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    Uma analogia formulada pelo general Augusto Heleno sintetiza o sentimento geral dos militares sobre a atuação dos brasileiros no Haiti, entre 2004 e 2017: “Eu era um médico sem doente. A missão de paz foi o doente da minha carreira”​

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Terra desolada

O que o Brasil deixou para trás no Haiti

Fabio Victor | Edição 155, Agosto 2019

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O caminho que leva do Aeroporto Internacional Toussaint Louverture ao Centro da capital do Haiti, Porto Príncipe, margeia o gigantesco complexo de favelas de Cité Soleil, onde vivem cerca de 300 mil pessoas. A visão lembra a que se tem das periferias brasileiras nas entradas de algumas capitais: o amontoado de moradias precárias, esgoto correndo a céu aberto, lixo acumulado nas ruas, vendedores ambulantes perto da estrada.

Quem está ao volante é Mike Pinard, o motorista que será meu guia e às vezes intérprete durante nove dias. Com 31 anos, ele é formado em psicologia, mas não exerce a profissão. Dirige uma entidade para jovens carentes e faz alguns bicos, por causa da crise econômica. Sua mãe e sua irmã migraram para Boston há algum tempo e têm insistido para que ele deixe o país, como fizeram milhões de seus conterrâneos na última década – só nos Estados Unidos vivem cerca de 1,1 milhão de haitianos e haitiano-americanos. Apenas no ano passado, as remessas de haitianos no exterior para o Haiti somaram 2,98 bilhões de dólares, o equivalente a 30% do PIB nacional. Pinard, porém, quer ficar no país e contribuir para sua transformação. Candidatou-se em 2015 a prefeito de sua cidade, Carrefour, mas perdeu. Agora, pretende concorrer a deputado federal. 

Em Porto Príncipe, praticamente não há sinalização nas ruas, e é o instinto dos motoristas que define o fluxo do trânsito. Em meio à algazarra, salta aos olhos a graça extravagante dos tap taps, caminhonetes com pinturas e adereços coloridos que são o principal meio de locomoção dos haitianos. Os mercados a céu aberto se esparramam pelas calçadas carcomidas, exibindo uma opulência de frutas: fruta-pão, manga, mamão, banana, abacaxi. 

Pinard só dirige com os vidros fechados e o ar-condicionado ligado. Além de amenizar o calor, evita que penetre no veículo o cheiro acre presente em muitas áreas da cidade, exalado do lixo que se acumula nas ruas, nas calçadas e nos canais. No rádio do carro, ouvimos a entrevista de um senador, Garcia Delva, acusado de associação com um líder de gangues. “A situação do país não se resolve porque as gangues são ligadas a políticos. Se prendem um criminoso, um parlamentar manda soltar”, queixa-se Pinard, passando a mão no cabelo negro com pequenos cachos espetados. “O Haiti está um caos, eu não posso sair de casa depois das oito da noite. A Minustah fracassou.” 

 

A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – Minustah, no acrônimo em francês – foi criada para pacificar o país caribenho, mergulhado em violentos conflitos políticos e sociais. Lideradas por generais brasileiros, as tropas internacionais da missão atuaram entre 2004 e 2017 em todo o Haiti. O Brasil também foi o país que mais militares cedeu à missão: 37 500 homens, sendo 30 mil do Exército – o maior deslocamento de tropas ao exterior desde a Guerra do Paraguai, no século XIX

Entre os brasileiros, firmou-se a imagem de que a Minustah foi um grande êxito. Logo após a volta ao país do último contingente de militares, o Exército deflagrou uma campanha cujo slogan era: “Brasil no Haiti: Um Caso de Sucesso.” Editou livros e revistas e promoveu seminários e palestras para divulgar as ações de suas tropas no Caribe. Os militares mais graduados enviados ao Haiti são tidos atualmente como a elite do Exército. 

A imagem virtuosa da Minustah se espalhou pelo governo Jair Bolsonaro. Oficiais que estiveram na linha de frente da missão foram convocados pelo presidente a integrar postos-chave na Esplanada. Quatro ex-force commanders (chefes militares de missões da ONU) no Haiti tornaram-se ministros. Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, atuou no país caribenho entre 2004 e 2005, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, entre 2011 e 2012. O antecessor de Ramos, Carlos Alberto dos Santos Cruz, comandou a missão entre 2007 e 2009. E Floriano Peixoto, ex-titular da Secretaria-Geral e hoje presidente dos Correios, entre 2009 e 2010. O comandante do Exército, general Leal Pujol, ocupou a mesma posição entre 2013 e 2014. Além deles, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, foi chefe de operações do segundo contingente brasileiro entre 2004 e 2005. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, chefiou a seção técnica da Companhia de Engenharia entre 2005 e 2006. E o porta-voz de Bolsonaro, Otávio Rêgo Barros, foi comandante do batalhão brasileiro da Minustah em 2010.

Em entrevista durante a campanha de 2018, ao defender a não punição para policiais que matam bandidos, o então candidato Bolsonaro citou a experiência brasileira no país caribenho como exemplo do que seria sua política de segurança pública. “Nós, no Haiti, tínhamos uma forma de engajamento: qualquer elemento com uma arma de guerra, os militares atiravam, dez, quinze, vinte, cinquenta tiros, e depois ia ver o que aconteceu. Resolveu o problema rapidamente”, disse ele ao Jornal Nacional

 

As missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) nasceram na época da Guerra Fria e, no início, só observadores eram mandados às regiões conflagradas. Em 1956, foi criada a primeira missão com tropas, inclusive do Brasil, enviadas ao Egito para que o país e Israel não retomassem o conflito pelo acesso ao Canal de Suez. O fim da Guerra Fria ampliou o escopo das missões, levando os chamados “capacetes-azuis” – que em 1988 receberam o Prêmio Nobel da Paz – a operar em todo o mundo para evitar ou conter guerras civis. Fracassos em missões importantes nos anos 90, sobretudo na Bósnia e em Ruanda, países onde a ONU foi incapaz de conter massacres e genocídios, provocaram o que ficou conhecido como robust turn (virada robusta), uma mudança na tática militar das missões de paz. Em 2000, o Relatório Brahimi – em referência ao diplomata argelino Lakhdar Brahimi, autoridade das Nações Unidas que assinou o documento – recomendou que, frente às novas guerras, as missões fossem menos passivas e usassem mais a força.

O Conselho de Segurança, que autoriza o envio das missões, se guia pela Carta da ONU para definir a dose de força empregada numa operação de paz. O capítulo 6 dá diretrizes para a “resolução pacífica de conflitos” e a autodefesa. Operações mais espinhosas nascem sob a égide do capítulo 7 da Carta, que orienta como agir em situações de “ameaças à paz, violações da paz e atos de agressão” e autoriza a missão a “exercer, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que seja necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais”. A partir da “virada robusta”, as missões sob o capítulo 7 se tornaram predominantes.

A maior parte do dinheiro das Nações Unidas é destinada às missões de paz. O último orçamento anual do departamento responsável pela área foi de 7 bilhões de dólares, maior do que o orçamento operacional da própria ONU, de 2,8 bilhões de dólares. O dinheiro provém dos países-membros, que repassam uma parte de seus PIBs – Estados Unidos, China e Japão são os maiores contribuintes. O Haiti já recebera sete missões da ONU entre 1994 e 2004. Em 30 de abril de 2004, uma resolução aprovada pelo Conselho de Segurança afirmou que a situação do país constituía “uma ameaça à paz internacional e à segurança na região” e autorizou o envio, a partir de 1º de junho, de uma nova missão.

A Minustah foi criada nos termos do capítulo 7 da Carta, com três diretrizes para o Haiti: manter a segurança e a estabilidade; apoiar o processo político democrático, ajudando a organizar eleições; proteger e promover os direitos humanos. Toda missão depende do consentimento do país que a recebe.

Quando as tropas da ONU chegaram ao Haiti, o objetivo imediato era conter conflitos armados entre adversários e aliados do então presidente Jean-Bertrand Aristide, um padre que largou a batina para se converter em político de esquerda, com grande apoio dos pobres. Ele cumpria o segundo mandato em meio a denúncias de corrupção e fraude eleitoral, além de críticas da comunidade internacional. Aristide finalmente renunciou ao cargo e deixou o país num avião americano – mais tarde disse que só o fez para evitar um banho de sangue e também porque fora forçado ao exílio pelos Estados Unidos. Seus aliados tratam o episódio como um golpe de Estado. A renúncia não interrompeu os conflitos. 

Hoje, menos de dois anos após a saída da missão de paz, as coisas parecem ter voltado ao ponto de partida, com sinais trocados. O atual presidente haitiano, Jovenel Moïse, um empresário de direita novato na política, sustenta-se no cargo a duras penas, e o país está mais uma vez imerso em disputas violentas entre governo e oposição. Moïse foi eleito em 2016 com votos de apenas 10% dos eleitores aptos (no Haiti, o voto não é obrigatório, e a abstenção foi de 80% naquela eleição). Investigações do Tribunal de Contas do país iniciadas em 2017 revelaram que políticos e burocratas se apropriaram de verbas do programa Petrocaribe – por meio do qual a Venezuela, desde 2007, subsidiava petróleo ao Haiti, que podia usar parte do dinheiro em programas sociais e de infraestrutura. Moïse é um dos acusados de corrupção. 

No ranking de desenvolvimento humano da ONU, o Haiti ocupa a 163ª posição entre 188 nações. Mais da metade dos 11 milhões de habitantes vive abaixo da linha da pobreza (com menos de 2,41 dólares por dia). A desvalorização crescente do gurde, a moeda local (em dezembro, 1 dólar comprava 73 gurdes; em julho, 94), e a inflação de 18% forçam o país a recorrer a empréstimos do FMI, o Fundo Monetário Internacional – a dívida externa é de 2,6 bilhões de dólares. A bancarrota é ampliada por uma grave crise energética, em parte derivada da ruína da Venezuela. 

A crise atual começou em julho do ano passado, quando o governo aumentou entre 40% e 50% os preços dos combustíveis. Protestos violentos explodiram poucas horas depois que o Brasil foi eliminado pela Bélgica nas quartas de final da Copa do Mundo da Rússia, em 6 de julho – a Seleção Brasileira é idolatrada no país, onde ninguém duvida que o governo fez o reajuste durante a Copa contando com a euforia que a vitória do Brasil causaria nos haitianos. A Minujusth, uma missão menor da ONU voltada para justiça, polícia e direitos humanos, que chegou ao Haiti logo depois da Minustah e deve deixar o país em outubro, mostrou-se incapaz de conter a escalada da violência.

A segunda onda recente de revolta popular se deu em novembro, em resposta a um massacre na favela de La Saline, onde gangues incendiaram casas, e mataram dezenas de moradores (os números variam, conforme a fonte, de 26 a 71), inclusive crianças. Corpos foram esquartejados e queimados, alguns jogados no lixo ou oferecidos como comida a cachorros e porcos. Em fevereiro deste ano, diante do silêncio do governo sobre o caso Petrocaribe, protestos com mortos e feridos pararam o Haiti por dez diasestradas foram bloqueadas, escolas cancelaram aulas, o comércio fechou. O presidente Moïse ficou por um fio. Só não caiu porque recebeu apoio dos Estados Unidos em troca do rompimento com a Venezuela, parceira histórica do Haiti: em janeiro, o país não reconheceu um novo mandato de Nicolás Maduro. 

Apesar disso, o Departamento de Estado dos Estados Unidos – equivalente ao Ministério das Relações Exteriores – em fevereiro rebaixou o Haiti ao nível 4 de risco, o mais alarmante nas recomendações aos americanos em viagem para o exterior. O nível 1 não faz restrições a viagens a determinado país; o 2 sugere cautela; o 3 adverte que o viajante reconsidere a viagem; e o 4 recomenda: não viaje. Em 9 de abril, o Departamento de Estado adicionou ao alerta para o risco de “crime e distúrbios civis” a possibilidade de ocorrerem “sequestros” – velho fantasma da violência haitiana. Duas semanas depois desse novo informe, desembarquei em Porto Príncipe, numa quarta-feira, 24 de abril. 

 

Com o auxílio de três mapas dos bairros de Porto Príncipe – dois afixados na parede e um disposto no chão –, o antropólogo carioca Pedro Braum explicava as causas da explosão de violência na capital. O sol já estava se pondo, mas o calor ainda era intenso naquela segunda-feira, na sede principal do Viva Rio Haiti, na periferia da cidade. Coordenador de projetos da ONG carioca no país caribenho e especialista em segurança comunitária, Braum frequenta o Haiti desde 2008, onde passou a morar a partir de 2010. Em seu doutorado em antropologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele estudou as “bases” da Grande Bel Air, ou seja, os grupos sociais desse complexo de favelas de quase 200 mil habitantes. 

Sem qualquer aviso, dois homens irromperam na sala. Desandaram a falar com Braum em crioulo haitiano, que é a língua mais usada no país e um dos dois idiomas oficiais, junto com o francês. Apesar de eu não compreender o que diziam, era possível perceber que eles agiam de modo a intimidar Braum. Um deles, que parecia um boxeador peso pesado e não tirava o palito da boca ao falar, debruçou-se bruscamente sobre a mesa do brasileiro. Percebendo minha preocupação, Braum me apresentou aos dois homens. Eles me estenderam as mãos, dizendo apenas o prenome: Djepy, o mais forte, e Williamson, um sujeito baixinho, ex-policial, principal líder comunitário do chamado Alto Bel Air, região ainda pouco afetada pela guerra entre gangues que domina a parte baixa da favela. Há meses essa guerra assombra a capital haitiana. 

Os dois foram ao Viva Rio Haiti com o objetivo de conseguir verba para organizar eventos festivos no Dia da Bandeira, 18 de maio, que eles achavam ser um momento oportuno para envolver a população, sobretudo os jovens, em atividades socioculturais. “A pressão está grande, a tentação está grande”, disse Williamson, sobre a crescente propensão dos jovens da favela a entrar para o crime. “A única maneira que eles veem de sobreviver é com uma arma na mão, sendo soldados de alguma gangue ou assaltantes”, completou Djepy. Passaram a enumerar os bairros vizinhos já conflagrados, ou “degenerados”, na expressão deles: “Martissant, dejeneré; La Saline, dejeneré; Tokyo, dejeneré.”

Braum pareceu não se abalar com a pressão da dupla. Num crioulo fluente, lembrou projetos que a ONG já apoiara e argumentou que, naquele momento, seria difícil conseguir dinheiro. “Nossos projetos terminam no meio do ano, estamos raspando o fundo do tacho”, justificou. 

Contei aos dois homens que viajara ao Haiti para descobrir como estava o país depois da Minustah e saber qual era o balanço que a população fazia da missão. “Se a situação está desse jeito, claro que as tropas da ONU não cumpriram um bom papel, não ajudaram a combater as causas dos problemas nem a fortalecer nossas instituições”, afirmou Williamson. “Não se tem paz com estômago vazio. A Minustah fracassou”, arrematou Djepy. 

À primeira vista, as estatísticas oficiais de violência não espantam um brasileiro. Dados da Polícia Nacional do Haiti tabulados pela ONU mostram que, em 2014, houve 10,7 homicídios por 100 mil habitantes. Entre 2015 e 2018, a taxa variou de 8 a 10 casos. É uma proporção bem menor que a brasileira: 31,6 mortos por 100 mil habitantes, em 2017 – um recorde histórico, como informado no Atlas da Violência de junho passado. Especialistas alertam, entretanto, que no Haiti a subnotificação de crimes é grande, e a explosão de violência nos últimos meses certamente irá elevar as estatísticas futuras, como Braum me disse ter percebido de antemão a partir de seus levantamentos na Grande Bel Air. Cerca de 70% dos assassinatos no país ocorreram na região metropolitana de Porto Príncipe, que concentra 25% da população haitiana e foi o principal teatro de operações das tropas brasileiras.

Assim como em muitas partes do Brasil, no Haiti os grupos armados se alimentam da relação promíscua entre poder e criminalidade, mas lá as fronteiras entre a política formal e a bandidagem são mais difusas. Ao mesmo tempo, o protesto popular está enraizado na cultura nacional. A cada crise, multidões saem às ruas, mobilizadas pelas bases das favelas. Políticos dependem dessas bases para fazer campanha nas áreas mais pobres e alguns deles costumam financiá-las e dar apoio aos protestos mais violentos, que terminam em dechoukaj, o termo em crioulo para o caos que se segue aos atos – quebra-quebras, saques e incêndios, não raro com mortos e feridos.

Cerca de 60% dos haitianos (ou 6,6 milhões de pessoas) vivem em áreas urbanas, e, dentre estes, aproximadamente 75% (ou 5 milhões) moram em favelas. A atual guerra entre gangues, ainda que seja um desdobramento de disputas partidárias, é motivada pelo controle do comércio e dos serviços em locais onde o Estado não chega – ou seja, na maior parte das favelas. 

Um dos focos do atual conflito é o mercado popular de Croix des Bossales (Cruz dos Boçais, termo antigo para designar os escravos africanos), uma imensa feira livre próxima à zona portuária, na qual as gangues cobram taxas dos vendedores. Cité Soleil, que foi tida como “pacificada” em 2008 e apontada co-
mo modelo quando a Minustah acabou, voltou a ser uma das “zonas vermelhas” da Grande Porto Príncipe. Segundo Braum, os três maiores e mais violentos complexos de favelas da região metropolitana – Grande Bel Air, Martissant e Cité Soleil – estão conflagrados ao mesmo tempo, com disputas internas e guerras de grupos rivais. “É a primeira vez que vejo isso aqui em onze anos”, me disse Braum. “De um ano para cá, as coisas pioraram muito. É difícil enxergar uma saída.”

 

O bairro de Bel Air está incrustado no coração de Porto Príncipe, próximo ao Palácio Nacional (sede do governo federal) e a prédios estatais. No passado, dada a sua localização privilegiada, foi um dos locais que a classe média e os ricos escolheram para se estabelecer. A partir da segunda metade do século XX, com o crescente êxodo rural, o bairro começou a se degradar, e a elite se mudou para outras áreas, como a região das montanhas que cercam a cidade, especialmente o município de Pétion-Ville, onde também vivem os estrangeiros ricos. 

Bel Air, hoje, está todo favelizado e foi o primeiro bairro conflagrado da capital em que a Minustah começou a atuar, tanto por causa de sua posição estratégica quanto por haver ali um reduto de partidários de Aristide ainda revoltados com a queda do presidente. Em setembro de 2004, três meses depois da chegada da missão, os chimères, ala armada dos militantes pró-Aristide, promoveram em Bel Air uma série de protestos por eles batizada de “Operação Bagdá”. As manifestações resultaram em mortes e na decapitação de três policiais – e tropas da ONU reagiram, numa das primeiras incursões violentas a favelas. 

Naquela época, o professor de capoeira Jean-Marc Rodney frequentava os grupos comunitários de Bel Air e chegou a integrar gangues armadas. Ainda vive no bairro, onde atua em um projeto do Viva Rio Haiti. Foi ele quem me guiou pela parte menos turbulenta, no Alto Bel Air. Circulamos por ruas asfaltadas, entre vielas com casas de alvenaria – um ambiente parecido com o de uma favela urbana numa metrópole brasileira. 

Poucas quadras abaixo, gangues espalham o terror pelos bairros vizinhos. O limite entre as duas áreas não é evidente, o que faz de qualquer giro pela região uma aventura de alto risco. O motorista Mike Pinard estava tenso ao transitar por ali. Numa das vias de acesso ao bairro alto, que se limita com a “zona vermelha”, a paisagem é de terra arrasada: uma feira de quinquilharias se espalha pela rua inteira, em meio a pilhas de lixo – o lugar, segundo Pinard, é um comércio de objetos roubados. 

“Em todos os conflitos, o governo e os parlamentares estão envolvidos. As autoridades abastecem as gangues, carros oficiais vêm deixar armas de madrugada”, disse Rodney. Ele me mostra uma cicatriz no queixo. “Fui detido e espancado por soldados brasileiros das tropas da ONU, logo que elas chegaram ao bairro”, contou. Por pressão da população local, foi solto horas depois. “As primeiras forças eram muito amadoras, destruíam casas em busca de bandidos, atiravam em qualquer um. As seguintes vieram com mais preparo.” 

Rodney acabou se integrando ao programa de desarmamento coordenado pela Minustah. À medida que a Bel Air se consolidou como projeto-piloto das ações da missão, ele passou a ter uma imagem melhor das tropas brasileiras. “Bel Air era intransitável, hoje não é mais. Não é uma zona verde ainda, mas não é mais vermelha: é uma zona amarela.” É uma posição minoritária, ele pondera. “A população, aqui, não tem uma boa imagem da Minustah, porque muitos foram vítimas. Eu mesmo não aceito 100%, porque fui vítima e vi outros serem também.”

 

Ao tomar posse, em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma política externa que buscava diversificar parcerias e ampliar o protagonismo internacional do Brasil. A campanha pela reforma do Conselho de Segurança da ONU e por um novo assento permanente para o país no colegiado – restrito aos Estados Unidos, à Rússia, à China, à França e ao Reino Unido – tornou-se uma das bandeiras do Itamaraty. Foi nesse contexto que, em 2004, o Brasil se dispôs a liderar o contingente militar da Minustah, a função de maior visibilidade de qualquer missão, cujo comandante só está subordinado ao enviado especial do secretário-geral da ONU, chefe civil e autoridade maior. 

“Víamos como mérito que a presença do Brasil no Haiti pudesse latino-americanizar a ONU e promover uma democratização mais autêntica das operações de paz”, disse Celso Amorim, chanceler brasileiro durante os oito anos do governo Lula, numa conversa em seu apartamento em Copacabana. O ex-chanceler negou, porém, que o pleito brasileiro tenha sido usado como moeda de troca para que o país assumisse a Minustah. 

Ao mesmo tempo que o Brasil pleiteava um lugar no Conselho de Segurança, havia uma demanda da parte dos militares, como me disse o ministro da Defesa do governo Bolsonaro, Fernando Azevedo. Ele trabalhava à época no gabinete do comandante do Exército, Francisco Albuquerque. “Nossa ida ao Haiti se deve muito ao general Albuquerque, que achava que o Brasil tinha de participar mais de missões de paz, por motivos políticos e estratégicos. Batalhou muito por isso com o presidente Lula e trabalhou junto com o ministro da Defesa”, afirmou Azevedo.

Em junho de 2004, os primeiros contingentes da Minustah começaram a atuar oficialmente em solo haitiano. Foi a primeira missão de paz brasileira sob o capítulo 7 da Carta da ONU. Depois de Suez, o país mandara tropas a Angola e Moçambique nos anos 90, mas sempre sob a égide do capítulo 6. No Haiti, apesar de o mandato autorizar o uso de mais força, os soldados brasileiros passaram a agir num limbo entre as duas diretrizes, uma espécie de “doutrina seis e meio”. A cautela tinha a ver com a própria inexperiência nesse tipo de missão, mas também seguia uma orientação: a Constituição brasileira preconiza o princípio de não intervenção nas relações internacionais. Além disso, o governo Lula, pouco antes de abraçar a missão, defendia a permanência do presidente Aristide no poder.

 Como a violência e a convulsão social perdurassem no país, a postura cautelosa adotada pela Minustah depois das primeiras operações em Bel Air passou a ser criticada, conforme relatou o general Augusto Heleno, seu primeiro force commander. “Países como Estados Unidos, França e Canadá e até mesmo a elite local haitiana exerceram forte pressão sobre o comando da força para que se usasse mais violência na repressão aos grupos armados. Apesar disso, a Força Militar tem utilizado a energia necessária na execução de suas tarefas, evitando o uso indiscriminado”, escreveu ele em 2007 num artigo na versão brasileira da revista Military Review, do Exército americano.

Um dos entraves para a missão deslanchar, segundo vários militares brasileiros, era a Polícia Nacional do Haiti, a PNH, criada em 1995 para substituir as Forças Armadas do país, extintas em 1994 por Aristide por causa de suas constantes sublevações. Heleno listou os problemas da PNH – “corrupção, falta de equipamento, abusos constantes de direitos humanos, atuação como polícia política, uso indevido de violência, […] total descontrole” – e acusou a polícia de ter atacado “deliberadamente uma passeata pacífica”, matando manifestantes em fevereiro de 2005. 

Confrontado com as críticas, Mario Andresol, diretor da PNH de 2005 a 2012, não se deixou abalar. “Sim, a PNH era muito despreparada no início, e isso foi nocivo à nossa população”, disse ele. “Mas era despreparada desde a primeira missão da ONU que veio aqui para prepará-la, em 1994. Então a ONU falhou em prover ao Haiti uma força policial, como se propôs. Eu chamaria isso de uma expressão do fracasso das Nações Unidas. E dentro de toda a polícia do mundo há membros violentos e corruptos. A cúpula da PNH estava ciente, e a Corregedoria abriu várias investigações para acabar com esses problemas.”

Andresol me recebeu na espaçosa sala de visitas de sua casa protegida por dois policiais à paisana, em Belvil, um condomínio fechado a 10 quilômetros do Centro de Porto Príncipe. O local é parecido com os condomínios onde vivem brasileiros ricos, com seguranças na entrada, ruas muito limpas e casas luxuosas. Quando deixou a polícia, Andresol passou a atuar como modelo e estilista. Lançou uma grife com o seu nome e abriu uma loja em Pétion-Ville, que já fechou, por causa da crise. O ex-policial resolveu disputar a eleição presidencial de 2015 como candidato independente. Após a anulação das eleições por denúncias de fraude, negou-se a participar do novo pleito e denunciou uma armação para eleger Jovenel Moïse, o atual presidente. Agora, atua como consultor de segurança, mas não desistiu de reabrir a sua loja.

Logo ao sentarmos à mesa, contou que sempre procurou ter uma relação cordial com as tropas da Minustah. Elogiou os comandantes brasileiros, sobretudo o general Elito Siqueira, terceiro force commander (“um cara baixinho, sorridente e muito legal”), mas também fez críticas à missão. “Eles vinham aqui por seis meses apenas, período médio de cada contingente, e precisavam de pelo menos três meses só para entender a realidade. Quando estavam começando a entender, tinham de voltar. Houve um problema de falta de continuidade para ajudar o país a construir suas instituições. Para mim, não basta vir aqui, ocupar, atuar numa missão. Precisaria estar comprometido a ajudar a construir esta nação.”

Quando Andresol entrou na PNH, a instituição tinha 5 mil policiais; quando saiu, em 2012, eram 10 mil; e hoje são 16 mil. “Só sei que nos esforçamos para criar unidade e disciplina lá dentro”, afirmou. Ao assumir a Presidência em 2017, Moïse resolveu recriar as Forças Armadas. Há, por enquanto, seis generais de Exército, e as tropas estão sendo treinadas no México e no Equador por militares daqueles países. 

 

Ainda hoje, haitianos se lembram do general Augusto Heleno como uma voz moderada no começo da Minustah, um force commander que gostava de ressaltar que estava à frente de uma missão de paz, e não de ocupação. Conforme aumentavam as pressões da ONU e da elite haitiana para que a Minustah contivesse as gangues – o maior tormento eram os sequestros –, aumentou também o uso da força militar. Telegramas secretos revelados em 2010 pela organização WikiLeaks mostraram que a diplomacia americana chegou a dizer que enviaria tropas ao Haiti caso a missão não contivesse o avanço das gangues.

O estágio mais traumático da “virada robusta” da Minustah foi a Operação Punho de Aço, deflagrada em 6 de julho de 2005 no complexo de favelas de Cité Soleil para capturar o líder da gangue Dread Wilme, que acabaria sendo morto naquele dia pelos militares. Segundo telegramas diplomáticos dos Estados Unidos, foram gastos 22 mil cartuchos na operação. A ONU jamais divulgou um número oficial de vítimas, mas organizações independentes estimaram, a partir de depoimentos de sobreviventes, que morreram de trinta a quarenta civis. No documentário It Stays With You, dos norte-irlandeses Cahal McLaughlin e Siobhán Wills, lançado em 2017, os moradores do bairro Bois Neuf, em Cité Soleil, descrevem a operação como um massacre e contam como rajadas de balas disparadas de helicópteros atingiram famílias em suas casas. Na época, Heleno classificou a operação como um êxito e disse que os responsáveis pelas mortes de civis (ou “danos colaterais”, no eufemismo militar) foram criminosos ligados a Wilme que queriam se vingar de moradores que ajudaram as tropas da ONU.

Depois de sua volta ao Brasil, Heleno deu mais detalhes sobre a operação, numa palestra em setembro de 2006, em São Paulo. “Nós estabelecemos um ponto forte [espécie de trincheira reforçada] no interior de Cité Soleil, cheio de proteção. […] Toda noite, tinha tiroteio de quinze, vinte minutos em cima do ponto forte. Eu botei os [soldados] peruanos lá. Eles fizeram uma festinha boa ali. Acertaram um monte de bandido; eles eram bons atiradores. Aí eles me perguntaram uma vez: ‘General, por tradição, bandido, quando cai lá, morto ou ferido, vem gente pra buscar o corpo. O que a gente faz? Podemos atirar em quem vem buscar o corpo do bandido?’ Eu tava tão machucado com essa crise que respondi: ‘Atira também, amigo de bandido também toma tiro para eles pararem de vir buscar o corpo.’ Chega um ponto que a gente perde a paciência”, disse Heleno, conforme relato do portal Carta Maior, em 20 de setembro de 2006. Questionado em seguida pelo portal sobre a declaração, o general afirmou que os homens da missão apenas reagiram aos tiros dos bandidos que iam buscar corpos. 

Heleno deixou o Haiti nesse momento de transição tensa, passando o bastão ao general Urano Bacellar, o segundo force commander. A violenta operação em Cité Soleil não conseguiu pôr fim à onda de sequestros e a pressão sobre o comando da Minustah continuou. Na madrugada de 7 de janeiro de 2006, Bacellar foi encontrado morto em seu quarto de hotel. A perícia indicou que se suicidara. Nos bastidores, militares e diplomatas brasileiros atribuíram o ato extremo à pressão crescente, por parte do comando da ONU e de empresários haitianos, para que o general aumentasse o poder de fogo das operações militares.

Bacellar foi substituído pelo general Elito Siqueira, e a este se seguiu Carlos Alberto dos Santos Cruz, o primeiro force commander a cumprir dois anos seguidos – os mandatos a princípio eram de apenas um ano. Santos Cruz desembarcou no Haiti em janeiro de 2007 e comandou a missão até abril de 2009. Quando chegou, o país ainda enfrentava muitos problemas, mas já havia um presidente eleito, René Préval, o efetivo militar era maior e o chamado “processo de pacificação” dos bairros seguia a todo vapor – Cité Soleil era a exceção. 

Santos Cruz consolidou a “pacificação” em Cité Soleil, e a experiência no Haiti ajudou a construir a imagem de militar muito duro atribuída a ele no Exército. Depois de atuar no país caribenho, o general liderou uma missão de paz maior e mais complexa na República Democrática do Congo, onde grupos rebeldes armados confrontavam o governo. Com isso, seu prestígio cresceu na ONU. Em 2017, a pedido do secretário-geral da organização, António Guterres, preparou um relatório sobre o crescente número de baixas de capacetes-azuis em operações de paz. A conclusão do documento, que ficou conhecido na ONU e entre especialistas em defesa como “Cruz Report”, é que as missões não devem hesitar em usar a força. Na capa e na conclusão do relatório, Santos Cruz escreveu: “Precisamos mudar nossa forma de atuação. A fraqueza mata nosso pessoal.” 

 Além de Santos Cruz, outros dois force commanders brasileiros no Haiti, Floriano Peixoto e Luiz Guilherme Paul Cruz, obtiveram o reconhecimento da alta burocracia da ONU e até hoje têm bom trânsito na entidade. Paul Cruz foi diretor de Parcerias Estratégicas para Operações de Paz da organização, de 2014 a 2017. Peixoto integrou o Painel Independente de Alto Nível sobre Operações de Paz. Soa curioso que Santos Cruz e Floriano Peixoto tenham sido convocados para o governo por Bolsonaro, que prometeu tirar o Brasil da ONU, alegando que a instituição “não serve para nada” e é “uma reunião de comunistas”. Numa entrevista em julho último à revista Veja, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, reiterou essa ideia, ao comentar a demissão de Santos Cruz da Secretaria de Governo: “A linha internacional dele era ‘ONU Futebol Clube’, uma linha globalista, afinada com as teses da esquerda.”

 

Até o final de 2009, a situação do Haiti parecia ter se estabilizado. A violência arrefecera, assim como a turbulência política, e vigorava dentro e fora do país o sentimento de que a Minustah cumprira seu papel e poderia encerrar os trabalhos. Mas ocorreu o pior. 

Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto devastou o país, atingindo principalmente a região metropolitana de Porto Príncipe. De início, o governo haitiano falou em 316 mil mortos, depois revisou para 220 mil, número de vítimas que a ONU passou a adotar. Morreram na catástrofe pelo menos 21 brasileiros, entre eles dezoito militares e a médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança. Centenas de milhares de pessoas ficaram feridas, e mais de 1 milhão, desabrigadas. A infraestrutura já frágil do Haiti foi destruída, inclusive a Penitenciária Nacional, que ruiu, permitindo que presos escapassem. A violência explodiu no país.

O brasileiro Ricardo Seitenfus, então representante especial da OEA (Organização dos Estados Americanos) no Haiti, acompanhou a substituição da liderança militar brasileira pela americana na operação humanitária – os Estados Unidos enviaram navios, equipamentos e tropas. O force commander era o general Floriano Peixoto. Segundo Seitenfus, um acordo informal foi feito, para não desmoralizar a Minustah: os Estados Unidos assumiriam a logística da ajuda às vítimas, e caberia à missão da ONU as tarefas militares e de policiamento. “Contrariando o que havia acordado com o Brasil, o Comando Sul dos Estados Unidos passou a controlar militarmente todas as atividades humanitárias na região metropolitana de Porto Príncipe”, contou o ex-representante da OEA no livro Haiti: Dilemas e Fracassos Internacionais. Mas não só os americanos assumiram o controle do país. O terremoto marcou “o retorno abrupto ao comando de fato da Minustah do Tridente Imperial”, escreveu Seitenfus, aludindo às três potências que mais exercem poder sobre o Haiti: Estados Unidos, França e Canadá.

Doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra e professor aposentado, Seitenfus frequenta o Haiti desde os anos 90, em mais de uma ocasião como enviado de governos brasileiros. Já publicou quatro livros sobre o país e é o brasileiro mais citado como referência nos círculos acadêmicos e intelectuais haitianos, por sua crítica ao modus operandi da comunidade internacional. Ele considera que a recorrência de ajuda humanitária estrangeira é um estorvo para o país. “Gastou-se 30 bilhões de dólares nos últimos 33 anos no Haiti para nada”, me disse. “Quanto mais fraco e debilitado for o país, melhor para as ONGs. O poder dos supostos amigos do Haiti é enorme. Para eles, a culpa do atraso é dos haitianos ou da elite do país, nunca dos outros.” Seitenfus é um dos analistas que veem como positivo o trabalho realizado pela Minustah até o terremoto. Mas avalia que a missão não deveria ter se estendido por tanto tempo, após a reconstrução. “Foi uma missão muito longa, e essas são más missões de paz. O sistema da ONU não está acostumado a um tipo de situação assim, onde não há guerra civil nem conflito étnico.” 

 

O Haiti ainda não se recuperara do trauma do terremoto quando veio à tona o pior legado da Minustah. Em outubro de 2010, crises de diarreia aguda e vômitos começaram a acometer moradores da zona rural de Mirebalais, no centro do país. Logo surgiram os primeiros diagnósticos: tratava-se de um surto de cólera, doença jamais registrada no Haiti até então. Como metade da população não tem acesso à água potável e apenas um terço possui saneamento básico, a doença transmitida por fezes ou por água e alimentos contaminados se espalhou de maneira fulminante. Muitos dos primeiros contaminados morreram em cerca de duas horas. Foram registrados 820 mil casos de cólera no Haiti desde então. Na estatística oficial, pelo menos 9 792 pessoas morreram, mas acredita-se que o número seja muito maior, uma vez que pode ter havido subnotificação nos primeiros meses. 

Convocado pela Embaixada da França em Porto Príncipe, a quem o governo haitiano pedira ajuda no combate ao cólera, o epidemiologista francês Renaud Piarroux passou a investigar as origens da doença no país. Concluiu que ela teria se espalhado a partir do vilarejo de Meye por soldados da Minustah oriundos do Nepal, país que naquele ano vivia uma epidemia de cólera – em treze anos, tropas de mais de vinte nações diferentes integraram a missão. Moradores vizinhos à base militar testemunharam ter visto nepaleses com sintomas da doença. Mais tarde, reportagens mostraram que o conteúdo das fossas na base militar transbordou e foi despejado em um afluente do Artibonite, o principal rio do Haiti.

Apesar das evidências, a ONU negou que a doença tivesse se espalhado a partir de uma instalação sua. Enquanto os casos de mortes se sucediam, começaram a ser publicados estudos de especialistas de renome, em publicações sérias, atribuindo a epidemia a fatores ambientais: como o vibrião do cólera é nativo de estuários e sistemas fluviais em todo o mundo, catástrofes naturais, como o terremoto, poderiam explicar o surgimento da doença. Um painel de especialistas a serviço da ONU também endossou, num primeiro momento, a hipótese ambiental.

Entretanto, vários estudos científicos desde o final de 2010 comprovaram a investigação do epidemiologista francês. A ONU levou seis anos desde os primeiros casos para admitir seu papel na tragédia. Num relatório demolidor apresentado em outubro de 2016, Philip Alston, relator especial para extrema pobreza e direitos humanos da ONU, definiu como “moralmente inconcebível, legalmente indefensável, politicamente autodestrutiva e totalmente desnecessária” a abordagem que a organização fizera até então do cólera no Haiti.

Durante todo esse período, Piarroux – professor da Faculdade de Medicina da Sorbonne e chefe do serviço de parasitologia do hospital Pitié-Salpêtrière – acumulou dados sobre a responsabilidade da ONU. No livro Choléra: Haïti 2010-2018, Histoire d’un Désastre, lançado em março deste ano na França, o epidemiologista revelou falsificações, omissões e artimanhas utilizadas pelas Nações Unidas. Informes oficiais foram divulgados pela entidade alterando dia e local dos primeiros surtos. Registros da enfermaria do campo militar diziam que não houvera casos de cólera entre os soldados. Os canos que conectavam os banheiros às fossas foram substituídos e clorados. “A falha no controle de saúde dos militares que se deslocam para uma missão de paz é muito grande, é uma enorme falha sanitária. Mas a falha política, a de escolher mentiras e mistificações para cobrir a falta inicial, parece-me ainda mais grave”, disse Piarroux, em entrevista por e-mail. A comunicação imediata sobre a origem da doença, observou ele, teria evitado milhares de casos e mortes. Na conclusão de seu livro, escreveu: “A Minustah alcançou um lugar nada invejável na história: o de uma missão de paz que causou uma grande devastação para a população que deveria proteger.” 

Um dos últimos atos do sul-coreano Ban Ki-moon como secretário-geral da ONU foi pedir desculpas ao povo haitiano pelo cólera. Num malabarismo diplomático, admitiu que a organização tem “responsabilidade moral” pela epidemia, mas não reconheceu que ela foi espalhada pelos soldados da Minustah. No mesmo discurso, em 1º de dezembro de 2016, Ban anunciou a criação de um fundo internacional para combater a doença, abastecido com doações dos países-membros das Nações Unidas. Os depósitos no fundo não alcançaram até hoje nem 5% dos 400 milhões de dólares prometidos na ocasião. 

Ricardo Seitenfus também escreveu um livro sobre o tema, Les Nations Unies et le Choléra en Haïti: Coupables mais Non Responsables? [As Nações Unidas e o Cólera no Haiti: Culpadas mas Não Responsáveis?], no qual critica a “campanha de desinformação de amplitude excepcional” feita pela organização para escamotear a origem da tragédia. O livro foi lançado no Haiti no final do ano passado e deve sair em breve no Brasil. Principalmente por causa do cólera, o ex-representante da OEA mudou radicalmente sua visão da Minustah. Hoje, como me disse, ele a classifica como “um fracasso, uma das piores missões de paz da história da ONU”. 

A Carta da ONU garante à organização privilégios e imunidades no cumprimento de suas missões nos territórios de seus países-membros – na prática, o país que recebe a missão assina um acordo se comprometendo a não acolher processos contra a entidade nem contra os capacetes-azuis em cumprimento da missão. Um grupo de advogados do Haiti e dos Estados Unidos, representando famílias de 5 mil vítimas do cólera, tentou, desde 2011, obter indenizações. De início, os advogados procuraram a própria ONU, que possui um comitê interno de reclamações para analisar casos de danos pessoais ou morte causados por suas forças de paz. A queixa não prosperou, e o grupo foi à Justiça Federal dos Estados Unidos (onde fica a sede da ONU, em Nova York), mas perdeu em duas instâncias e desistiu de recorrer à Suprema Corte.

“Quando a ONU se recusa a reparar um erro, as vítimas não têm onde recorrer, no mundo, para obter justiça”, me disse Beatrice Lindstrom, uma das advogadas americanas que defendeu as vítimas. “É um sistema que resulta em completa impunidade para a ONU e um completo vazio para as vítimas de seus abusos. A própria organização fundada para promover os direitos humanos em todo o mundo acaba operando sem respeito pelos direitos humanos.” 

 

A mesma imunidade da ONU contribuiu para que muitas das denúncias de abusos cometidos pela Minustah terminassem sem apuração ou punição. Duas delas envolviam militares do Brasil. Soldados do país foram acusados de prender sem mandado e entregar à polícia haitiana, em janeiro de 2005, o ativista Jimmy Charles, que depois apareceu morto na cadeia. O force commander era Augusto Heleno. Em 2011, uma respeitada organização haitiana de direitos humanos denunciou que soldados do Brasil espancaram e roubaram três jovens haitianos – Luiz Eduardo Ramos, atual ministro da Secretaria de Governo, comandava a missão. Nenhum militar brasileiro foi punido nestes casos – investigações internas da ONU inocentaram os acusados.

Capacetes-azuis de outras nacionalidades denunciados por abusos sexuais foram tratados de modo distinto em seus países. Fuzileiros navais uruguaios que estupraram em 2011 o adolescente haitiano Johnny Jean foram condenados à prisão em seu país. Militares do Paquistão e Sri Lanka também sofreram sanções por abusos sexuais, depois que voltaram à sua terra. E estão sendo movidas no Haiti ações de reconhecimento de paternidade contra soldados da Minustah – o escritório que representa as mães acionou capacetes-azuis do Uruguai, da Argentina, do Sri Lanka e da Nigéria.

Perguntei por escrito à ONU se o Brasil, como líder militar da Minustah, tinha responsabilidade, direta ou indiretamente, pelo controle sanitário das bases e tropas militares da missão – se o force commander deveria inspecionar a saúde das tropas desembarcadas e as instalações das bases militares, por exemplo. “O controle sanitário é uma responsabilidade compartilhada dos componentes civis e militares da missão”, respondeu a organização, também por escrito. Acrescentou que, embora “na maioria dos casos” a infraestrutura de esgoto seja de responsabilidade da missão, como parte da construção do acampamento, “em alguns casos” os países que contribuem com tropas implantam suas próprias instalações e laboratórios de testes. 

No início da epidemia do cólera, o force commander da Minustah era o general Paul Cruz, que classificou como boatos com motivação política as informações de que a doença saíra de uma instalação da ONU. Mesmo depois que estudos e reportagens amparados em fatos já haviam atribuído a origem à base nepalesa, Paul Cruz se manteve taxativo.

Em reportagem do jornal O Globo, de 24 de abril de 2011, uma jornalista enviada ao Haiti a convite do Exército escreveu: “Chegou-se a cogitar que a culpa pela propagação da doença era de soldados nepaleses da Minustah. Mas o general de brigada Luiz Guilherme Paul Cruz, que comandou até este mês os capacetes-azuis […], afastou completamente esta hipótese. ‘Fizemos uma investigação minuciosa e rigorosa com especialistas na área de Saúde e de Saneamento Público, inclusive com exames nos alojamentos dos nepaleses e até as fossas foram examinadas. Os resultados mostraram que não houve transmissão por parte dos soldados nepaleses. Acreditamos que o consumo de frutos do mar pode ter ajudado na propagação da doença. Além disso, tivemos o desafio das enchentes no fim do ano passado, o que pode ter auxiliado no aparecimento do cólera’, explicou o ex-comandante das Forças de Paz.”

Em julho passado, quando falei com Paul Cruz, ele continuava a sustentar que a origem da epidemia não fora uma ba-
se da ONU, mas problemas ambientais. “O então secretário-geral, Ban Ki-moon, assumiu a responsabilidade da ONU. Mas eu vi alguns dados e tenho convicção de que não foi de lá”, disse o general, por telefone, citando “um estudo da Universidade Johns Hopkins contratado pelas Nações Unidas” – na verdade, um trabalho publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e assinado, entre outros, por especialistas da Universidade Johns Hopkins. O estudo em questão, entretanto, foi desmentido pelas evidências levantadas por Piarroux e outros epidemiologistas, como o americano Ralph Frerichs, autor do livro Deadly River: Cholera and Cover-Up in Post-Earthquake Haiti [O Rio Mortal: Cólera e Acobertamento no Haiti Pós-Terremoto].

Paul Cruz argumentou ainda que o primeiro surto da doença se deu em SaintMarc, a mais de 100 quilômetros da base nepalesa. Piarroux e Frerichs, entretanto, revelaram que Saint-Marc só foi atingida depois que o vibrião foi levado pelo rio Artibonite, a partir da região onde ficava a missão. Para o general brasileiro, a ONU perdeu a “guerra de comunicação” no episódio e por isso reconheceu ter responsabilidade pelo cólera no Haiti. “No final, você diz: ‘No limite tenho responsabilidade, porque ocorreu uma epidemia num lugar e trouxe problemas, sem sombra de dúvidas.’ Nesse sentido, as Nações Unidas têm e eu tenho também uma responsabilidade sobre isso.”

Ainda hoje, mesmo com o reconhecimento da ONU, muitas outras autoridades brasileiras que estiveram no Haiti ignoram ou fingem ignorar a tragédia. No livro A Participação do Brasil na Minustah (2004-2017), editado pelo Exército em parceria com o Instituto Igarapé, não há uma única menção à epidemia de cólera. Quando toquei no assunto com o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, ele demonstrou surpresa. “Nem me lembro desse fato aí”, disse, e perguntou ao contra-almirante Carlos Chagas, assessor especial do gabinete, que estava ao seu lado: “Cólera? Mas chegou isso aqui?” Chagas fez uma breve explanação sobre o caso para o ministro. 

Uma rara voz entre militares graduados a reconhecer a gravidade do que ocorreu é o general Ajax Porto Pinheiro, o último force commander da Minustah, para quem a epidemia de cólera foi “o ponto negativo da missão”. “Creio que a ONU não admitiu completamente porque, se admite, vêm os processos, mas não posso falar pela ONU”, me disse Porto Pinheiro, hoje assessor especial da Presidência no Supremo Tribunal Federal, em seu gabinete. Ele comandava – ainda como coronel – o batalhão brasileiro no Haiti quando ocorreu o terremoto de 2010. Voltou para lá em 2015 para liderar a missão. O Brasil já se preparava para deixar o Haiti, e as tropas tinham sido reduzidas à metade.

Ao completar um ano na função, Porto Pinheiro testemunhou a passagem pelo país do furacão Matthew, que matou 546 pessoas, afetou 2 milhões de haitianos e forçou o adiamento das eleições presidenciais de 2016. A estratégia traçada pelo force commander – deslocar tropas antecipadamente para potenciais alvos do furacão – e a atuação da Minustah foram cruciais para minimizar os efeitos da nova catástrofe. “A experiência mais importante para mim foi lidar com as duas crises humanitárias, que se desdobraram em outras crises, de segurança, política”, disse o general. Somados os dois períodos (quatro meses da primeira vez, dois anos na segunda), Porto Pinheiro foi o líder militar brasileiro que mais tempo passou no Haiti. Ele prepara um livro sobre a experiência.

Embora o foco da missão fosse a segurança, a Minustah dedicou parte considerável de seu esforço a trabalhos humanitários. Os militares brasileiros demonstram orgulho pelas chamadas Acisos (Ações Cívico-Sociais), realizadas muitas vezes a contragosto do comando civil da ONU, como revelou o relatório final enviado ao Exército pelo coronel Luiz Augusto de Oliveira Santiago, comandante do batalhão brasileiro de dezembro de 2005 a junho de 2006. “As atividades de ajuda humanitária continuaram sofrendo algum tipo de restrição por parte da Minustah. A alegação é de que os militares não estariam aqui para realizar tarefas no campo humanitário. Não recebemos, com isso, nenhuma ajuda da missão”, escreveu Santiago. No mesmo relatório, ele descreveu algumas dessas tarefas: atendimentos médicos e odontológicos; distribuição de alimentos, água, medicamentos e kits escolares; retirada de lixo das ruas; projeções de filmes e apresentações de capoeira.

O texto do coronel e outros trechos de relatórios finais de comandantes brasileiros na Minustah foram reunidos por Juliana Sandi Pinheiro em sua tese de doutorado em relações internacionais, dedicada à atuação brasileira na missão e defendida na Universidade de Brasília. Pinheiro constata que a importância dada pelos brasileiros às atividades sociais e humanitárias foi crucial para “romper os vínculos disfuncionais que uniam as gangues à sociedade haitiana”. Os relatórios dos comandantes trazem, ao mesmo tempo, queixas sobre a inércia de outros segmentos da Minustah e revelam debilidades das tropas, como capacidade operacional aquém das cobranças e desconhecimento da história e da cultura haitianas. 

 

Os treze anos de atividade da Minustah custaram 7,1 bilhões de dólares à ONU. O governo brasileiro gastou, conforme o Ministério da Defesa, 2,6 bilhões de reais (cerca de 870 milhões de dólares, na conversão atual), sendo que 456 700 dólares foram reembolsados pelas Nações Unidas. As Forças Armadas aproveitaram a oportunidade para se equipar: ao final da missão, 2 782 toneladas de material bélico, no valor de 46 milhões de dólares, foram revertidas ao Brasil.

A remuneração foi, ao longo desse período, um atrativo para os militares do país: um soldado, além de dispor de alojamento e alimentação gratuitos (bancados pela ONU), recebia quase 1 mil dólares por mês; um capitão, 3 250 dólares, nos dois casos pagos pelo Brasil – mais que duas vezes o salário brasileiro, a depender da cotação do dólar na época; o force commander ganhava 19 mil dólares brutos, pagos pela ONU, que descontava 21% do total. 

Nenhum brasileiro morreu em combate. Dezoito das 26 mortes de militares do país durante a missão ocorreram em consequência do terremoto. Perguntei à ONU e ao Ministério da Defesa brasileiro o número de haitianos mortos em operações da Minustah. A ONU se negou a informar, respondendo apenas que as queixas que recebe de vítimas são objeto de “investigação e revisão por uma comissão de inquérito, cujos resultados são comunicados ao reclamante e ao Estado-membro [o Haiti, no caso]”. O Ministério da Defesa disse não ter os dados, mas informou que, nos treze anos da missão, as tropas brasileiras usaram 167 063 unidades de munição letal e 27 288 unidades de munição não letal. 

A ONU fez um balanço positivo da participação do Brasil na missão haitiana. “Os brasileiros ganharam reputação como exemplo de competência e capacidade operacional nas missões de paz”, escreveu o subsecretário-geral para Missões de Paz, o francês Jean-Pierre Lacroix, num texto publicado na Folha de S.Paulo, em 2017. 

Na avaliação dos militares brasileiros, a Minustah foi um êxito absoluto para o país, em particular no que diz respeito à formação dos militares. “Os jovens soldados que foram ao Haiti hoje são sargentos e capitães, e continuam sendo testados. Os generais que virão no futuro serão bem melhores que os da minha geração”, afirmou Ajax Porto Pinheiro. O ministro Fernando Azevedo disse ver apenas aspectos positivos na participação brasileira e enumerou as razões: “Pela parte operacional, logística, por poder atuar em conjunto com forças de outros países. Ganhamos expertise em missões de paz, criamos o ccopab [Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, subordinado ao Exército]. E pela experiência real como militar. Nos seis meses que fiquei lá, coloquei em prática o que aprendi nas escolas militares por que passei.” 

Uma analogia formulada pelo general Augusto Heleno sintetiza o sentimento geral dos militares em relação à operação no Haiti e é repetida como mantra por eles: “Eu era um médico sem doente. A missão de paz foi o doente da minha carreira.”

 

Hoje porta-voz da Presidência da República, o general Otávio do Rêgo Barros comandou em 2010, no Haiti, o batalhão brasileiro na Minustah. De volta ao Brasil, liderou no ano seguinte a operação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. “Foi mais fácil comandar no Haiti, porque a flexibilidade dava mais tranquilidade a mim e a meus subordinados. No Alemão, você tomava vinte tiros até poder atirar”, disse ele, em uma conversa no Palácio do Planalto. 

Rêgo Barros listou as regras que o Exército tinha de seguir no Alemão, conforme a legislação brasileira e acordos com o Ministério Público: “Se for atacado, atira para cima com a pistola; se o ataque continua, entra com arma não letal; se continua, entra com arma leve; e só então prossegue com arma pesada.” Um pouco exaltado, exclamou: “Olha a responsabilidade de quem está chefiando! Depois reajustei as regras em interlocução com o Ministério Público.” O general relatou um episódio que viveu numa favela carioca. “Estávamos patrulhando uma área, e um bando criminoso começou a atirar. Atingiram meu segurança, ao meu lado. Reagi”, relembrou. Perguntei se ele havia matado alguém. Rêgo Barros fez uma pausa, deu um sorriso e respondeu: “Não apareceu mais ninguém.” 

Nos últimos anos, aumentaram no Brasil as convocações das Forças Armadas para operações de garantia da lei e da ordem relacionadas à segurança pública. Segundo o Ministério da Defesa, desde 1992 foram 47 glos motivadas por violência urbana ou greve de policiais militares, sendo vinte delas somente nos últimos dez anos. As mais espetaculosas foram no Rio de Janeiro e, embora os militares se queixem de que essa não é uma função deles, o fato é que continuam a ser acionados com esse propósito. A campanha de oficiais do Exército por regras mais flexíveis de uso da força pelas tropas tomou ares de campanha durante a intervenção federal na segurança pública no Rio – o general Augusto Heleno foi o maior porta-voz da adoção de uma doutrina semelhante à empregada no Haiti – e ganhou apoio institucional com a chegada de Bolsonaro à Presidência. 

Não é descabido supor, portanto, que o aprendizado adquirido por brasileiros na Minustah venha a ser usado como estímulo a uma política federal de segurança com menos sanções ao agente da lei que mata. O primeiro exemplo prático apareceu no chamado projeto anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que propôs isentar de punição autores de homicídios cometidos sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O texto ainda está em tramitação no Congresso. 

O impacto das experiências das tropas brasileiras no Minustah sobre as operações do Exército no Brasil é um tema que tem atraído o interesse de pesquisadores estrangeiros. A dupla norte-irlandesa que fez o documentário sobre o chamado massacre de Cité Soleil vem neste ano ao Brasil investigar os efeitos do período haitiano nas ações nas favelas do Rio. Em seu doutorado no King’s College, de Londres, o alemão Christoph Harig comparou as experiências da Minustah e de operações de GLO do Exército no Brasil. Ele entrevistou 119 soldados e oficiais brasileiros que participaram de missões de paz ou de GLOs – dentre eles, 81 que integraram a Minustah –, revelando a percepção das tropas quanto ao uso da força. “A maioria reclamou das restrições em operações de GLO e da consequente falta de eficácia em operações contra criminosos. Alguns se disseram frustrados por não poderem usar a força em missões no Brasil do mesmo modo como faziam no Haiti – não poderem, por exemplo, atirar contra alguém que os atacou se essa reação colocar inocentes em risco”, disse Harig, que é professor da Universidade Helmut Schmidt, uma das três pertencentes às Forças Armadas da Alemanha.

 Para Harig, a adoção de regras semelhantes às de uma “missão robusta”, como a Minustah, aumentaria o risco de mortes de civis em áreas urbanas pobres. “Do ponto de vista do estado de direito, é muito problemático transformar um sargento ou tenente em juiz e executor: na verdade, eles teriam o poder de decidir sobre a morte de alguém. Isso aumentaria a probabilidade de ocorrências como o recente tiroteio no perímetro da Vila Militar”, afirmou o pesquisador, em relação ao episódio em que militares atiraram mais de duzentas vezes no carro de uma família carioca, matando o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo.

 

Os espanhóis foram os primeiros a invadir, em 1492, a ilha habitada pelos índios tainos, hoje dividida entre dois países: Haiti, a oeste, e República Dominicana, a leste. Os integrantes da expedição de Cristóvão Colombo batizaram a ilha de La Española. A Espanha a manteve como colônia indivisível até meados do século XVII, mas priorizou a porção mais próspera, a leste. Piratas franceses passaram a explorar a região oeste, cujo controle a França, depois de um acordo com os espanhóis, assumiu oficialmente em 1697. A região foi batizada de Saint-Domingue. 

Baseada na força de trabalho de escravos africanos, Saint-Domingue tornou-se – mesmo com um território equivalente ao do estado de Alagoas – uma potência colonial, como relata o historiador americano Laurent Dubois, em Haiti: The Aftershocks of History [Haiti: Réplicas da História]: “No século XVIII, foi a maior produtora de açúcar do mundo, exportando mais do que as colônias de Jamaica, Cuba e Brasil combinadas. E produzia metade do café do mundo […]. Era mais valiosa para a França do que todas as treze colônias da América do Norte eram para a Inglaterra.” Dubois ressalta que “a colônia, onde os escravos superavam enormemente em número os seus proprietários, era um barril de pólvora”. 

A chegada das notícias sobre a Revolução Francesa, em 1789, produziu o efeito de “um palito de fósforo” lançado no barril. A construção de uma identidade cultural poderosa, com língua (o crioulo) e religião (o vodu) próprias, fortaleceu o cenário para a revolta. Em 1791, liderados por Toussaint Louverture, os cativos se insurgiram, e dois anos depois a escravidão foi abolida. Louverture acabou sendo preso pelos franceses, e o comando do levante foi assumido por Jean-Jacques Dessalines, que derrotou os exércitos enviados por Napoleão e em 1804 proclamou a independência do Haiti, um dos nomes pelos quais os indígenas chamavam a região (“terra de montanhas”, em taino).

A insistência em atribuir ao Haiti o aposto de “país mais pobre das Américas” (ou “do hemisfério ocidental”), o que continua sendo verdadeiro, raramente se faz acompanhar de informações sobre a história do país. O Haiti constitui um caso único de tomada definitiva de poder por escravos – houve outro antes, em São Tomé, atual São Tomé e Príncipe, mas os portugueses retomaram o minúsculo país perto da costa ocidental da África. Os haitianos pagariam caro pela rebeldia. O temor de que escravos de outras nações americanas repetissem a revolução ocorrida na ilha caribenha ganhou, inclusive, um verbete na historiografia do período: “haitianismo”. 

Para reconhecer a independência do Haiti, a França exigiu da ex-colônia uma compensação financeira – calculada em mais de 20 bilhões de dólares em valores atuais –, que foi aceita mediante um acordo em 1825 e paga ao longo de décadas, à custa de um crescente endividamento (um dos motivos apontados para a queda de Aristide em 2004 foi a deflagração por ele de uma campanha para exigir de volta o dinheiro). Já os Estados Unidos só reconheceram a independência haitiana em 1862. À autonomia se seguiram incontáveis conflitos internos, opondo a elite mulata à maioria negra. Já no século XX, a pretexto de dar fim aos confrontos políticos, os americanos invadiram o país em 1915 e lá ficaram por dezenove anos. Como o Haiti está a cerca de mil quilômetros da costa da Flórida e a menos de 100 quilômetros de Cuba, os Estados Unidos nunca mais deixaram de manter a ilha sob sua órbita.

A chegada do médico anticomunista François Duvalier, o Papa Doc, ao poder, em 1957, iniciou um dos períodos mais nefastos da história haitiana, uma ditadura familiar que, com a complacência americana, se prolongou até 1986. Com a morte de Papa Doc, em 1971, seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, então com 19 anos, herdou o poder. A atmosfera sombria da ditadura de Papa Doc retratada no romance Os Farsantes, do inglês Graham Greene, ajudou a difundir pelo mundo os horrores do regime, cujo símbolo mais famoso eram os Tonton Macoutes, os membros da polícia política que perseguiam e torturavam opositores. Baby Doc caiu em 1986 e exilou-se na França. Seguiu-se um período de grande instabilidade política e econômica, até a eleição de 1990, que levou Jean-Bertrand Aristide pela primeira vez ao poder. Parecia que a democracia tinha chances de se estabelecer no Haiti, mas a agitação política, os golpes de Estado e a violência não cessaram.

Mike Pinard, o meu guia no Haiti, nem era nascido nas ditaduras de Papa Doc e Baby Doc, mas quando toquei no assunto ele disse que “naquele tempo era melhor”. E pôs-se a tentar explicar: “Havia mais ordem, mais respeito, mais segurança e mais paz.” Lembreilhe das mortes e torturas a opositores, da censura, da corrupção do regime, do empobrecimento do país, mas Pinard não se comoveu. “Você diz isso, mas é que o Brasil é uma democracia forte. Nós nem conseguimos organizar uma eleição. Acho que não estamos preparados para uma democracia.”

No perímetro do Campo de Marte, um conjunto de parques contíguo à favela Bel Air, estão espalhadas estátuas dos heróis da independência do Haiti – Louverture, Dessalines e seus sucessores Henri Christophe e Alexandre Pétion. A mais impactante de todas as estátuas é a de Nèg Mawon (Negro Marrom), que homenageia o escravo rebelde. Na perna esquerda há um resto da corrente que acabou de ser rompida; na mão direita, um facão; com a cabeça erguida para o alto, ele sopra uma grande concha, como se conclamasse sua raça à revolução. 

O Palácio Nacional, destruído no terremoto, ainda não foi reconstruído, e as grades que cercam o terreno para evitar a aproximação de manifestantes estão recobertas por uma tela verde, que não permite a quem está do lado de fora enxergar as instalações provisórias da sede do governo*. A Catedral de Bel Air, ali perto, continua em ruínas. Em outra extremidade do campo vê-se a Torre do Bicentenário, um projeto do governo Aristide para os festejos dos 200 anos da independência do país, em 2004. Nunca foi terminada, é uma medonha carcaça de concreto e ferro. 

Em biroscas ou bancos de praça no Campo de Marte se acumulam rodas de pessoas para ouvir rádio, ver jogos de futebol na tevê e discutir política. Converso com uma vendedora ambulante de pastel, Immaculé Lys. “Qual Minustah?”, ela indagou. “Aquela que trouxe o cólera? Bom, quando estavam aqui tinha menos gangues e menos baderna nos protestos contra o governo, isso foi bom e faz falta. Mas o dinheiro que se gastou com a Minustah poderia ir para a nossa polícia, que é mais importante, mas recebe muito menos.” 

“É como se o Haiti fosse um laboratório”, disse o sociólogo e professor de inglês Vladimir Cadet, no pátio da Faculdade de Etnologia da Universidade do Estado do Haiti, ao lado de carcaças de carros queimados há dois anos num protesto estudantil. “Não importa de onde venham, podem vir de lugar nenhum, mas chegam aqui, viram superstars e de repente dizem que fizeram mil coisas. E quem vai ser culpado pelos problemas? Nós. Mas não depende só de nós. A Minustah e a comunidade internacional têm uma parcela de responsabilidade grande.”

Na principal universidade privada do país, a Quisqueya, o reitor Jackie Lumarque, um matemático com doutorado em educação, qualificou a missão como um “fracasso total”. “Houve um gasto enorme de dinheiro, mas não criou dinâmica na economia, porque a maior parte do consumo foi na República Dominicana, onde os soldados e oficiais da ONU iam passear”, afirmou Lumarque, em seu gabinete. “Criou-se no Haiti uma expectativa muito grande quanto ao Brasil, de que se pudesse transferir para cá experiências de manejo com a violência social que vocês têm, mas isso não ocorreu. Ao final, há uma percepção de que a permanência prolongada da Minustah era artificial, não correspondia às necessidades do país, mas da ONU.” Perguntei a Lumarque sobre a metáfora do primeiro doente, cunhada pelo general Augusto Heleno. “É uma maneira de reconhecer que ele não foi útil ao Haiti. O doente foi muito mais útil para o médico do que o médico para o doente”, respondeu o reitor.

Uma rara pesquisa sobre a popularidade da Minustah no Haiti, realizada pelo instituto americano Newlink e publicada em 2013 pelo jornal Le Nouvelliste, mostrou que, entre todas as instituições citadas no questionário, a missão da ONU era a mais desacreditada. Somente 10,9% dos entrevistados diziam confiar nela. No imaginário haitiano, em suas manifestações mais populares, como o Carnaval e os grupos de rara (blocos que saem às ruas principalmente na Páscoa), a imagem da missão é de algo malvado e grotesco. Uma música famosa no país diz que Minustah vòlè kabrit (Minustah rouba cabrito, em crioulo). Foi também criado um trocadilho para as tropas da ONU: Turistah.

 

Na antessala do escritório de Mario Joseph, o advogado que defendeu vítimas do cólera e atua em ações de paternidade contra os capacetes-azuis, há uma estátua de madeira da figura da Justiça. Um dos pratos da balança está cheio de notas de dólar, desequilibrando o que deveria estar equilibrado. “A Minustah foi uma força de ocupação, não poderia ter sido boa. Por muitos anos, os Estados Unidos usaram o Exército para controlar a política local. Como não havia mais Exército, os americanos usaram a ONU, e ao mesmo tempo usaram o Brasil, vendendo a ideia de que podia ganhar um assento no Conselho de Segurança”, disse Joseph, em sua sala decorada com um pôster de Dessalines e uma foto de Che Guevara. Para o advogado, na busca pela vaga no Conselho de Segurança, o Brasil “traiu as batalhas do povo haitiano”. “Eu assinei uma carta dizendo que Lula é um prisioneiro político. Mas, como um advogado que luta por democracia, não posso aceitar que Lula tenha mandado tropas para o Haiti.”

Ouvi representantes das duas mais respeitadas organizações haitianas de direitos humanos. Pierre Esperance, da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH), considera que a Minustah “simboliza impunidade, corrupção e violação dos direitos humanos”. Citou as mortes de civis, abusos físicos e sexuais e queixou-se de que os casos denunciados não resultaram em punição por causa da imunidade da ONU. Duas semanas antes de me receber, em sua sala decorada com um pôster da seleção haitiana de 1974 – única participação do país em uma Copa do Mundo –, a sede da RNDDH sofrera um atentado a tiros. Marie Yolène Gilles, ex-colega de Esperance na RNDDH, com a qual ela rompeu para criar sua própria entidade, a Fundação Je Klere, comparou o atual momento a 2004, ano da chegada da Minustah. “As pessoas estão sempre com medo, não podem sair de casa. Há vários lugares aonde você simplesmente não pode ir”, ela disse. Gilles resumiu assim o legado da missão da ONU: “Não posso dizer que a situação está assim por causa da Minustah, mas posso dizer que se tivessem feito um bom trabalho a situação não estaria assim.”

Sócio de um banco de fomento, Bernard Craan é também presidente da Câmara do Comércio e da Indústria e coordenador do Fórum Econômico do Setor Privado. Em seu escritório numa galeria comercial em Pétion-Ville, ele reconheceu aspectos positivos da Minustah: o país conseguiu realizar três eleições; a Polícia Nacional começou a ser reforçada, assim como os sistemas judicial e penitenciário. O problema, porém, foi a ausência de clareza sobre o objetivo da missão, ele observou. “Por que colocar 7 mil militares de diferentes países, sob o comando de um Exército que nunca sai do seu país, em um país em que não há guerra? Por que não se priorizou a reorganização da polícia?”, questionou. “E a questão do cólera é um escândalo, tanto pela incompetência no controle sanitário como pela tentativa de encobrir o caso e não indenizar as famílias.” Para o banqueiro, o Haiti atual “é um país pior do que em 2004”. “A situação fiscal se deteriorou, o contrabando aumentou, as gangues se espalharam. No Rio de Janeiro, por exemplo, há lugares inseguros. Mas não há hoje nenhuma parte de Porto Príncipe que seja segura.” 

 

Brasil e Haiti mantêm relações diplomáticas há 91 anos. A Minustah e a onda migratória de haitianos para o Brasil depois do terremoto de 2010 estreitaram esses laços. Mas, acima de tudo, o que une os habitantes do país caribenho ao Brasil é o futebol. E é graças ao prestígio dos craques – mais os do passado que os atuais – que a imagem predominantemente negativa que ficou da Minustah no imaginário haitiano se descola da imagem do Brasil como país. Frantz Duval, redator-chefe do Nouvelliste, jornal mais influente do Haiti, com 121 anos, me confirmou essa percepção. “Para o haitiano, não era o Brasil que estava aqui, era a ONU. Na cabeça do haitiano, o Brasil é Pelé, é Ronaldo, é Ronaldinho”, afirmou Duval, enquanto devorava um prato de iscas de porco com banana frita num restaurante em Pétion-Ville. “O Brasil foi Brasil quando a Seleção veio jogar aqui”, comentou, referindo-se ao amistoso da Seleção Brasileira em Porto Príncipe, em 2004 – para muitos no Haiti o evento mais importante durante os anos da Minustah. 

E quanto ao saldo da missão para o Haiti? “Já viu uma mesa de três pés? É instável, mas não cai. Como tantas outras missões que recebemos, a Minustah por um momento foi uma perna, ajudou a manter a mesa de pé. Quando a missão se vai, a mesa fica bamba de novo”, respondeu o jornalista. 

O embaixador brasileiro em Porto Príncipe, Fernando Vidal, que ocupa o cargo desde agosto de 2015, defendeu amplamente a missão, dizendo que ela trouxe mais segurança ao país e levou ao aprimoramento da Polícia Nacional. Também destacou o trabalho social e humanitário feito pelas tropas brasileiras e seu “perfil cordial”. “Acho que o Brasil deve se orgulhar da participação da Minustah”, disse Vidal no seu gabinete na Embaixada do Brasil, em um prédio comercial em Pétion-Ville – a representação mantém ainda o Centro Cultural Brasil-Haiti, instalado num casarão histórico, que oferece cursos de português e cultura brasileira.

O diplomata ressaltou a importância dos projetos de cooperação com o Haiti, em especial de um acordo tripartite (envolvendo Cuba) na área de saúde, iniciado em 2010 e já concluído, em que o Brasil aplicou 70 milhões de dólares e graças ao qual foram construídos três hospitais na Grande Porto Príncipe. O Brasil também contribuiu com 55 milhões de dólares para o Fundo de Reconstrução do Haiti, criado após o terremoto: 15 milhões de dólares foram diretamente para o governo haitiano; os 40 milhões restantes seriam usados na construção da hidrelétrica de Artibonite, projeto que não vingou – o dinheiro foi direcionado a outros projetos de saúde e à construção de um futuro centro de formação profissional. 

Vidal calcula que pouco mais de 100 mil haitianos vivam no Brasil. Desde 2012, o governo brasileiro passou a conceder a eles vistos permanentes de natureza humanitária, o que interrompeu uma rota ilegal de entrada pelo Acre. Aos mais de 60 mil haitianos que desde então receberam vistos somam-se 43 mil que tiveram sua situação regularizada. Em 2015, Bolsonaro disse numa entrevista que, caso o efetivo do Exército fosse diminuído, haveria “menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais do MST, que são engordados agora por senegaleses, haitianos, iranianos, bolivianos e tudo que é escória do mundo”. 

Para o embaixador, os vínculos entre os países são muito fortes.  “A relação se reforçou desde 2004. Há uma comunidade haitiana importante no Brasil, e uma nova geração de brasileiros filhos de haitianos, o que por si só já justifica uma relação diferente. Isso não tem volta”, disse Vidal. 

Ainda assim, a crise atual minou as esperanças do embaixador. De saída do Haiti após quatro anos, rumo a um novo posto nos Estados Unidos, ele desabafou: “Pela primeira vez desde que cheguei estou pessimista, porque não vejo solução a curto prazo. Tenho pensado muito no que vou dizer em meu relatório de gestão.”

 

Em junho passado, o Departamento de Estado americano revisou o alerta para o Haiti, do nível 4 para o nível 3 (“reconsidere viajar”), mantendo a trinca “crime, distúrbios civis e sequestros” como justificativa para a restrição. Não quer dizer que a situação do país tenha melhorado. No mesmo mês, os protestos de rua foram retomados, em resposta à revelação do envolvimento direto do presidente Jovenel Moïse no escândalo Petrocaribe: segundo investigadores, uma empresa dele recebeu indevidamente pelo menos 1 milhão de dólares de um projeto para recuperação de estradas em 2014, quando o país era governado por Michel Martelly, seu padrinho político – este também alvo potencial das investigações do Tribunal de Contas. 

Embora os protestos de junho tenham durado menos que os de fevereiro, Moïse é um líder cada vez mais frágil. Ainda não conseguiu montar um governo –  seus três primeiros-ministros iniciais caíram, e o Congresso emperra a aprovação do quarto. A citação do nome do presidente no escândalo aumentou a pressão dos opositores e dos ativistas digitais conhecidos como petrochallengers, que cobram punições aos envolvidos, e levou entidades empresariais, igrejas e intelectuais a pedirem a renúncia de Moïse. 

O futebol, dessa vez, ajudou: com uma vitória sobre o Canadá, a seleção do Haiti se classificou pela primeira vez à semifinal da Copa Ouro, torneio continental com países da América Central e Caribe. Os grenadiers (granadeiros, apelido do time nacional) perderam do México na semifinal, mas jogaram como nunca e viraram heróis nacionais. Também em junho, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a criação de uma nova modalidade de ajuda ao Haiti: em outubro, a atual Minujusth será substituída por uma missão política, sem militares nem policiais. Na prática, o futuro Binuh (Bureau Integrado das Nações Unidas no Haiti) irá apoiar o governo do país a tentar alcançar a estabilidade política – hoje algo distante. Desde a independência, cerca de trinta chefes de Estado haitianos foram depostos à força ou assassinados, ou renunciaram, e não houve uma eleição sem acusação de fraude. 

Quando me levou de volta ao aeroporto, em 2 de maio, nove dias depois de nosso primeiro encontro, Mike Pinard parecia mais angustiado do que de costume. Vestia uma de suas várias camisas africanas multicoloridas. No meio do caminho, recebeu uma mensagem pelo celular, que ele respondeu num áudio em crioulo, enquanto dirigia. “Era um amigo que mora em Nova York, me perguntando quando vou embora do Haiti”, contou. “Respondi que não sabia, que estava começando a pensar na ideia, que talvez tenha mesmo de ir. É muita pressão da família e dos amigos. A todo instante me cobram: ‘O que você está fazendo aí? É muito violento.’ Isso mexe com a minha cabeça.”

Já de volta ao Brasil, entrei novamente em contato com Pinard em junho, quando ocorria uma nova onda de protestos no Haiti. Perguntei, por telefone, se ele tinha decidido ficar ou partir. “A pressão só aumenta, mas decidi ficar. Jovenel Moïse está com os dias contados. E quero fazer parte do novo dia que virá quando ele cair.”

* Trecho corrigido em relação à versão impressa, na qual consta, incorretamente, que o Palácio Nacional já foi reconstruído.