"A qualquer hora, em qualquer lugar": com este mote, o ex-vendedor de tecidos mirou na fome ILUSTRAÇÃO: AFP/GETTY IMAGES
Sucesso Instantâneo
Sai de cena o patrono dos preguiçosos
Dorrit Harazim | Edição 5, Fevereiro 2007
Responda rápido: qual o mais importante invento japonês do século XX? Se você optou pelo Walkman, da Sony, que trouxe portabilidade para o universo da música, errou. Também errou quem apostou no videogame, da Nintendo, que transformou adultos em crianças e crianças em viciados. Segundo opinião dos próprios japoneses, colhida em recente pesquisa de opinião pública, o maior símbolo cultural do país tem forma de minhoca, mede 2 milímetros de diâmetro por 40 centímetros de comprimento, pesa 64 gramas e vende mais de 85 bilhões de unidades a cada ano.
O macarrão – ou lamen, ou ramen – instantâneo, que no Brasil atende pelo nome genérico de um dos quatro grandes fabricantes do produto, o miojo, está de luto.
A morte de seu inventor foi assim noticiada pelo piloto americano Patrick Smith, especialista em aviação e cronista da revista eletrônica Salon: “No dia 5 de janeiro de 2007 a aviação mundial foi abalada por uma notícia trágica. Momofuku Ando morreu de ataque cardíaco no Japão, aos 96 anos”. Smith explica que, entre os doze itens de primeira necessidade que todo piloto transporta naquela maleta preta que faz parte do seu uniforme, está a invenção de Ando. “Se o leitor não entende por que cinco pacotes de miojo são imperativos no repertório de todo piloto da aviação civil, é porque nunca desabou num infame quarto de hotel à meia-noite, morto de fome e com pouco dinheiro, para uma escala de poucas horas. É claro que existem iguarias mais saborosas, mas miojo é barato, simples de fazer e nunca estraga”.
O piloto dá sua receita de preparo para quem ocupar um quarto sem fogão ou panela: 1) rinçar o filtro da cafeteira elétrica; 2) abrir o pacote, quebrar o macarrão desidratado em pedaços pequenos e jogá-los no fundo da jarra da cafeteira; 3) colocar água no reservatório e ligar a cafeteira; 4) esperar três minutos e adicionar o tempero incluído no pacote de miojo.
A trajetória de Momofuku Ando, cidadão considerado patrimônio nacional e tesouro mundial pelos japoneses, está narrada no Instant Ramen Museum que leva o seu nome, na cidade de Osaka. Nascido na Taiwan sob ocupação nipônica, em 1910, Ando trafegou por vários ofícios até encontrar seu destino. Começou como vendedor de tecidos, migrou para o ramo de acessórios industriais, depois para casas pré-fabricadas, depois para projetores de luz. Nada de muito estimulante. Tentou criar um esquema de bolsas de estudo para alunos carentes que o levou à prisão.
A virada ocorreu em meados dos anos 50, no Japão famélico e derrotado que sobrou da II Guerra Mundial. Ando, então com 47 anos de idade, cruzava diariamente com longas filas de japoneses que tentavam comprar um prato de macarrão nas biroscas de ramen espalhadas por toda parte. Imaginando que devia existir um método de abreviar a espera pelo cozimento da massa, pôs-se a trabalhar durante um ano no galpão do quintal de sua casa, em Osaka. O problema não era pequeno: como eliminar totalmente a água de um macarrão já cozido, para melhor acondicioná-lo, e posteriormente devolver-lhe vida e sabor, tornando-o de novo adequado ao consumo?
Foi observando sua mulher preparar tempura que Ando descobriu a fórmula: pegou uma porção de macarrão fresco, fritou-a em óleo de palmeira, encharcou-a de caldo de galinha e a deixou secar até que adquirisse consistência de tijolo. Desidratado o macarrão, Ando o empacotou em embalagem a vácuo. Para percorrer o caminho inverso e ressuscitá-lo, bastaria mergulhá-lo em água fervendo. Estava criado o Chicken Ramen – o grande clássico, segundo os aficionados. “Inventei o macarrão instantâneo por imaginar que o povo ficaria feliz em poder comer seu prato preferido a qualquer hora, em qualquer lugar. Só isso”, repetiria Ando ao longo da vida. Estava criada, também, a logomarca Nissin.
Do galpão, o invento saltaria para as prateleiras de supermercados aos solavancos. Aquele tijolo amarelado, enroscado como minhoca e acondicionado em saco de celofane pareceu risível no seu primeiro ano de existência. Custava seis vezes mais do que o macarrão fresco oferecido em todas as esquinas do país. Ainda assim, vendeu 13 milhões de unidades em 1958. Dez anos depois, a população do Japão já consumia mais de 3,6 bilhões de pacotes por ano. Hoje, avenidas inteiras em supermercados expõem os mais de 983 sabores e variedades do produto, do étnico coreano com couve ao camarão picante apreciado em Madagascar.
Em 1971, a Nissin de Momofuku Ando deu o seu segundo e definitivo tiro: o mesmo macarrão instantâneo, mas agora acondicionado num copo de poliestireno resistente ao calor. Vantagem: o copo já fazia as vezes de panela. Modo de preparo: 1) puxe a tampa até a linha tracejada; 2) despeje água fervendo até a linha interna do copo; 3) feche a tampa e conte três minutos; 4) misture bem e sirva-se. Estava inventado o Cup Noodles, sob o mesmo mote: o seu prato preferido a qualquer hora, em qualquer lugar… Inclusive no espaço sideral. O astronauta japonês Soichi Noguchi estocou os seus sabores preferidos na aeronave Discovery ao fazer o seu giro inaugural em 2005.
Para os japoneses, não importa saber qual foi a civilização que inventou o macarrão. Até porque dificilmente a China perderá a primazia. Dois anos atrás, num sítio arqueológico de Lajia, na região do Rio Amarelo, descobriram-se tiras de macarrão de 50 centímetros de comprimento dentro de um pote possivelmente soterrado por algum desastre natural. Segundo a revista Nature, o macarrão desenterrado tinha 4 000 anos de existência e havia sido fabricado com grãos de milheto, não com farinha de trigo, como o macarrão moderno. Mas passava a ser, e ainda é, o espécime mais antigo já encontrado. Em compensação, coube ao japonês Ando reinventar o seu uso e revolucionar o seu consumo.
Estudantes do mundo inteiro, solteiros por vocação ou separação, pais e mães de crianças birrentas, famintos globalizados, preguiçosos de todas as raças agradecem. O próprio Momofuku Ando comia seu Chicken Ramen quase diariamente e o reverenciou na passagem do último Ano-Novo: no cardápio festivo dos executivos do conglomerado Nissin – cujo faturamento ultrapassou os 3 bilhões de dólares em 2006 -, só macarrão instantâneo. Ando chegou quase aos cem anos sarado e bem-disposto, ainda que a embalagem de seu prato preferido reúna todos os vilões da endocrinologia moderna. Além de sêmola de trigo, farinha de arroz, ferro e temperos variados, o tijolinho minhoquento contém corantes, gorduras saturadas, três tipos de goma estabilizante, açúcar refinado, gordura de bacon, inosinato dissódico, dióxido de silício e que tais. Não importa. O miojo e o macarrão em copo são tidos como um tesouro que precisa ser defendido a qualquer custo.
Dois meses atrás, quando a americana Steel Partners tentou comprar a japonesa Myojo, quarta maior fabricante de macarrão instantâneo do país, oferecendo 700 ienes por ação, a Nissin de Momofuku Ando salvou a honra nacional com a oferta de 870 ienes por ação – um negócio de 314 milhões de dólares. Levou. O país continuará a sorver os seus 5,4 bilhões de porções de ramen fabricados na terra de Ando, com cada homem, mulher e criança japoneses consumindo 42 pratos de macarrão instantâneo por ano.
No momento, alinhando-se com os imperativos da indústria da saúde, a Nissin começa a pesquisar processo de manufatura que eliminem a fritura do macarrão com gorduras saturadas. Seria algo como um nouveau-miojo. Também já existe uma versão do miojo para o mercado americano, com fios do macarrão menos compridos e supostamente menos difíceis de pescar com garfo. Bobagem, diria o cronista Patrick Smith. Quem opta pelo macarrão instantâneo não tem vergonha de comê-lo na calada da noite com a ajuda de duas canetas esferográficas, à falta de outro instrumento. Se necessário, emitindo os ruídos menos recomendados pelos manuais civilizatórios.
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