Santana, na cozinha de sua casa, em Tatuí: “Ensinei o cliente a fazer uma lasanha de beringela maravilhosa. Ele é provavelmente um cara bonito. Pela voz e o papo dele, percebi isso” FOTO: DIVULGAÇÃO_MARIO MORENO
Tesão em quarentena
Dias e noites de uma cam girl durante a pandemia
Pamela Santana | Edição 165, Junho 2020
PAMELA SANTANA, 21 anos, é conhecida como Rave Girl no mundo pornô. Com a pandemia, ela se refugiou em sua casa em Tatuí, no interior do estado de São Paulo, onde vive com o filho de 3 anos e a namorada. Passou a se dedicar sobretudo ao trabalho de cam girl (forma abreviada de camera girl, ou garota da câmera), apresentando-se via internet em dois turnos, de manhã e à noite, num site de encontros virtuais e pornografia. Vegetariana e de esquerda, ela também cria seus próprios produtos pornográficos, como fotos e filmes, para venda online. Os clientes a procuram não apenas pelo sexo virtual: muitas vezes querem apenas conversar, falar da vida e de seus problemas, tanto mais agora, com o isolamento social, como ela conta a seguir.
1° DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Os homens estão nervosinhos com a quarentena. Ansiosos. Trabalhei na cam de dez da noite de ontem até as quatro da manhã de hoje. Normalmente, fico só até umas duas da manhã, mas decidi compensar os dias anteriores. Devo ter atendido uns quarenta clientes. A maioria ficou pouco tempo na sala de chat. Eles entram e já falam para eu ir tirando a roupa. Se peço uma recompensa, abandonam o chat.
Perguntei a um cliente como ele estava passando a quarentena, se estava se cuidando. Ele desandou a falar. Disse que não aguenta mais, que está de saco cheio, que tudo e qualquer coisa o irrita e entedia: Facebook, videogame, noticiário e até as cam girls. Ficamos dando risada e fazendo piada da quarentena e do presidente.
Calculo que ontem tirei entre 200 e 300 reais ao todo. Razoável. Pelo menos apareceu um cliente que eu adoro. É um cara que coleciona itens de cam girls, qualquer um. Ele quer comprar os piercings que eu uso nos mamilos. Estamos negociando, falei que cobraria 300 reais. Ele é um fã verdadeiro do cinema pornô. Admira o trabalho das atrizes e sempre faz questão de me dizer isso. Nosso chat durou só meia hora, e ele me deu 15 reais de presente. Não foi muito, mas o.k. Gosto dele.
Minha experiência com homens é horrível. Passei a achar que são todos iguais, que nenhum presta. Mas, vendo esses homens solitários e atenciosos pela cam, comecei a mudar um pouco de ideia. Admito que sinto certa compaixão por eles.
São três tipos de chat no Camera Prive. No chat simples, os usuários podem me assistir, trocar mensagens comigo e conversar uns com os outros. Mas não podem transmitir suas imagens. No chat privado, só o cliente que entrou consegue conversar com a cam girl, e eu posso ver a imagem dele, caso ele ligue a câmera. As outras pessoas podem apenas dar uma espiada no meu show, sem saber o que o cliente está fazendo ou pedindo para eu fazer. Essas pessoas são os voyeurs. No terceiro tipo de chat, o exclusivo, somos apenas eu e o cliente, mais ninguém.
A primeira maneira de a cam girl ganhar dinheiro é pelo cronômetro. Os clientes pagam 1,5 real por minuto no chat simples. No privado, o cliente principal paga 2,4 reais por minuto, e o voyeur, 1,65 real. No chat exclusivo, o minuto custa 2,85 reais. Quando uma garota começa no site, ela fica com 50% do valor de cada minuto. A porcentagem aumenta para 55% depois de seis meses.
Outro jeito de ganhar um pouco mais é pedindo presentes, como chamamos os valores extras que os clientes pagam para atendermos aos seus pedidos. Para isso não existe uma tabela, podemos cobrar o quanto quisermos, na hora em que quisermos. Uma porcentagem dos presentes fica com o site. Ou seja, uma cam girl não tem renda fixa. Tudo depende de quanto tempo ela vai trabalhar, em qual chat, e quantos presentes vai ganhar.
Tirei o resto do dia de ontem para cuidar de mim mesma e da casa, dar atenção ao meu filho e produzir fotos. Essas imagens fazem parte do conteúdo que disponibilizo no Camera Prive, ManyVids, Xvideos, Pornhub e em catálogos independentes, disponíveis via WhatsApp. Fiz uma foto onde apareço com a frase “Seu nome aqui”, escrita com batom na minha barriga. O cliente pode comprar a foto com o nome dele ou qualquer outra coisa que deseja ver escrita no meu corpo.
Brinquei bastante com meu filho, que tem 3 anos. Fiquei deitada na rede enquanto ele “pirulitava” pelo quintal. Tem um pé de carambola na vizinha que está tombando para o terreno da minha casa. Desafiei meu filho a tentar alcançar as carambolas. Ele pegou a cadeirinha dele e foi tentar, mas, como não conseguiu, acabou ficando bravo. Pediu então para eu apanhar, mas as carambolas estavam verdes.
Pensei no futuro dele. Ou melhor, no futuro que o aguarda. Se já estamos passando por essa pandemia e tudo mais, o que será que a geração dele vai enfrentar? Outra coisa que me deixou preocupada foi essa história de o Paulo Guedes dizer que vai imprimir dinheiro. Se isso acontecer, as coisas não vão ficar mais caras? O dinheiro vai desvalorizar? As pessoas vão querer gastar com cam girls? O que farei dos meus planos, como o de comprar um carro?
Me ligaram de São Paulo. Era um convite para gravar um filme pornô. Garantiram que conseguem testes para Covid-19. Assim, eu poderia saber se peguei ou não a doença, na hora de voltar para Tatuí. É complicado saber que tem gente trabalhando em São Paulo, enquanto estou aqui, em quarentena. Mas eu já decidi: família em primeiro lugar. Não vou colocar minha avó de 61 anos e meu filho em risco.
Hoje, quando liguei a cam de manhã, um tatuador pediu que eu ficasse assistindo ele tomar banho. Apoiou o celular em algum lugar e ficou se ensaboando, se tocando. Guiei a masturbação dele. Isso é mais comum com mulheres. Elas entram no chat e você comanda.
A pandemia tem estimulado as mulheres a procurarem as cam girls. Tenho boas clientes. Uma brasileira que estava na Espanha, isolada em um quarto de hotel durante a quarentena, sempre conversava comigo. A gente falava um pouco de tudo. A maioria das mulheres não estão muito interessadas em ver: preferem falar de putaria.
Apesar do tatuador, meu trabalho pela manhã foi improdutivo porque eu não estava muito criativa. Uma cam girl precisa ser criativa. Muitas vezes, o cliente nem sabe o que quer. É preciso excitá-lo para que permaneça no chat.
A quarentena tem me trazido benefícios. Tenho feito coisas pequenas e bobas que eu não conseguia fazer antes, mas são relaxantes e muito boas para a minha autoestima. Desde que meu filho nasceu, pago tevê a cabo para ele assistir a desenhos. Antes, eu nem sabia procurar um canal de séries e filmes. À tarde, deixei meu filho brincar com jogos no celular, vesti meu roupão, sentei no sofá e achei meu programa favorito na tevê. É sobre um casal, uma arquiteta e um corretor, que precisa achar a casa ideal para o participante do reality show.
Esse momento relaxante foi estratégico. Me animou, e decidi que à noite eu entraria na cam para bombar, com uma camisolinha aberta na lateral, sem calcinha e com um plug anal.
Quando o cliente entra no meu chat no site, ele já me vê em tempo real e pode falar comigo. Na minha página, tem um espaço para descrição pessoal, onde posso escrever apenas “boa noite” ou me promover e anunciar os meus vídeos. Hoje coloquei ali: “Boa noite, meus amores, hoje estou assanhadinha, sem calcinha e com o plug no cuzinho.”
Deu certo, porque normalmente o cliente paga para eu tirar a calcinha ou colocar um plug anal. O chat bombou. O cara que gosta de colecionar itens de cam girls apareceu de novo. Disse que tinha adorado a ideia de ter uma foto com algo escrito no meu corpo. Pediu uma com o nome dele na minha barriga e outra, também com o nome dele e o desenho de um coração no meu pé. Ele também gosta de pés. Fiquei exibindo os meus enquanto a gente conversava. Mostrei inclusive as solas, e ele me mandou um presente de 30 reais. Perguntou se eu gostava de salto alto. Eu disse que sim e então coloquei um sapato e fiquei de joelhos no sofá, para que o salto ficasse bem evidente. Ele disse que não aguentou e gozou. Nunca tinha gozado comigo.
Adoro quando o cliente sai dizendo que gostou do meu chat ou que o ajudei de alguma forma. Quando ele goza tenho a sensação de dever cumprido, me deixa feliz. Não é todo mundo que consegue ter um orgasmo com sexo virtual. Acho que só uns 50% dos clientes chegam lá. Não é só o ato de gozar, porém, que me satisfaz. Gosto mais ainda quando consigo ajudar o cliente na relação dele com a esposa, a família. Dou muitos conselhos. Às vezes, o homem está com um problema tão grande que nem é capaz de se excitar.
O que mais aparece são pessoas com problemas conjugais. Uma vez, apareceu um cliente preocupado porque a namorada queria fazer sexo a três com outro cara. Ele não estava conseguindo abrir a cabeça. Dei uns conselhos, e depois ele veio me elogiar.
Reclamações sobre a vida profissional vêm em segundo lugar. Depois, são os problemas relacionados a filhos e parentes. É muito grande a porcentagem “terapeuta” do meu trabalho. Sinto gratidão por isso: ser uma pessoa vivida o bastante, apesar da minha idade, para conseguir conversar com caras de 30, 40, 60 anos de idade.
Hoje minha noite foi criativa, produtiva e lucrativa. Ganhei bem nos três tipos de chat.
2 DE MAIO, SÁBADO_Acordei meio preguiçosa. Me enrolei na hora do café da manhã, fiquei vendo maquiagens na internet e só entrei na cam às onze e meia. Apareceu um rapaz novinho, todo tatuado. Perguntou se eu tinha áudio. Avisei que só no chat exclusivo. Ele aceitou e me deu um presente logo de cara, agradeci e quis saber que brincadeira ele queria fazer.
Ele então montou a história: inventou que meu nome era Raquel e eu tinha um marido chamado Jorge, amigo dele. Como tinha vontade de pegar a mulher desse amigo, pediu para eu fantasiar tudo isso. Não quis fazer mais nada. Só precisei falar.
Depois apareceu outro rapaz, jovem também. Disse que estava curtindo o tempo que tinha que passar em casa, porque está de quarentena, mas a sua namorada não. Eles moram juntos. Conheceu os chats de cam girls e gostou muito, queria ter descoberto antes, pois achou tudo divertido e satisfatório. Conversamos bastante. Ele já me conhecia dos meus vídeos pornôs. Viu que em vários deles eu participo de ménages à trois e ficou interessado. Ele e a namorada são suingueiros, adeptos da troca de parceiros durante o sexo. Me mostrou fotos dela e fantasiamos um sexo a três. O final do chat foi bem bacana porque ele falou muito sobre a namorada e a elogiou. Disse que contaria a ela sobre a cam no momento certo, porque não há segredo entre eles.
Dei dicas para ele receber a namorada em casa: fazer um drinque, cozinhar uma massa bacana. Ele viu o Hitachi ao meu lado no sofá e achou legal. É um massageador que as pessoas também usam na masturbação, conhecido carinhosamente por “varinha mágica”. Hitachi é a marca. Pediu para eu levá-lo, caso nos encontrássemos pessoalmente um dia. Sugeri que ele comprasse um para a namorada. O cliente me elogiou bastante no final e disse que certamente seguiria minhas dicas.
Tenho uma amiga cam girl negra e gordinha. Ela sempre posta palavras sobre autoestima, sobre ter segurança em relação ao próprio corpo. Fala que existe cliente para tudo que é gosto: negra, branca, amarela, moreninha. Fez um story a respeito. Como estou instruindo uma outra amiga, que era garota de programa como eu, a ser cam girl, mandei para ela esse story. Respondeu que era tudo o que ela precisava ouvir. Ela também é gordinha, tem um rosto maravilhoso e um cabelo loiro lindo. Eu entendo a preocupação dela, porque estamos num mercado com muitas mulheres bonitas. Meninas gordinhas se sentem inseguras, mas esquecem que podem tanto quanto as outras. Ser gordinha é um diferencial. Ela vai atender um público que é só dela. Eu também não sou exatamente magrinha.
À tarde, brinquei com meu filho. Ele quis pintar as mãos com tinta guache, como fazem na escolinha. Ia fazer uma bela bagunça, mas eu deixei. Então ele fez desenhos para a vovó, a titia, a família toda. Pintou a parede, foi uma lambuzeira só.
Fiz nhoque no jantar. Atrasei para entrar na cam à noite e coloquei uma roupinha para disfarçar a barriga estufada, de tanto que comi. Era um body da época em que eu trabalhava como stripper e fazia um número de máscara e chicote. Os clientes piravam.
Repeti o número na cam e não ficou tão legal. Um cliente deu risada. Ele disse que estava engraçado, que sou linda de qualquer jeito. Dei risada também, mas admito que hoje abusei da imaginação. Tirei a máscara, a meia, fiquei só com o body e, como já estava meio irritada, mudei meu tópico no chat. Coloquei assim: “Cadê meus escravos para uma humilhação hoje?”, e deixei por perto todos os brinquedos de dominação, a mordaça, o chicote.
Vieram os clientes que gostam de ser humilhados. Eu os chamo de “merda”, “lixo”, “inútil”, “brocha”, “corno”. Gosto muito de dominar os homens verbalmente. De descontar a raiva que talvez eu tenha guardada.
De madrugada entrou um cliente de 28 anos que estava “na bad”. Triste com o que está acontecendo com o mundo e com a economia. Contou que é microempreendedor e que estava prestes a expandir o negócio, mas teve que adiar os planos. Me identifiquei bastante com ele, porque também me sentia assim antes. Eu estava juntando dinheiro para comprar meu carro, faltavam só 2 mil reais.
Revelei essas coisas para o cliente depois de fazer muitas perguntas sobre a vida dele. Sugeri que ele se permitisse ver as coisas pelo outro lado. Com a quarentena, pelo menos ele estava passando mais tempo com a mulher e a filha. Ele parou para pensar e disse que eu estava coberta de razão. Que a conversa o fez pensar na mãe dele. E fez uma anotação para não esquecer de ligar para ela. Não trabalhei no restante do domingo. Só dormi e descansei.
4 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_Gosto de começar bem a semana. Nem sempre rola. Hoje minha namorada me trouxe café da manhã na cama. Eu tinha sonhado que ela usava uma calcinha de vovó e outras coisas meio doidas. Mas foram sonhos reconfortantes. Costumo ter muitos pesadelos.
Eu e minha namorada costumamos consagrar o ayahuasca, como se diz. Vamos à cerimônia e tomamos a bebida. Com a pandemia não temos conseguido, os locais de consagração vão demorar muito para reabrir. Conversamos sobre isso antes de eu entrar na cam de manhã. Experimentei a ayahuasca pela primeira vez em dezembro do ano passado, e foi um grande despertar para mim. Me ajudou muito, tudo mudou na minha vida. Me livrei de pessoas que me atrapalhavam, conheci outras que me trouxeram luz. Ganhei em inteligência emocional para entender certas questões da vida.
Meu filho está na casa da minha avó para eu poder começar a semana de trabalho. Percebo que a crise econômica está chegando de fato agora. Pela primeira vez, clientes me disseram explicitamente que não iriam para o chat exclusivo por questões de grana. Eram duas pessoas que sempre gastavam bem, que não poupariam para me ver e tinham a classificação “ouro vermelho” do site, a mais alta de todas.
No site, os clientes adquirem uma espécie de verba virtual, que eles vão gastando e recarregando. A cam girl consegue ver o saldo quando eles entram no chat. E aqueles estavam realmente com saldo zero. Disseram “bom dia”, que eu estava linda, e contaram que não tinham como gastar comigo. Um deles disse assim, com todas as letras: “Você não tem noção, eu estou fodido.” Parece que as coisas estão ficando mesmo complicadas. Voltou aquela minha preocupação: se isso continuar, a frequência na cam vai cair bastante.
Uma amiga foi citada em uma reportagem sobre o aumento da procura por cam girls. Dois números me chamaram a atenção. A visibilidade das cam girls cresceu 7%, e o lucro, 13%. Estava escrito algo assim. Do jeito que falam, parece que houve uma explosão de consumo, que estamos rachando o bico de ganhar dinheiro. Teve, sim, um aumento, mas não foi nada que me deixe segura. É um problema que não está em minhas mãos. Só me resta dar um voto consciente nas próximas eleições.
Já passei por momentos emocionais e espirituais piores. Agora não perco o sono. Ser hoje uma mulher totalmente independente me ajuda a passar por tudo isso. Não estou me gabando, mas tem meninas da minha idade que não viveram as mesmas coisas que eu vivi. Já fui prostituta, apanhei de homem, passei fome.
Homem chato no chat é que nem idiota no mundo: tem aos montes. Os idiotas do mundo pelo menos a gente consegue ignorar. No trabalho, não dá, porque infelizmente, eles têm dinheiro. Entrei na cam à noite e apareceu um cliente que sequer me deu oi. Já foi perguntando quanto eu queria para enfiar um consolo no cu. Pedi um valor alto, 200 reais. O cliente deu a entender que topava e foi para o chat exclusivo comigo. Achei uma merda, pois não estava a fim de fazer aquilo. Ele, de novo, não me perguntou nada, nem me elogiou: mandou que eu tirasse a roupa. Continuou sendo um ignorante. Pedi que não tivesse pressa e avisei que mulher tem que ser bem tratada. Para ter o meu melhor, ele precisaria dar o melhor dele, e educação é de graça. O cliente mandou aquele emoji de “affff”. Pedi 10 reais para tirar a roupa, e ele ficou indignado. Saiu, sem me dar nenhum presente.
Cam girls novatas têm vergonha de pedir presentes. Eu, não. Elas precisam entender que estamos ali vendendo a nossa imagem. Se o cliente paga para nos ver, porque não pagaria para a gente tirar a roupa? Pelo menos, esse cliente chato me avaliou com cinco estrelas. Deixou um comentário, dizendo que sou “linda e simpática”, mas “enroladíssima”. Como o site permite que eu responda, escrevi que não sou enrolada: ele é que não tem educação. Fiquei irritada. Parei de trabalhar.
5 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_Hoje não consegui trabalhar. Precisei resolver problemas de família. Meus parentes estavam totalmente a favor do isolamento, mas agora todo mundo está dando uma surtada. Minha avó foi ao correio, e minha tia, que está grávida, resolveu dar uma volta na praça com o marido. As duas ficam inventando desculpas para sair. Fico chateada, porque estou deixando de fazer filmes em São Paulo, coloquei meus planos e objetivos de lado para proteger minha família. Apesar de ter apenas 21 anos de idade, só saio quando preciso muito.
Minha namorada e eu estamos muito atentas ao noticiário, procuramos saber o que é fake news e o que não é. Só saio à rua totalmente protegida. Tenho um monte de máscaras em casa, tubos de álcool em gel, coloco um pano com água sanitária na entrada para depositar os sapatos, as roupas vão direto para a máquina de lavar. Sei que já morreram pessoas da minha idade. Mas eu mesma não tenho medo de morrer. Meu temor é deixar na mão as pessoas que eu amo.
Em nenhum momento me desesperei durante essa pandemia. Mas fico preocupada e me pego refletindo sobre várias questões. Hoje vi um post em que uma mãe colocou a foto da filha usando máscara e a chamou de linda. Disse que a menininha fez questão de ter a própria máscara. E dava para ver nitidamente, por causa das bochechas, que a criança de olhar muito puro estava sorrindo. Sempre reparei no sorriso das pessoas, na energia que alguém me passa ao sorrir. Fiquei pensando se, agora, não teremos que aprender a sorrir com os olhos. Essa reflexão impactou meu dia, mexeu comigo.
Uma costureira aqui da cidade faz vários tipos de máscaras bonitas e baratinhas. Encomendei dez para a minha família. A que ponto estamos chegando. As pessoas não entendem que o mundo nunca mais voltará ao normal.
6 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_Na minha rotina antes da pandemia, quando fazia filmes pornôs, costumava disponibilizar várias cenas nos sites onde tenho um perfil. Como não adiciono nada há mais de um mês, decidi produzir alguns materiais. Fiz mais daquelas fotos, que chamo de “plaquinhas”, com palavras que os clientes pediram para eu escrever no meu corpo. Têm feito sucesso. Vendi seis. Também gravei uns vídeos de smoking fetish, em que eu simplesmente apareço fumando. Só isso. Os clientes pedem muito. Já cheguei a montar um álbum só com fotos assim e vendeu muito bem.
Não entrou muita gente de manhã na cam por causa do frio. Mas meu cliente “da ioga” apareceu. Eu achava chato no começo, mas aprendi a entrar na onda. Ele fica me olhando enquanto eu praticamente só faço alongamentos. É bacana para começar o dia. Melhor que enfiar um consolo na buceta.
Em seguida veio um cliente muito educado, que, depois de alguma conversa, fez o pedido: como gostava de mulher muito assanhada, sugeriu que eu saísse me esfregando nas coisas. A ideia era imaginar que eu estava excitada e não tinha nenhum objeto para me satisfazer. Nem as mãos, porque eu já estava cansada delas. Ele me deu 20 reais de presente e disse que, para começar, o sofá estava bom.
Fiquei me esfregando no sofá, de roupa mesmo, fazendo carinha de tesão. Foi meio grotesco, parecia que ele queria ver uma cadelinha no cio. O cliente, então, pediu para eu mudar de lugar, e fui me esfregar na cadeira. Depois, na porta. Tive que tomar cuidado para não me machucar. Enquanto me esfregava, falei algo para a minha namorada e, apesar de o áudio estar desligado, ele percebeu que tinha mais alguém em casa. Contei que era a minha namorada, e o homem pediu para nós duas nos esfregarmos. Eu a agarrei e fizemos isso. Não aguentamos e começamos a rir. Ele gostou, disse que tudo bem dar risada. Agradeceu e deixou uma boa avaliação.
À tarde, terminei meus novos conteúdos. Fiz vídeos da minha namorada me chupando e vice-versa. Também fiz de footjob, que é a masturbação do pênis com os pés. Esvaziei a mesa das minhas bagunças, grudei um pinto de borracha sobre ela, me sentei em uma cadeira, estiquei as pernas e fiquei trabalhando o objeto com meus pés.
Quando produzo vídeos, procuro me maquiar, arrumar o cabelo e as unhas, botar uma roupa bonita, filmar em um cenário bacana. Dependendo do site onde vou postar, preciso criar uma abertura. Normalmente, é a minha namorada que produz isso. Os vídeos também precisam ser editados, mas prefiro fazer eu mesma essa parte, porque, apesar de ela respeitar a minha vida, tem certas coisas que opta por não ver, como imagens em que eu mostro minha buceta e apareço transando com outras pessoas.
Meu filho queria muito um brinquedo. Resolvi sair para comprar e aproveitei para ir ao mercado, foi a primeira vez que fiz isso sem planejar antes. Na loja de brinquedos, escolhi um joguinho de exército, com vários homenzinhos, helicóptero, avião, uma casinha com barreiras. Paguei 40 reais. Não sei por que diachos meu filho gosta de viaturas, ambulâncias, essas coisas.
Na hora do jantar, ele ficou assistindo ao canal do Luccas Neto no YouTube. É um negócio idiota, mas a criança fica paralisada. Normalmente acho interessante tudo que chama a atenção do meu filho, mas do Luccas Neto não gostei. Ele faz os vídeos na mansão dele, gigantérrima. Não é o caso do meu filho, mas, se uma criança miserável assiste àquilo, a atenção dela vai toda para a mansão. A gente acha que criança não tem noção das coisas, mas o fato é que ela vê aquele quarto todo envelopado e quer ter um igual.
À noite, me deparei com dois clientes interessantes. Primeiro, foi uma mulher que não quis abrir a câmera dela, mas disse que me conhecia dos vídeos pornôs. Ela queria muito me ver. Fomos para o chat exclusivo e, como toda mulher, ela foi muito educada. Perguntou até do meu filho, porque também me acompanha no Instagram e sabe que sou mãe. Conversamos sobre sexualidade e relacionamento. Ela está recém-separada de uma mulher. Acabei guiando a siririca dela, sem falar de viva voz, só digitando. Ela gozou e disse que foi uma experiência maravilhosa.
Depois veio o cliente da bola do Quico, famoso entre as cam girls. Ele sempre pergunta a mesma coisa: se tem aquelas bolas de criança enormes, como a do Quico, personagem do programa Chaves. Ele quer ver a garota brincar com a bola: sentar nela e, no final, estourá-la. Não sei que tipo de fetiche é esse. Muitas garotas não têm uma bola do Quico, e eu disse que infelizmente também não tinha. Ele mandou um emoji de carinha triste e falou que não entendia por que nunca temos o que ele quer. Uma amiga cam girl me contou que ela tinha a bola, mas era do sobrinho dela, e fez com que o cliente pagasse para ela comprar outra bola depois.
Acabei ficando pouco tempo no chat à noite. Precisava editar meus vídeos e colocá-los nos meus canais. Fui dormir quase às três da manhã, pingando de sono.
7 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Levantei com muito custo da cama e levei meu filho para a casa da minha avó. Ele costuma dormir sozinho no quarto dele, mas ontem dormiu comigo. Apesar da pouca idade, não gosta de ser chamado de bebê, a gente tem que chamá-lo pelo nome. Falei para a minha namorada que talvez ele seja tão precoce como eu. Vou pagar o trabalho que dei para a minha mãe me criar.
Apesar de estar com preguiça, eu não tinha motivos para não entrar na cam. É bom trabalhar sempre que é possível para poder folgar quando for preciso. E tenho que ser grata por ter um trabalho, pois muita gente está enfrentando algum tipo de dificuldade agora. Fico preocupada com o mundo, mas não estou me sentindo mal com nada. Talvez a missão de pessoas como eu seja mandar energias boas e paz para quem não tem o privilégio de tê-las.
LGBT: Levanta, Gay, Bora Trabalhar. Nem maquiagem fiz, coloquei uma roupa bonitinha e fui para a cam. Um pouco atrasada mesmo, mas hoje eu podia, porque está fazendo frio. Os vídeos e fotos que produzi nos últimos dias tiveram um bom alcance. Várias curtidas e comentários nas minhas plataformas. Vender nem é tão importante, o que vale é engajar o público.
Apareceu um cliente fofo que estava com preguiça de bater punheta por causa do frio. Disse que o bichinho dele estava todo escondidinho. Ficamos só conversando, trocando uma ideia. Nada de putarias ou fetiches. Falamos mal do presidente, ele contou que também é vegetariano e tem um filho pequeno. É pai solteiro e de esquerda. Temos muita coisa em comum: eu também sou vegetariana (há quase um ano) e sou de esquerda, porque ela defende os pobres. Tive uma infância muito simples, e os governos de esquerda sempre foram bons para a gente. Ensinei o cliente a fazer uma lasanha de beringela maravilhosa. Ele é provavelmente um cara bonito. Pela voz e o papo dele, percebi isso. Um bom partido.
As pessoas pensam que só caras nerds e solitários entram na cam. Não é verdade. É gostoso se masturbar, se excitar, mas às vezes é bom ter um papo assim, educado, bacana. Um chat legal não é necessariamente aquele em que o cliente gasta muito. Basta que me trate bem.
À tarde, meu filho voltou e brincamos muito: de gato mia, de pique-esconde… Ele dava umas gargalhadas tão lindas que parecia que entravam na minha alma e alimentavam cada parte desnutrida dela. Isso me ajuda muito, me deixa energizada para trabalhar. Se não estou bem com meu filho, esquece.
Vários clientes que viram os conteúdos que postei recentemente me procuraram à noite. Vídeos e fotos gratuitos são uma boa estratégia de marketing. Pode ser qualquer coisa: eu passando gloss na boca, cinco segundos de penetração. Uma linda mulher abriu a cam dela e fez questão de ir para o chat exclusivo só para elogiar um dos meus vídeos. Comprou o filme e deixou um comentário, dizendo que foi a melhor produção amadora que ela já viu. Ofereci para chamar minha namorada e fazer uma brincadeirinha na cam. Falou que adoraria, mas estava atrasada para fazer o jantar, com o marido e o filho esperando na sala. Ela e o marido são grandes consumidores de produtos pornôs. Há quem pense que casais não gostam de pornografia. Esse tabu precisa cair urgentemente.
Como nem tudo são flores, logo depois veio um cara bem abusado. Estava com 500 reais de saldo, mas não queria me dar presentes. Fiquei intrigada. Com essa grana toda, tem que gostar muito de cam para preferir isso a sair com uma garota de programa. Eu estava tomando uma bebida, e ele brincou sobre minha barriguinha de refrigerante. Deu vontade de mandar tomar no cu. Mas me segurei e fui educada.
Ficamos batendo papo, e ele se gabou de pagar ótimas pensões para os três filhos que moram com as mães. Quando pediu para eu tirar a roupa, sugeri que me desse um presente de 10 reais. O cliente era tão cuzão que reclamou. Disse que eu precisava fazer por merecer, atitude típica de homens soberbos. Respondi que sou uma princesa e mereço ser mimada. Ele acabou pagando. Depois, falou para eu me masturbar. Pedi 50 reais. Ele reclamou outra vez, disse que eu estava abusando da boa vontade dele, mas pagou de novo. Haja paciência.
Meu turno na cam terminou na madrugada de um jeito divertido. Resolvi fazer um show no chat simples, onde vários clientes podem me ver ao mesmo tempo, mas não faço nada sem ganhar presente. Tudo começou com um cara que me pediu para tirar a roupa. Logo entrou bastante gente, todo mundo me pedindo coisas e me dando presentes. Quiseram que eu brincasse com o consolo e com o Hitachi.
Saí do chat lá pelas duas da manhã. Fumei um baseado e tive uma ideia brilhante: criar uma nova identidade visual para mim. Minha marca atual remete ao que é proibido. Quero algo mais voltado para o meu nome, Rave Girl, uma coisa mais psicodélica. Minha namorada é designer e vai me ajudar. Como estamos em quarentena, espero que tudo esteja pronto em uma semana.
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