O caixão de lã biodegradável exibido na rave verde do príncipe Charles
Sustentabilidade no além-túmulo
A forma ecologicamente correta de passar a eternidade
Dorrit Harazim | Edição 49, Outubro 2010
O caixão de lã biodegradável exibido na rave verde do príncipe Charles
Agarden party promovida pelo príncipe herdeiro do Reino Unido foi um sucesso. Durante doze dias do mês passado, aproveitando o verão europeu, o bicho bombou nos jardins de Clarence House, a residência londrina do eterno delfim da Rainha Elizabeth II. Foi quase uma rave verde. E ainda por cima aberta ao público, em prol da vida ambientalmente sustentável, com mais de 100 expositores apresentando ideias de vanguarda e retaguarda para a preservação do planeta.
O anfitrião é um convertido de longa data à causa. E um adepto da práxis: há tempos mantém uma horta orgânica nos jardins palacianos, e implantou um sistema de reaproveitamento da água na residência onde mora com Camilla, a duquesa da Cornualha, e os filhos William e Harry, do seu casamento com Diana, a princesa de Gales. Ainda recentemente, obteve autorização para instalar 32 painéis de energia solar no teto de 180 anos de Clarence House.
Sempre à espreita de novidades do reino encantado da autossuficiência, o príncipe Charles manifestou interesse particular por um item exposto com discrição em seus jardins durante a garden party: um esquife capaz de levar a boa causa ambiental para esferas além-Terra e além-matéria.
Trata-se de um caixão funerário feito à base de lã de ovelha, material não só natural e sustentável como biodegradável. Ele é fabricado pela indústria têxtil Hainsworth, uma empresa familiar fundada há 227 anos na cidade de Leeds. O produto que, por enquanto só existe em duas cores (marrom e branco natural), recebeu a aprovação de Sua Alteza Real por um motivo adicional. Segundo o fabricante, dentro de cinco anos 1% dos mortos do Reino Unido já estará sendo enterrado ou cremado em caixões ecologicamente corretos, cuja estrutura de papelão reciclado leva cobertura da melhor lã ovina, além de forro de algodão e alças de juta.
Se, de fato, a moda funéreo-autodegradável pegar, será uma benesse para os 90 mil produtores de lã de um país que desde o século XII tem rebanhos de ovelhas associados às propriedades rurais. O Reino Unido, que por tanto tempo reinou unido e soberano como o maior produtor mundial de lã, hoje tem de se contentar com um acanhado sétimo lugar.
Não se sabe se Sua Alteza Real, beirando os 62 anos, planeja deixar instruções para tornar-se o primeiro membro da Casa de Windsor a optar por saída tão histórica e ecologicamente correta. Já Sua Majestade Elizabeth II, de 84 anos de idade e 58 de poder, God bless Her, não parece inclinada a sair de cena em sarcófago tão chinfrim. Sair de cena, aliás, não parece fazer parte da agenda de Elizabeth II. Ao menos por enquanto.
Ademais, a julgar pelo enterro do rei George VI, pai de Elizabeth II, que morreu em 1952, um esquife de lã de ovelha talvez destoe das peças que encimam o féretro durante as obséquias reais. Só a inigualável coroa imperial, retirada da câmara subterrânea da Torre de Londres para coroações e cortejos fúnebres de monarcas, contém 2 868 diamantes, 17 safiras, 273 pérolas, 11 esmeraldas e 5 rubis.
Além dos ecoexpositores, a participação de celebridades televisivas, do mundo da música e da moda multiplicou a visibilidade do evento. Lideradas por dame Vivienne Westwood, a estilista inglesa que há décadas dita gostos e atitudes pelo reino afora, as personalidades distribuíam conselhos sobre a melhor forma de economizar energia, reciclar o guarda-roupa e, segundo reportagem do Daily Telegraph, compartilhar banhos. Um surrado par de calças de veludo cotelê do príncipe foi leiloado na ocasião, e teve sua renda destinada à Oxfam, fundada em Oxford durante a Segunda Guerra Mundial para aliviar os bolsões de fome.
Teve mais. Antes do evento londrino, o príncipe de Gales fez um giro de uma semana por dez cidades do Reino Unido para divulgar pessoalmente a sua cruzada de sustentabilidade. Para alegria dos moradores próximos à via férrea que corta Glasgow, Edimburgo, Bristol, Newcastle, Manchester e outras das cidades contempladas, Charles empreendeu seu périplo a bordo do exclusivíssimo Trem Real. Inaugurado pela Rainha Vitória em 1842 e usado em raras ocasiões, o trem é hoje movido a óleo de cozinha reciclado – e sua manutenção anual custa aos súditos o equivalente a mais de 2,1 milhões de reais. Além de Elizabeth II e do príncipe consorte Philip, o herdeiro do trono e Camilla são os únicos membros da família real autorizados a utilizá-lo.
Ideias que, há apenas algumas décadas, pareciam idiossincrasias de um príncipe esquisitão, agora arrebanham seguidores e são levadas a sério dentro e fora da Inglaterra. Foi por ocasião do 150º aniversário do Instituto Real de Arquitetos Britânicos, em 1984, que Charles pronunciou seu célebre veredicto sobre a projetada extensão da National Gallery de Londres, em Trafalgar Square. “A ala nova se assemelha a um monstruoso abcesso no rosto de um amigo querido e elegante”, decretou na soirée de gala, referindo-se ao centenário museu que abriga a coleção de arte europeia dos séculos XIII ao XIX.
Foi apenas o começo. Charles também condenou de forma implacável a portentosa British Library, inaugurada há doze anos em St. Pancreas, na região central de Londres: “Parece a sede de uma academia da polícia secreta.” A biblioteca pública de Birmingham? “Sugere um lugar onde livros são incinerados, e não guardados.”
Em fevereiro de 2005, ao discursar perante o Colégio Real de Médicos, alertou para os malefícios à saúde causados por um urbanismo que dá preferência ao uso do automóvel. E descascou as obras de arquitetura criadas como vitrines de ambições pessoais. Mais recentemente, sob aplausos de 1 700 recrutas aquartelados numa ala da Universidade de Essex antes de partirem para o Afeganistão, comparou as instalações a “uma lata de lixo virada de ponta-cabeça”.
Segundo caracterização feita pela New York Review of Books, o príncipe, também adepto da homeopatia para tratamento de câncer, entra em erupção em intervalos mais curtos do que o Monte Vesúvio. Por isso mesmo, convém prestar atenção (moderada) aos sinais que emite. Às vezes, podem até ser pertinentes.
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