ILUSTRAÇÃO: LOREDANO_2015
Tia Barbara, a temível
O amor ao teatro e a fúria de Barbara Heliodora
Fernanda Torres | Edição 104, Maio 2015
Eu a chamei de tia durante toda a infância. Tia Barbara, a amiga dos meus pais, uma mulher grande, alta, dona de humor fino, voz grave e ares de senhor inglês. Mais tarde, descobri que tia Barbara era a temida Barbara Heliodora, a crítica severa que adorava Shakespeare e cujas opiniões sobre um espetáculo pautavam jornais e críticos do país.
Ela contava causos ótimos. Me lembro de um, da mulher que queria muito ter uma filha e arriscou uma inseminação artificial, depois de ter parido três meninos. Ela engravidou, disse Barbara, de trigêmeos. Todos homens! E riu a valer.
Tia Barbara escreveu meu epitáfio nas páginas amarelas da Veja, em 1993. Foi um choque do qual demorei um bom tempo para me recuperar. Na entrevista, ela me chamava de títere de Gerald Thomas e dizia que meu talento jamais chegaria aos pés do da minha mãe. Indignada, peguei o telefone e liguei para a ex-tia. A voz grossa, muito característica, me respondeu que também havia achado pesado, se desculpou e passamos muitos anos longe uma da outra.
Foi em A Casa dos Budas Ditosos que reatamos. Ela descobriu algum valor em mim e eu nela, não pela resenha elogiosa, mas pelo reconhecimento de que a insistência havia me aproximado da compreensão que ela tinha do teatro.
Nas aulas que ministrava em casa, Barbara exigia que os alunos lessem em voz alta. Na última vez em que jantamos juntas, ela observou que a leitura em voz alta obriga o sujeito a entender o que está dizendo. Parece simples, mas não é. Grande parte da sua irritação vinha do fato de os atores não terem ideia do que falavam em cena.
Antes de se tornar acadêmica, Barbara se arriscou como atriz, mas acabou preferindo as letras. Numa época de ouro do teatro, teve o privilégio de assistir Olivier, O’Toole, Gielgud e os Redgrave. Na minha última visita a Londres, depois de ver Jude Law numa montagem profissa de Henrique V, escrevi a ela, para falar do prazer de ter visto um Shakespeare no qual todos os atores davam conta da complexidade do texto. “Aproveite essa terra que eu amo tanto”, ela respondeu, com certo saudosismo, como se lamentasse não poder viver as mesmas descobertas uma segunda vez. O teatro na Inglaterra é como o futebol no Brasil, até o mais medíocre dos coadjuvantes é capaz de driblar com excelência.
A carreira de crítica, acredito, contribuiu para o seu mau humor persistente. Teatro bom é coisa rara em qualquer parte do mundo; no Brasil, é um campo minado de equívocos. A rotina da profissão a obrigava a testemunhar repetidas catástrofes e provas de amadorismo crônico. Para alguém que cresceu com Olivier, era difícil suportar a provação. Talvez, por isso, ela fosse condescendente com comédias despretensiosas e implacável com os que se dispunham a dar forma às grandes obras. Barbara tinha senso de humor suficiente para gostar do Besteirol e paciência nenhuma para quem se metia com uma matéria que ela conhecia de cor, de coração.
Minha mãe, que conviveu com Barbara na intimidade, diz que seu envolvimento com o teatro não passava pelo racional. A aversão a uma montagem equivocada provocava nela reações físicas, passionais. Barbara exprimia seu desgosto com um sonoro “horror” de ópera. “É um horroooor, Fernanda! Um horrooooooor!”, dizia, esticando os “os” com o vozeirão.
Quando se indignava pra valer, usava o poder de crítica para questionar as escolhas do Ministério da Cultura na liberação de recursos para um espetáculo que considerava ruim. Golpe duro.
Tida como conservadora, Barbara era capaz de demolir espetáculos consagrados e passar por cima de deslizes graves. Gostava mais de uns do que de outros, o que levava alguns colegas a se sentirem perseguidos pela Dama de Ferro. Tinha paixão doentia pela ribalta e escrevia com raiva, ou adoração.
Amante de um teatro clássico, humanista, baseado na ideia e na palavra, nos seus 91 anos Barbara presenciou inúmeras revoluções estéticas, experimentos que contribuíram para que o teatro vencesse o realismo, mas que, muitas vezes, caíam num maneirismo estéril. Peter Brook, Grotowski, Kantor, Bob Wilson, Antunes Filho e Zé Celso transformaram o palco em sua essência, são criadores que conheciam, conhecem e respeitam em profundidade a poética do métier. Mas o experimentalismo crescente criou deformidades difíceis de serem suportadas por alguém que, como Barbara, cresceu embalada por dramaturgos do calibre de Tennessee Williams, Harold Pinter, Eugene O’Neill e Nelson Rodrigues.
A pretensão criativa, amadora, que ignora os fundamentos da prática teatral lhe causava arrepios na espinha.
Quando eu escrevi uma peça ruim, ela ficou muito incomodada de ter que fazer a crítica. Saiu do teatro certa de que enfrentaríamos mais um século de mágoas, mas a maturidade já havia me trazido o sentido da perseverança – que Tchekhov, em A Gaivota, define tão bem. Eu lhe escrevi uma carta longa, confessando que descobrira a fragilidade do texto durante os ensaios, quando recuar não era mais possível. Muitas vezes, cabe ao artista enfrentar o fracasso, eu disse, e pedi que ficasse tranquila, pois eu entendia, e até concordava, com sua opinião sobre a peça. Barbara agradeceu. Ela não tinha prazer em acabar com ninguém, sofria até. Mas sua visão do teatro estava acima da amizade e das relações familiares. Creio que ela se sentia grata, e até aliviada, quando gostava de alguma coisa.
Capaz de declamar solilóquios inteiros de Shakespeare de cabeça, e em inglês, possuía uma visão aguda das contradições humanas. Numa estreia teatral, no período do julgamento do mensalão, tecemos comentários a respeito da ira por justiça de Joaquim Barbosa. Ela sorriu e recitou uma fala de Portia, heroína de O Mercador de Veneza:
The quality of mercy is not strain’d. / It droppeth as the gentle rain from heaven / Upon the place beneath. It is twice blest: / It blesseth him that gives and him that takes. [1]
Vou mandar para o Joaquim, disse rindo, e eu invejei os anos que essa mulher dedicou ao Bardo.
Sábato Magaldi, Yan Michalski, Décio de Almeida Prado e Barbara Heliodora foram críticos que influíram na maneira de se fazer teatro no Brasil. Existia uma via de mão dupla, um diálogo entre a cena e a reflexão do jornal. Hoje tudo se reduz a colunismo, agenda e opinião pessoal. O teatro também perdeu a capacidade de impactar, ou de refletir de forma ativa sobre a sociedade. Esse esvaziamento que não se deu somente no palco, ele aconteceu no cinema e na música, aqui e no exterior. O triunfo da tecnologia nos deixou mais burros, frios e superficiais.
Jamais vou me esquecer do encanto com que Barbara descrevia o inesquecível Mercúcio, do então desconhecido Peter O’Toole. Quisera eu ter vivenciado um teatro com a qualidade e a paixão de Heliodora.
[1] A qualidade da clemência é que não seja forçada; cai como a doce chuva do céu sobre o chão que está por debaixo dela; é duas vezes bendita; bendiz ao que a concede e ao que a recebe. [Tradução de Fernando Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, RJ, Nova Aguilar, 1989.]
Fernanda Torres, atriz e escritora, é autora do romance Fim, da Companhia das Letras
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