de 2014, quando Witzel pediu autorização para viajar à Espanha, onde daria palestra em um congresso na Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri. O pedido foi apresentado fora do prazo, e a autorização lhe foi negada. Mesmo assim, Witzel embarcou. Aproveitando o passeio para comemorar dez anos de casamento, chegou à Europa cinco dias antes do evento em Madri. Sua mulher postou no Facebook fotos em que aparecia diante da Catedral de Notre-Dame, em Paris, marcando o juiz no local. Witzel alega que só soube que a viagem não fora autorizada quando já estava no exterior. Por isso, voltou para o Brasil dois dias antes do fim do encontro em Madri, ao qual acabou não comparecendo. O juiz foi alvo de uma sindicância, que terminou sendo arquivada.
Depois de doze anos, o casamento de Witzel com a militar Sônia Marques acabou em 2004. Pouco antes da separação, Witzel achou que a casa em que moravam na Vila Isabel, Zona Norte do Rio, não era adequada para receber os amigos magistrados. Decidiu comprar um imóvel mais amplo no Grajaú, bairro vizinho, ao preço de 770 mil reais, em valores de hoje. Sua sogra, cafeicultora em Minas Gerais, emprestou 115 mil reais (valor corrigido) para ajudar na aquisição. O negócio foi fechado, o contrato de compra foi lavrado, mas, poucas semanas antes da mudança para o novo imóvel, Witzel pediu o divórcio. E passou a morar no imóvel novo com Helena Brandão, treze anos mais nova, então sua aluna de direito. A mãe da sua ex-mulher entrou na Justiça cobrando a devolução do dinheiro e ganhou a causa. No início de 2019, Witzel foi intimado a pagar a dívida.
A separação litigiosa teve impacto no único filho do casal, Erick, então com 10 anos (ele nasceu em corpo feminino e começou a transição depois de fazer 18 anos). Logo depois do divórcio, Witzel lhe contou que estava apaixonado por Helena e que a nova mulher lhe daria um filho homem. (Witzel e Brandão tiveram três filhos: Vicenzo, Beatriz e Bárbara.) “Ele se afastou muito. Ele não mostrava mais interesse [em mim]. Eu era criança. Senti falta, muita falta. Chorei, chorei, chorei”, contou ao jornal O Globo, em outubro de 2018, mês da eleição. Quando disse ao pai pela primeira vez que se sentia homem, Witzel reagiu mal. Confundindo transexualidade com homossexualidade, citou trechos da Bíblia que condenam as relações entre pessoas do mesmo sexo, mas, com o tempo, acabou aceitando a condição do filho. Às vezes, lhe dava tapas com alguma força no braço e dizia, em tom de galhofa: “É assim que homem se cumprimenta.”
Discreto, Erick não queria aparecer durante a campanha eleitoral e irritou-se quando o pai mencionou sua existência durante uma entrevista à rádio CBN. “Tenho muito respeito por ele, mas não existe todo esse carinho que ele diz ter por mim. É sujo você usar alguém. Eu me senti usado por ele nas entrevistas que ele deu”, disse Erick naquela mesma reportagem de O Globo. Em meados do ano passado, Erick voltou a se reaproximar do pai, a quem chama de “Vilson”. Sua relação com a madrasta é fria mas cordial.
Os cuidados de Helena Brandão com a aparência – ela já fez plástica no nariz e colocou silicone nos seios – se estendem ao marido. No início do governo, assessores tiveram dificuldade para contratar um fotógrafo oficial ao gosto de Brandão, que invariavelmente reclamava de como o governador aparecia nas fotos. Faz questão de mantê-lo longe de presenças femininas e proibiu o uso de decotes e alcinhas entre as funcionárias do Palácio Guanabara. Uma policial militar que trabalhava na antessala do gabinete do governador, e cuja beleza atraía a atenção, foi logo transferida por ordem da primeira-dama. Com o tempo, mesmo antes da ascensão ao governo, Brandão tornou-se uma influência decisiva sobre o marido, que não toma decisões relevantes sem antes consultá-la. Ela participa de reuniões do secretariado, para constrangimento de muitos titulares das pastas, e interfere na articulação política. Era assim até ser alvo da operação da Polícia Federal.
Com um ano e meio de governo, depois de uma eleição vertiginosa, Witzel encontra-se na situação mais calamitosa de todos os governadores do país. Quando era juiz, seu objetivo era ser ministro do Supremo Tribunal Federal, o posto mais elevado da magistratura brasileira. Assim que tomou posse como governador, em tom meio sério, meio brincalhão, revelou um segredo a amigos próximos durante uma reunião noturna no Palácio Guanabara em que bebiam uísque e fumavam charuto. Disse que seu plano era eleger-se presidente da República e, depois de cumprir o mandato – dois, de preferência –, virar secretário-geral das Organizações das Nações Unidas. Hoje, não há governador mais solitário. Seu vice, Cláudio Castro (PSC), recolheu-se ao silêncio, quebrado apenas quando escreveu meia dúzias de palavras no Twitter fazendo uma tímida defesa de Witzel.
Além de perder o apoio de Bolsonaro, perdeu também sua base na bandidagem miliciana, que ficou insatisfeita com sua defesa da quarentena e do isolamento social para combater a pandemia da Covid-19, medidas que levaram ao fechamento do comércio que os milicianos extorquem. Perdeu ainda apoio na Assembleia Legislativa, na qual chegou a compor uma base com mais da metade dos setenta deputados. Na tarde de 10 de junho, Witzel tornou-se um dos poucos governadores eleitos na safra de 2018 a enfrentar a abertura de um processo que pode levar ao impeachment. Em votação simbólica, 69 deputados aprovaram a medida. Witzel não teve o apoio nem dos deputados do seu próprio partido, o PSC.
A implosão da base governista aconteceu quando Witzel demitiu seu principal articulador político, André Luis Dantas Ferreira, que se apresenta como “André Moura”. Ele chegara ao governo oito meses antes. Foi deputado federal pelo PSC, integrou a tropa de choque do ex-deputado Eduardo Cunha e responde a três ações penais no STF por desvio de verba pública e formação de quadrilha, herança dos tempos em que foi prefeito de Pirambu, cidade litorânea de Sergipe. (Numa das ações, “André Moura” é acusado pelo Ministério Público de usar verba da prefeitura para abastecer a geladeira de sua casa com vodca, camarão, cerveja e vinho. Ele nega as acusações.)
A articulação política ficou a cargo de Lucas Tristão do Carmo, então secretário do Desenvolvimento Econômico, Energia e Relações Internacionais. Tristão é ex-aluno de Witzel, da época em que o governador dava aulas na faculdade de direito em Vitória, e muito próximo do empresário Mário Peixoto. É, também, um desafeto da maioria dos parlamentares, além de estar sob investigação em duas operações da Polícia Federal. Com esse currículo, Tristão resolveu eliminar as críticas ao governador por meio de ameaças aos deputados com dossiês incriminadores – o que ele nega. Durou cinco dias como articulador político. Na tentativa de salvar-se do impeachment, Witzel o demitiu da articulação e da secretaria. O impeachment foi aberto menos de duas semanas depois. “O governo sempre foi uma disputa de facções”, diz um interlocutor de Witzel, que pediu para manter o anonimato com receio de represálias. “Nunca foi um time de fato.”
Com o vendaval da polícia e do impeachment, Witzel já trocou seis secretários e mandou acenos de paz para o presidente, que lhe chamou de “aquele estrume”. Nas seis semanas que anteciparam a operação dos agentes federais no palácio, Witzel fez 25 tuítes críticos a Bolsonaro. Entre eles, disse que o presidente era grosseiro no trato com autoridades e jornalistas e irresponsável na condução da crise do coronavírus. “A falta de respeito de Bolsonaro pelos poderes atinge a honra de todos. Sinto na pele seu desapreço pela independência dos poderes. E espero que num futuro breve o povo brasileiro entenda que, do que ele me chama, é essencialmente como ele próprio se vê”, tuitou em 22 de maio. Do dia 27 daquele mês em diante, concluída a operação policial, Witzel calou-se. Fazendo um balanço da jornada do governador até aqui, o deputado Marcelo Freixo disse o seguinte: “Alçado ao poder com apoio do Bolsonaro, Witzel cai como um aprendiz do Sérgio Cabral.” No dia seguinte à batida policial, a primeira-dama teve um pico de pressão e foi internada no Hospital dos Bombeiros. O maior receio do governador, o Rambo da juventude, é que sua mulher vá para a cadeia.
* A versão original desta reportagem informava que o delegado da Polícia Civil, Allan Turnowski, havia sido preso pela Polícia Federal em fevereiro de 2011. A informação estava incorreta e foi suprimida do texto.
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