Tratar um profissional só pelo sobrenome afeta o julgamento que se faz dele, dizem as pesquisas INGE MORATH_MAGNUM PHOTOS_LATINSTOCK
Sra. Hillary ou Sra. Clinton?
Sobre as consequências de não chamar as mulheres pelo sobrenome
Fernanda Ezabella | Edição 145, Outubro 2018
De vez em quando, Stav Atir pergunta para si mesma se seu prenome unissex a favorece na vida acadêmica. Israelense radicada nos Estados Unidos, a psicóloga passou os últimos anos investigando o preconceito de gênero que deriva da maneira como os norte–americanos se referem a professores, cientistas, políticos e outros profissionais. No fim das contas, concluiu que os identificados principalmente pelo sobrenome, e não pelo primeiro nome ou o nome inteiro, acabam sendo apontados como mais conhecidos, mais eminentes e, portanto, mais merecedores de prêmios.
Darwin, Newton, Einstein, Marie Curie… Basta espiar os livros de ciência para atestar quem costuma ser mais chamado somente pelo nome de família. Atir descobriu que, quando aludem a profissionais do sexo masculino, tanto os homens quanto as mulheres tendem a usar apenas o sobrenome deles. Já quando se referem às profissionais do sexo feminino, dão preferência ao primeiro nome ou ao nome inteiro. O hábito, segundo a pesquisadora, acaba perpetuando a desigualdade de gêneros.
“Se me comunico com as pessoas só por e-mail, normalmente pensam que sou um cara e começam a me tratar pelo sobrenome. Será que levo alguma vantagem em razão disso? Provavelmente, sim”, disse a psicóloga por telefone, de Tel Aviv, onde passava férias com a família.
Como parte de seu doutorado na Universidade Cornell, em Nova York, Atir realizou oito pesquisas sobre o assunto a partir de 2015. Todas tiveram a contribuição da também psicóloga Melissa Ferguson. O resultado se encontra no artigo “De que maneira o gênero determina o modo como falamos de profissionais”, que saiu recentemente na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
“Notei o padrão de nomes e sobrenomes pela primeira vez há nove anos, quando acompanhei as eleições legislativas em Israel. Fiquei curiosa para saber se aquele modelo era exclusivo do meu país e se trazia consequências práticas”, contou Atir, que completou 32 anos e iniciou um pós-doutorado na Universidade de Chicago.
Num dos experimentos, ela e Ferguson pediram que 184 voluntários de ambos os sexos escrevessem um parágrafo sobre dois cientistas fictícios, um homem e uma mulher, baseados numa série de informações biográficas. Os participantes se mostraram quatro vezes mais inclinados a empregar o sobrenome para falar dele e não dela.
Com o auxílio de assistentes, as pesquisadoras também analisaram dois grupos de textos: 4 494 resenhas de alunos sobre professores de catorze universidades norte-americanas e as transcrições de 336 programas de rádio que tratavam de política. Nas resenhas, publicadas no site Rate My Professors, os estudantes se revelaram 56% mais propensos a chamar seus professores, e não suas professoras, pelo sobrenome. Do mesmo modo, os apresentadores de rádio lançavam mão de sobrenomes para identificar mais os homens do que as mulheres.
As psicólogas descobriram, ainda, que a diferença no tratamento afeta o julgamento sobre os profissionais. Num dos testes, em que se descreviam cientistas imaginários, os participantes consideraram mais merecedores de um prêmio de 500 mil dólares aqueles identificados somente pelo sobrenome.
Ao perceber que elas próprias seguiam o padrão constatado por suas pesquisas, as autoras do artigo começaram a se policiar. Agora, durante reuniões acadêmicas, Atir faz questão de tratar os colegas pelo nome todo e as colegas apenas pelo sobrenome. A psicóloga aconselha que outras mulheres se comportem assim no trabalho. “Não custa nada, né?”
Mas, afinal, de onde vêm os comportamentos que as pesquisadoras relatam? Stav Atir ainda não tem respostas precisas e quer se aprofundar no tema em seus próximos estudos. Ela suspeita de que, entre outras razões, a tendência de associar sobrenomes a homens é uma herança do patriarcalismo. “Ainda perdura entre nós o hábito de as mulheres casadas adotarem como último sobrenome o do marido.” Desse modo, as famílias acabam sendo identificadas pelas origens paternas e não pelas maternas. Tome-se o exemplo de Hillary Diane Rodham. Era assim que a ex-senadora democrata se chamava antes do casamento com Bill Clinton. Depois, passou a ser Hillary Diane Rodham Clinton. Hoje ninguém a trata em público por Hillary Rodham ou simplesmente Rodham. A política se tornou famosa como Hillary Clinton ou apenas Hillary. Chamá-la só de Clinton remeteria imediatamente ao marido, não a ela. O mesmo se deu com a ex-primeira-dama Michelle Obama (registrada ao nascer como Michelle LaVaughn Robinson), a cientista Marie Curie (Marie Skłodowska) e até a dona de casa Marge Simpson (Marjorie “Marge” Bouvier), do desenho animado.
Atir trocou Israel pelos Estados Unidos há doze anos para estudar na Universidade Yale, em Connecticut, onde se formou psicóloga. Ela explicou que seu prenome, Stav, significa outono em hebraico. “Costumava ser unissex, mas agora existe uma tendência de nomes neutros virarem exclusivamente femininos. Acho que, quando um nome se transforma em unissex, os pais deixam de atribuí-lo aos meninos.”
Outro estudo da pesquisadora, lançado na revista Psychological Science, aborda o overclaiming (algo como “excesso de pretensão”). É quando profissionais altamente especializados se superestimam e declaram conhecer áreas que não dominam ou nem sequer existem. “Nosso trabalho sugere que a tarefa aparentemente simples de avaliar as aptidões de alguém pode não ser tão simples assim, em especial quando se trata de pessoas que acreditam ter um nível alto de conhecimento”, escreveu Atir.
E quem comete mais esse pecado: homens ou mulheres? “Sempre me perguntam isso”, respondeu a psicóloga, rindo. “Todo mundo imagina que sejam os homens. Mas a verdade é que não há diferença.”
Fernanda Ezabella, jornalista, é correspondente da Folha de S.Paulo em Los Angeles
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