Um dia, Fidel Castro se lembrou do açúcar, base da riqueza da ilha e sua maldição. Inicialmente, a Revolução quis pôr fim à monocultura. Mas, em 1969, Castro proclamou: “Esqueçam o que eu disse. Ano que vem, Cuba será o maior produtor do mundo” CREDITO: ELLIOTT ERWITT_1964_MAGNUM PHOTOS_FOTOARENA
Tempos heroicos
Chicletes, bordéis e uma fábrica de humanos em Cuba
Hans Magnus Enzensberger | Edição 151, Abril 2019
Tradução de Sonali Bertuol
As convulsões políticas e sociais do final dos anos 60, bem como o descompasso entre utopia e realidade, são o foco principal de Tumulto, livro do escritor e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, a ser lançado no Brasil. No texto a seguir – parte do capítulo “Lembranças de um tumulto (1967-1970)” –, o autor conta, na forma de uma entrevista fictícia, sua atribulada experiência em Cuba nos anos seguintes à Revolução.
Tradução de Sonali Bertuol
É comovente como você se interessou por moendas de açúcar, pecuária e estatísticas sobre a produção em Cuba! Na Alemanha, que eu me lembre, nabos e fábricas de cimento não mexiam com você.
Kafka escreveu “Investigações de um cão”. Minha ambição era mais modesta, mas Cuba é um país pequeno, e achei que seria adequado para uma pesquisa de campo, ainda que os resultados deixassem a desejar. De cães eu não entendo nada. Mas não queira negar minha afeição pelos cubanos.
Apenas com Fidel Castro você não estava muito empolgado.
A comparação com Dom Quixote, que se ouve com frequência, é ele quem atribui a si mesmo. “A Revolução”, ele disse em 1966, “mostrou que em Cuba há mais Dom Quixotes do que Sancho Panças.” O romance de Cervantes foi uma das primeiras publicações que Castro autorizou, com tiragem de 150 mil exemplares. Todos deveriam lê-lo. Também dá testemunho de sua identificação com o herói a estátua que ele mandou erigir no jardim da união dos escritores cubanos. Ela representa Dom Quixote como um combatente anti-imperialista.
Como se sabe, Castro deve muitos sucessos e muitos fiascos à sua língua grande. “Em dez anos, Cuba terá o mais alto padrão de vida do mundo”, prometeu ele em junho de 1959; “De que servem as palavras se o povo não goza de seus frutos”, disse em 1963; “No fim deste ano, nenhum gênero alimentício será racionado”, garantiu em janeiro de 1965. Nunca uma coletânea de seus discursos foi publicada. Isso não deverá acontecer enquanto ele viver.[1] A história precisa ser retocada e constantemente reescrita, um procedimento que Castro adotou de seus modelos soviéticos.
Mas uma coisa é preciso reconhecer. O comandante não estava disposto a se submeter incondicionalmente à aliança com Moscou. Embora não tivesse nada contra os fornecimentos russos de petróleo, ele não gostava das tendências revisionistas dos sucessores de Stálin. Já houvera um grave conflito em 1962, por ocasião da chamada Crise dos Mísseis. Castro teria preferido o risco de uma guerra nuclear a renunciar à instalação de mísseis nucleares em seu território. Esse desejo obsessivo acabou lhe rendendo sua maior humilhação. Quando Kruschev e Kennedy fizeram um acordo passando por cima dele, Castro teve um dos seus temidos acessos de fúria.
Como a maioria dos políticos, o comandante sabe-tudo era um ignorante em questões econômicas. Ficava irritado porque a economia não queria dançar conforme sua música. Igualmente sobrecarregado era o pobre Ernesto Guevara, que como ministro de Assuntos Econômicos teve que lidar com a questão de como fabricar pasta de dente. Como presidente do Banco Central, tinha que proteger uma moeda que quase não valia o papel em que era impressa.
Mais e mais campanhas eram decretadas, sempre eram anunciados novos planos para pôr um fim à escassez crônica. Como o regime conseguiu fazer desaparecer até mesmo a fartura tropical de frutas e legumes da ilha deverá permanecer um segredo seu.
Um dia, Castro de repente se lembrou do açúcar. Desde a época do domínio espanhol e norte-americano, o cultivo do açúcar era a base da riqueza da ilha, e sua maldição. Dele dependiam 80% de suas exportações. No final do século XIX, José Martí, o profeta da pátria, declarou: “É suicida um país que baseia sua economia num só produto.” Inicialmente, a Revolução quis pôr fim a essa monocultura. A produção caiu. Entre 1960 e 1969, com os preços em queda no mercado mundial, foram colhidas apenas entre 3,8 e 6,7 milhões de toneladas. Esqueçam o que eu disse, proclamou o comandante en jefe em outubro de 1969. Audaciosamente, anunciava: “Ano que vem, Cuba será o maior produtor de açúcar do mundo.” Agora, de repente, seriam 10 milhões, a safra das safras. Em La Rampa, a avenida vitrine da capital cubana, onde havia anúncios luminosos, mas nada para comprar, de um dia para o outro apareceu um display à la Warhol, meio bambo e espalhafatoso, com estrelas e setas de néon, recrutando para a colheita do açúcar.
Esse projeto tornou-se talvez a maior falência econômica que o sabe-tudo impôs a seu país. Em 1969 e 1970, a vida econômica cubana parou quase completamente. Universidades e escolas, fábricas e escritórios foram fechados por meses. Todos tiveram que se voluntariar para a colheita do açúcar. Divisões inteiras do Exército se puseram em marcha. Eles não apenas tinham que ir para as plantações, mas também impor nelas uma disciplina militar.
O ministro responsável pela indústria do açúcar disse ao comandante en jefe que seu objetivo não poderia ser alcançado. Ele provou que a capacidade física de todas as usinas era insuficiente para processar aquelas quantidades. As máquinas antigas, disse, só poderiam ser mantidas entre 40% e 70% da capacidade, pois constantemente precisavam ser consertadas e não havia peças sobressalentes. Além disso, não havia locomotivas disponíveis para o transporte, apenas carros de boi. O chefe ficou irritado e perguntou aos camaradas presentes: “Qual revolucionário tem coragem suficiente para substituir este pusilânime e assumir a tarefa?” Alguns que eram imunes a fatos imediatamente levantaram as mãos e o fracassado foi destituído no ato. Mas ele sabia do que estava falando e os eventos provaram que tinha razão.
C
omo você sabe de tudo isso? Por acaso estava lá?
Quem me contou isso foi o próprio ministro do açúcar, que foi demitido. Naturalmente a dita zafra foi um desastre. Embora a tentativa de Castro de quebrar o recorde tenha paralisado todo o país, ela ficou em parcos 8 milhões de toneladas. Desde então, a indústria do açúcar vem caindo rapidamente. Ela nunca se recuperou dessa prova de força.
Mas você não se deixou intimidar, e foi para o canavial com o machete na mão.
Isso não foi nessa colheita, mas um ano antes, na miserável zafra de 1969. Eu não queria de modo algum me juntar a uma brigada de turistas da Revolução, suecas loiras, hippies do Meio-Oeste, distintas filhas da Auvergne e seminaristas indisciplinados de El Salvador, que vagavam com facões nos canaviais de Camagüey. Eles se deixavam filmar e gostavam de dar entrevistas. Alguns logo estavam cansados demais para se perguntar para que serviria todo o esforço.
Não, eu preferia estar com os cubanos comuns que foram enviados para a colheita com a foice. Depois do trabalho, nas barracas improvisadas com beliches de três andares, pudemos descobrir como realmente eram as coisas no “primeiro território libertado das duas Américas”.
Quer ouvir alguns versos?
Você escreveu até mesmo um poema sobre isso?
Sim. Ele se chama “Um acampamento em Toledo”.
As pedras do dominó batendo
na mesa da cozinha,
o farfalhar no beliche embaixo
do meu:
o distinto cavalheiro do Congo lê
um velho número
do Le Monde Diplomatique.
O roçar da lima no machete,
o tossir e o choramingar do rádio
entre dois hits brasileiros
sob o telhado de zinco, Dubček
renuncia.
Na janela está o inimigo sem
número
que deve salvar o país,
impiedosa, alta e gorda
a cana verde viceja: no céu, negra,
a silenciosa coluna de fumaça
sobre o engenho.
Seu repertório parece ser inesgotável. Mas pode ser que ninguém mais queira saber dessas histórias antigas.
Então vamos parar por aqui.
Agora você ficou ofendido. Quer que eu vá embora?
Pode tapar os ouvidos, se quiser. Nos parques de Havana, mas também nas praças das aldeias na província, não é raro os estrangeiros serem abordados por crianças. Três meninas, duas negras e uma branca, 8 ou 10 anos, me pedem educadamente um chiclets. Não entendo de imediato o que é isso. Então me dou conta de que elas se referem a uma marca americana de goma de mascar.
“Como vocês sabem o que é isso?”
“De antes.”
Ela se refere à época anterior a 1959.
“Mas eu não sou americano e não tenho chiclets para vocês.”
“Então você é um russo.”
“Não, sou da Alemanha.”
“A Alemanha é tão bonita quanto Cuba?”
“Eu gosto de lá, mas daqui também.”
“Na Europa tem de tudo.”
“Sim, quando se tem dinheiro. Mas por que vocês precisam tanto assim de chiclets?”
“Queremos liberdade e chiclets, você não gosta de goma de mascar?”
“Não muito.”
“Isso é porque vocês têm tudo na Europa. A gente sempre quer o que não tem.”
Tudo isso foi dito literalmente, de modo espontâneo e sério, como se as meninas tivessem acabado de pensar isso ali no gramado.
N ão tem mais nada para contar?
Sim, tenho. Sabe o que é uma posada? Em Cuba, sempre existiram pensões e hotéis por hora para casais. Antes de 1959, Havana era o maior bordel das Américas. Somente a Nova Esquerda europeia acreditava que as posadas eram uma invenção da Revolução para a liberação sexual. Só o que havia de novo era que agora quem administrava esses estabelecimentos era o Estado, mais precisamente a Empresa Consolidada de Centros Turísticos. Dizem que nem todas são tão sujas quanto La Diana, no Malecón. Segundo ouvi, os colchões estão cheios de molas quebradas infernais, e as toalhas não são limpas.
Há grande variedade de posadas. Os clientes também podem procurar outros locais, por exemplo o Musical, o Canada Dry, o Chic ou o Encanto. Os entendidos do tema sabem de um que não consta na lista telefônica, onde até mesmo se pode entrar de carro: El Monumental.
Os homens fazem fila na frente dessas casas, especialmente nos fins de semana. Eles têm que se registrar. Não é preciso apresentar documento. A mulher permanece invisível e fica esperando na esquina ou no pátio interno até que o homem tenha conseguido um quarto. Então ela pode entrar por uma porta nos fundos.
As três primeiras horas custam 2 pesos e 60 centavos; com ar-condicionado, 3. No entanto, segundo me disseram, o aparelho está quase sempre quebrado. Um garçom leva cerveja ou rum até o quarto. Em algumas casas, o pedido é içado para o andar de cima dentro de uma cesta. As paredes são tão finas que é possível acompanhar facilmente todas as transações sobre o troco.
O Pullman espera pelos clientes com uma grande parede política, decorada com cartazes, duas bandeiras vermelhas e um retrato de Che Guevara. Me dizem que embaixo está escrito: El mejor servicio al pueblo! Um certificado atesta que os funcionários cumpriram as metas do Plano com consciência revolucionária. Um aviso pregado nos quartos diz: “Desde o lançamento da ofensiva revolucionária, não aceitamos mais gorjetas.”
Isso é bom.
Estranhamente, isso combina bem com o lado puritano ao qual o regime atribui importância: a segregação oficial em escolas e campos de colheita, e o cinismo do ministro da Educação, que diz: “Desde que preservem as aparências, por mim, podem fazer o que quiserem.” O aborto é acessível gratuitamente a qualquer momento; ninguém faz perguntas. Não há pílula, porque seria muito cara, mas pessários são prescritos sem reservas pelos médicos.
Porém o pior capítulo da educação sexual revolucionária foi a caça aos homossexuais. Para eles, foram instituídos campos específicos de trabalho forçado, as famigeradas UMAPS (Unidades Militares de Ajuda à Produção), para onde eram enviados e tratados em condições de campos de concentração os “vadios, contrarrevolucionários e imorais”. Homens que preferem homens, queriam dizer.
Naturalmente, com isso, os cubanos tinham que travar uma luta vã contra si mesmos; sim, pois os talentos sexuais nessa ilha subtropical conhecem tabus, mas não limites. Até mesmo no coração da capital, no Cementerio de Cristóbal Colón, sua maior necrópole, não muito longe da praça da Revolução, homens que se rendiam ao amor proibido se encontravam à noite, bem ao lado da sepultura coberta de flores da Milagrosa, sob as asas do gigantesco anjo de gesso que a protege;[2] um sinal de que perante as contradições e a anarquia desse povo, mais cedo ou, como é de se temer, mais tarde, qualquer doutrina está condenada ao fracasso.
Uma das razões para isso também pode ter a ver com o fato de que em Cuba a magia e o Iluminismo muitas vezes encontram lugar na mesma e única cabeça. Certa vez, esbarrei com uma dirigente que representava a associação de mulheres e um sindicato. Essa velha mulher negra com ar de feiticeira era ligada à santería, um culto afro-americano dos tempos da escravidão que é muito difundido. Os estudiosos gostam de chamar esse tipo de devoção de “religião popular”. Eles dizem que muitos dos seus ritos vêm da África Ocidental ou do Congo. De qualquer forma, tambores, dança e música inebriante fazem parte do culto. No transe, um santo católico se transforma sem problemas numa divindade africana. Assim, a ruiva Santa Bárbara, padroeira da artilharia, na santería se transforma em Xangô, o orixá guerreiro do trovão, um deus beligerante dos iorubás.[3]
Mas isso não é tudo o que o sincretismo cubano produz. A velha guerreira da associação de mulheres me disse que era obcecada não apenas pelos deuses e santos desse culto, mas também pelo marxismo. Naturalmente, ela também é vidente e conhece os poderes curativos de certas plantas. Não lê livros, mas adora histórias suculentas. Consegue ter voz em disputas político-culturais, ela me diz, porque não faz muito tempo participou de um seminário e, desde então, está familiarizada com a ideologia.
Alguns comandantes também são seguidores da santería e participam privadamente de seus rituais, enquanto outros preferem sessões espíritas. O mau-olhado é temido em todo lugar. Uma vez me permiti uma brincadeira e disse ao ministro da Cultura: “Quem é contra mim morre. Não sei como acontece, eu nunca evoco. Infelizmente é algo que não posso evitar.” O ministro bate na madeira. Dois meses depois, ele é destituído e banido para uma cidadezinha esquecida no interior, onde morre de repente vítima de um derrame.
Você tem uma queda por essas anedotas. Você acredita seriamente que elas dizem algo sobre a Revolução?
Eu sei que os historiadores se recusam a levar essas histórias suspeitas a sério. Mas isso é um erro! Elas costumam dizer mais do que qualquer teoria, e têm a vantagem de serem breves. Quer ouvir mais uma?
Vá em frente.
Uma noite, toca o telefone no nosso quarto. Uma desconhecida está na linha e deseja marcar um encontro; mas por quê? “Por admiração.” Algumas perguntas mostram que a mulher ao telefone não sabe bem quem ela admira e por qual motivo. A coisa parece claramente uma oferta. Em todos os países socialistas, essas meninas podem ser encontradas nas imediações de hotéis internacionais; para quem elas trabalham é outra questão. A desconhecida é insistente, tenta três, quatro vezes.
Por um acaso, depois venho a conhecê-la numa festa. S. é magra e pálida, mas mostra sinais de uma elegância pregressa. Antes obviamente bonita, talvez encantadora, agora parece arruinada. Álcool ou drogas? Os cabelos tingidos de ruivo, os olhos bem maquiados. Parece ter 40 anos, mas provavelmente é bem mais jovem.
Os pais dela eram podres de ricos, proprietários de terras da província de Oriente. Aos 17 anos, após um curso rápido de primeiros socorros, ela foi para Sierra. Isso em 1957. Teve um caso amoroso com Camilo Cienfuegos, um herói guerrilheiro que morreu misteriosamente depois que Castro o rebaixou. S. ainda hoje tem uma enorme fotografia desse revolucionário na parede do seu quarto. Na época, seu pai era a favor de Castro; como muitos cubanos ricos, ele queria se livrar de Batista e não levava a sério a retórica de Fidel. A filha conhece, da guerrilha nas montanhas, quase todos os que têm importância em Cuba hoje. (“Naquela época, cuidei dos ferimentos de todos esses heróis. Eles choravam como bebês.”)
Após o triunfo da Revolução, trabalha para o serviço de segurança do Estado. Depois de alguns meses, o primeiro conflito: ela se recusa a espionar camaradas de Sierra. Prisão, quatro meses de cárcere sem julgamento; seus contatos a ajudam a sair. Ela se casa com um jovem médico, que se divorcia quando S. se recusa a emigrar com ele para os Estados Unidos, onde hoje ele vive e prospera. Então ela se apaixona por um espanhol que faz negócios de importação e exportação em Havana e vai trabalhar no escritório dele. Um dia, Fidel Castro aparece ali e a reconhece. “Você aqui? Por que está ajudando um capitalista? Por que não trabalha para nós? Tome, me telefone!” Ela ainda tem em sua bolsa o pedaço de papel com o número secreto, ela o mostra, aqui, a prova! Afirma que nunca ligou de volta. Por que não?
O empresário espanhol deixa Cuba em 1966, a empresa é incorporada pelo Estado. Ela tem um visto espanhol no passaporte, mas também dessa vez se recusa a deixar a ilha. O espanhol até hoje lhe escreve cartas estranhas.
Ela para de trabalhar. O pai ainda vive no campo, e está consumindo a indenização que recebeu pelas terras expropriadas. Ela telegrafa e pede que ele lhe mande 2 mil pesos. O apartamento dela é grande o suficiente para convidar amigos, que ela alimenta, cuida e aloja por dias. Por isso a imensa geladeira, do ano de 1958, está quase sempre vazia. Então ela faz compras no mercado negro. Reclama de tudo, parece apática, mas ainda se define como revolucionária, especialmente quando está bêbada. “Socialismo, palavra estúpida, esses puxa-sacos com seus discursos são nojentos, mas o que vocês sabem sobre os pobres cubanos?! A coisa é necessária, é inevitável, além disso, é um assunto de Cuba. Os estrangeiros que calem a boca!”
Mas ela só dorme com visitantes do exterior. “Os cubanos tratam mal suas mulheres e as enganam. Mas se as esposas os enganam, eles ficam fulos da vida. E, quando estão satisfeitos, capotam como sacos. Simplesmente não conversam.” Ela troca de homens como troca de camisa, mas é extremamente ciumenta. Nos filmes, em cenas de nudez, pergunta ao amigo: “Você gosta dela?”, e fica furiosa se ele não negar.
Costura as próprias roupas. Os estrangeiros não lhe trazem nada. Ela está convencida de que é vigiada. O comitê de bairro onde os vigias dos blocos de apartamentos se reúnem a hostiliza. O pai queria que ela voltasse, mas ela diz que não tem vontade de morar na província e não quer trabalhar na agricultura de jeito nenhum. Depois disso, por um mês inteiro, ele não envia mais dinheiro. Ele terá que se conformar com o fato de que ela não se deixará chantagear.
Eu a conheci na casa da Cookie. Cookie ganha a vida bancando a supervisora num banho turco no Centro velho da cidade. No estabelecimento deteriorado reúnem-se músicos de jazz, meios poetas e fotógrafos em soirées melancólicas. Poemas são declamados de improviso, ou então um velho disco riscado dos Beatles é colocado na vitrola. Cerveja e rum, 25 ou 30 pesos a garrafa, são adquiridos no mercado negro. Por ali também circulam alguns mulatos com suas namoradas suecas, preocupadas com a arquitetura de interiores em Cuba; elas reclamam do mau gosto do governo. Fidel – um encolher de ombros. Uma francesa explica por que o Plano nunca vai funcionar. Um homossexual reclama da repressão. Mais uma vez, são contadas as piadas costumeiras (“Fidel morre e vai para o céu…”; “Fidel fala com a sua falecida mãe…”). Alguns estão desempregados, outros se agarram a seus empregos fictícios. A Revolução não lhes interessa, mas eles também não querem ir para Miami. De onde vem o dinheiro que gastam? Há uma espécie de serenidade sem esperança. Após vinte minutos, o disco é trocado. Cookie não se importa muito com aquilo tudo, mas S. parece estar exausta.
V
ocê está contando tudo isso só para desviar a atenção de si próprio e do que estava acontecendo em Berlim.
Em abril de 1968, as tavernas em Berlim fervilhavam de camaradas. Ninguém sabia muito bem se eram camaradas de época, de partido, de ideologia ou de cama.
Na Quinta-Feira Santa, um pobre-diabo, incitado pela perseguição da imprensa ao líder estudantil, deu três tiros em Rudi Dutschke, que ficou gravemente ferido e corria perigo de vida. Naquela mesma noite, alguns milhares de pessoas foram para a frente do edifício do grupo editorial Springer na Kochstraße e tentaram invadi-lo em vão. Com a ajuda dos provocadores habituais, alguns automóveis foram incendiados. Esse foi o início dos chamados distúrbios da Páscoa: barricadas, manifestações e batalhas campais em vinte cidades, nas quais aconteceram pelo menos duas mortes.
Mais uma vez eu não estava presente, e sim sentado numa sala do subúrbio de Vinohrady, em Praga, com meu amigo e tradutor Josef Hiršal. Bohumila, sua mulher, nos serviu Liwanzen.[4] Acho que não falamos sobre a Primavera de Praga; discutimos sobre as perspectivas da poesia experimental.
No dia 1o de maio, eu me encontrava novamente em casa. Em Berlim, os meios de comunicação estavam espumando. O mês de maio em Paris, os protestos estudantis na Polônia e a campanha de [Władysław] Gomułka contra o “sionismo”, a escalada da Guerra do Vietnã – o mundo parecia em chamas. E, no entanto, em Neukölln,[5] na grande manifestação de maio após o atentado contra Dutschke, prevalecia um clima estranhamente abafado. Eu não era o único que tinha a sensação de que estávamos num navio que começava a afundar. Naturalmente ninguém queria admitir.
Mas logo se multiplicaram os sinais de que o clímax da revolta havia passado. Em 30 de maio, o Bundestag, o Parlamento da Alemanha, aprovou as leis de emergência com os votos da Grande Coalizão.[6] Em junho, De Gaulle voltou ao poder. O maio parisiense chegara ao fim, e em agosto a invasão soviética liquidava o “socialismo com rosto humano” [na Tchecoslováquia].
Onde você esteve durante esse tempo?
Não lembro.
Filme preto, portanto, blecaute. Quer uma dica? O nome Lehning lhe diz alguma coisa?
Ah, sim, agora eu lembro. Estive várias vezes em Amsterdã.
Para se divertir, suponho. Ou os holandeses o esperavam para dar as boas-vindas?
Pois é, eles traduziram coisas minhas, embora os moffen, como os alemães eram chamados na Holanda, não fossem muito bem-vindos. Naquela época, era frequente furarem os pneus dos turistas sequiosos por umas baforadas de haxixe. Expliquei aos meus editores que eu era exatamente igual aos outros, mas eles não quiseram me ouvir. Tampouco nas muito admiradas vitrines em Walletjes,[7] onde as prostitutas esperam por clientes, não encontrei nenhum prazer. Eu me pus em busca de Arthur Lehning.
Ele era um homem com muitos endereços. Com sorte, poderia ser encontrado numa ilha perto da foz do rio Escalda, numa mansarda em Ménilmontant,[8] num quarto clandestino nos fundos de algum prédio em Barcelona, numa casa de fazenda no Maciço Central e, durante alguns anos, até mesmo na distante Jacarta. Isaiah Berlin se encarregou de que Oxford o escolhesse para ser fellow de All Souls, um daqueles monastérios seculares espartanos e elegantes como só se encontram na Inglaterra. Revela elevado grau de autoconfiança uma civilização que é capaz de cooptar tanto um velho anarcossindicalista como também seu oponente no Birkbeck College da Universidade de Londres, o obstinado comunista Eric Hobsbawm.
Mas o melhor era encontrar Arthur Lehning em sua velha mansarda à beira do rio Amstel. Ali as brilhantes placas de latão nas portas ostentando graus e títulos acadêmicos nunca pareciam com as das pessoas respeitáveis, que já aos 25 anos haviam desistido de descobrir quem eram. Na maioria das vezes, porém, o telefone tocava em vão, e no instituto diziam apenas: Arthur não está.
Há muitos anos ele foi cofundador do Instituto de História Social, no Herengracht, em Amsterdã. O arquivo sobreviveu a crises, revoluções, mudanças de lugar, a uma guerra mundial e a uma ocupação, e quem nunca trabalhou lá não sabe os tesouros que ele abriga.
Sei pouco sobre os tempos heroicos de Arthur. Eu o conheci como um cavalheiro de 70 anos, com grandes entradas em sua cabeleira farta, não como o jovem combativo de perfil afilado, que nos anos 20 editou a única revista do mundo impressa em quatro idiomas. Ela se chamava i10. Para listar seus colaboradores, algumas linhas não são suficientes: Schwitters, Benjamin, El Lissitzky, Arp, Gropius, Kandinsky… e continua.
Naturalmente, Arthur sempre foi um anarquista sui generis. Não uma caricatura com a bomba e o pavio na mão, como prefere retratá-lo o medo burguês. O weledelzeergeleerde heer[9] era um nômade, um pássaro migratório, que não deixou um ninho, mas uma pirâmide de conhecimentos. Os Archives Bakounine [Arquivos Bakuninianos] cresceram de tal forma que se converteram na obra de toda uma vida. Com intervalos de alguns anos, Arthur publicava um desses grandes volumes preto-azulados em quatro ou cinco idiomas. Espero que ele não escape voando de nós, os mais jovens de andar desengonçado. Mas ainda não terminei com Cuba.
Hoje em dia ninguém mais quer saber disso com tantos detalhes.
Eu ainda queria dizer alguma coisa sobre a fábrica de humanos.
Se é necessário.
O edifício na calle Carlos III, uma movimentada via arterial, antigamente era um mercado de carne. A grande instalação é vigiada por policiais mulheres com fuzis. O interior é aberto, é possível olhar dentro de seus diversos andares como que através de galerias. Uma rampa de concreto retangular parte do pátio para que seja possível chegar até o último andar sem subir um só degrau. Nas paredes, cartazes enormes anunciam: “Cuba triunfará! Cuba – um exemplo para toda a América!”
Primeiro, o ser humano é projetado com base em gravuras e reproduções de pinturas a óleo de enciclopédias antigas. Um homem negro molda cuidadosamente um crânio de gesso e o pinta. Outros fazem as pernas de gesso, tórax de gesso, mãos de gesso. Alguns passos adiante, na sala ao lado, esses moldes são preenchidos. Em seguida, começa a produção propriamente dita. Num grande salão, trabalham quatrocentos antigos funcionários públicos.
O ser humano é feito de jornais velhos molhados, que são prensados num grande molde de gesso e depois secos. Uma vez por dia o tambor é aberto e nasce o humano. Ele é cheio de buracos, completamente adulto, áspero e vazio. Faltam-lhe cérebro e pulmões, coração e baço, estômago, intestinos e o sexo. Ele está aberto, oco, sem atrativos; em sua pele, podem-se ler os editoriais do jornal do partido. Então ele é raspado e polido. Numa mesa adiante, uma mulher o mergulha em tinta verde berrante: é a cor de base. A seguir, é aplicado um rosa sinistro. Um velho mulato pinta os músculos com um pincel vermelho cor de sangue de boi. Em outras mesas, em outros moldes, são produzidos os cérebros: dezenas de esferas amareladas, todas cortadas ao meio, com veias azuladas. Burocratas mal-humorados pintam amígdalas, vesículas biliares, úteros. Um cavalheiro de óculos, muito bem-vestido, ocupa-se de um tórax aberto com um corte. Uma mulher gorda cuida das pernas; sua especialidade é um determinado osso. As pernas são penduradas em uma estrutura na horizontal, onde giram devagar. Também o humano, depois de totalmente montado, gira num compartimento alongado em torno de seu próprio eixo longitudinal; num dos suportes é afixado o crânio, no outro, os pés; alguns tendões amarelos são acrescentados. Finalmente, o ser humano é dotado de um pequeno número em preto. Ele pode ser desmontado a qualquer momento. Suas cores são chamativas, escandalosas, diabólicas; parecem ter sido criadas apenas para esse fim, pois não podem ser encontradas em nenhuma outra parte do mundo.
Nem tudo o que a fábrica produz serve nesse humano. Por exemplo, há uma longa série de orelhas enormes que, na escala em que foram feitas, seriam mais adequadas a um elefante. Estranhas formas atrás da concha auricular lembram formações geológicas. Além disso, são fabricados embriões de bezerros, estômagos de ruminantes, retos e relevos carnosos dos quais não se pode depreender se representam cavidades intestinais ou laranjas doentes com um eczema esverdeado.
Todos esses objetos são feitos um a um. A fábrica de homens é a inversão de um matadouro, uma vivissecção ao contrário. O velho cheiro de carne, penetrante, invencível, ainda está nas paredes, nas mesas de pedra, no calçamento do pátio.
A fábrica é apresentada com orgulho e satisfação. Sua produção é de trezentos a quatrocentos humanos por ano; a demanda é de milhares. É o Plano que exige. Tudo pela educação!
Antes da Revolução, havia material didático apenas em poucas escolas particulares da capital. Por um tempo, o novo governo importou caros materiais de ensino da Alemanha Oriental. Um ministro dedicado, que desaprovava essa despesa, passou na peneira os funcionários de sua pasta, encontrou pessoas dispensáveis, descobriu um mercado de carnes no qual não havia mais carne, foi atrás de gesso, tintas, papel velho, pincéis, encontrou o que precisava, engajou alguns especialistas que fossem capazes de treinar seus burocratas e criou esse monumento de surrealismo involuntário. Todos ali com seus pincéis compartilham de seu desprendimento, de sua confiança.
Pode me dizer o que significa essa fábrica? Um Grand Guignol pedagógico? Ou uma câmara de tortura de papel machê?
A mim pareceu uma ácida paródia do Novo Homem. Além disso, o caso mostra que é mais fácil transformar o subdesenvolvimento em arte do que eliminá-lo.
Trecho do livro Tumulto, a ser publicado em maio pela editora Todavia.
[1] Fidel Castro morreu em 2016, aos 90 anos.
[2] Amelia Goyri morreu em 1901, quando estava no oitavo mês de gestação. Desenterrado catorze anos depois, seu corpo não tinha sofrido putrefação e, por isso, começaram a chamá-la de Milagrosa. Atualmente, sobre o túmulo, há uma estátua de mármore da moça, segurando o filho e uma cruz.
[3] Na verdade, Santa Bárbara se transforma na esposa de Xangô, Iansã, a senhora dos ventos e tempestades.
[4] Tipo de panqueca, em geral servida como sobremesa.
[5] Distrito em Berlim.
[6] Entre os partidos União Social Cristã (CSU) e Partido Social-Democrata (SPD).
[7] Ou Bairro da Luz Vermelha, em Amsterdã.
[8] Bairro em Paris.
[9] Título que recebe, entre outros, um doutor honoris causa, na Holanda.