ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2011
Tikai atliek raudāt
Desventuras de uma imigrante letã que ficou órfã de tradutora
Julia Dantas | Edição 59, Agosto 2011
Elina Ozolina respirou fundo, empinou o nariz e adentrou resoluta o prédio soturno do Departamento de Migraciones, à beira do rio da Prata, em Buenos Aires. Já estivera ali tantas vezes que conhecia de cor o caminho até o guichê aonde tinha que ir para regularizar sua situação na Argentina. Estava preparada para, mais uma vez, expor seu caso às autoridades de imigração. Diante do guichê, deparou-se com o funcionário careca de óculos que tantas vezes a atendera. Mas não deu conta de dizer uma palavra sequer: Elina não se conteve, abriu a boca e engatou um choro copioso e barulhento.
Era o ápice de um calvário que começara três anos antes, quando ela desembarcou no aeroporto de Ezeiza vinda de Riga, capital da Letônia e sua cidade natal. O carimbo que Elina recebeu no passaporte lhe permitia permanecer três meses em território argentino. Mas ela viera para ficar. Aos 26 anos, diante da crise que castigava seu país, morar no estrangeiro era o melhor a fazer. Considerando o estado da economia e o custo de vida, Buenos Aires pareceu-lhe uma boa pedida.
Estabeleceu-se no bairro de Almagro, berço do tango, e começou a cursar artes plásticas no Instituto Universitario Nacional del Arte, o que a tornou elegível para obter a residência permanente. Elina não tardou a requerer o visto. Não queria seguir o exemplo da amiga Ilze Milze, com quem compartilhava o nome rimado, a cor loura dos cabelos e a condição de letã. Sem planos de estudo ou emprego, sua conterrânea se conformara com a condição de imigrante ilegal.
Mas Elina Ozolina queria seguir a lei. Quando visitou pela primeira vez o Departamento de Migraciones, já imaginava que teria que percorrer um caminho tortuoso até regularizar sua situação. Mas a moça imaginou que a disposição dos hermanos de abrir as portas para os imigrantes, tantas vezes reiterada pela presidenta Cristina Kirchner, pudesse aliviar ao menos parte das exigências oficiais. Mal sabia ela.
A situação provisória obrigava Elina a realizar viagens frequentes ao Uruguai, onde permanecia por 24 horas antes de voltar à Argentina e ganhar mais três meses de permanência como turista. Ela ficava desgostosa só de pensar em tomar o Buquebus – barco que liga a capital argentina à pequena cidade turística uruguaia de Colonia del Sacramento, do outro lado do estuário do rio da Prata. Já não aguentava mais ver o casario bem preservado do centro histórico. Em dois anos e meio, foram mais de dez viagens, incluindo a vez em que, sob protestos, acompanhou sua mãe que viera visitá-la na América do Sul.
O processo de Elina seguiu os trâmites regulamentares por dois anos e meio. Ela vislumbrava no horizonte o dia em que teria o almejado visto quando o processo ganhou contornos dramáticos. Em mais uma visita ao Departamento de Migraciones, recebeu do burocrata careca detrás do guichê a exigência de um documento de sua terra natal, devidamente vertido para o idioma de Cervantes por um profissional certificado. Foi então que ela descobriu que a única tradutora juramentada de letão para o castelhano de toda a Argentina havia morrido.
Foi um caso de morte natural – a tradutora estava com idade avançada. Dias depois, a aspirante a imigrante teve que apresentar um atestado recente de que não tinha antecedentes criminais na Letônia. Não era a mais justificada das exigências: ela já havia apresentado tal atestado ao desembarcar em Buenos Aires pela primeira vez e, desde então, não cruzara o Atlântico. Mas o careca da imigração foi irredutível: que ela apresentasse um documento atualizado ou seu processo seria invalidado.
Os apelos ao bom-senso feitos por Elina Ozolina foram inócuos. As autoridades argentinas tampouco se mostraram dispostas a aceitar documentos traduzidos por algum profissional na Letônia. A estudante cogitou se casar com um portenho, comprar uma identidade falsa ou viver na ilegalidade, como Ilze Milze. Esgotadas suas possibilidades, decidiu ignorar o problema e espairecer numa viagem pela Bolívia.
Em La Paz, fabricou e vendeu brincos e broches de acrílico e juntou dinheiro para seguir até o lago Titicaca. No Carnaval, desfilou em trajes típicos num povoado minúsculo perto da fronteira com o Peru e ajudou seu bloco a conquistar a vaca oferecida como prêmio pelo melhor desfile. Findo o verão, voltou a Buenos Aires e ao seu inferno burocrático.
Uma semana antes de se esgotar mais um prazo de três meses de permanência, Elina decidiu que não embarcaria mais no abominado Buquebus. Tomada pela revolta e pela desesperança, dirigiu-se mais uma vez ao Departamento de Migraciones, e foi então que irrompeu em pranto.
Elina é pequena e tem aspecto frágil, grandes olhos azuis e voz aguda. Deixá-la chorando seria como ignorar o pranto de um bebê. Constrangido, o senhor careca de calças puídas saiu de seu guichê, levou a letã até uma cadeira e pediu-lhe calma. A estudante acabou por se recompor e, entre um soluço e outro, explicou seu drama. Com cara de empatia, o funcionário tomou o maço de documentos das mãos da moça e levou-os a uma sala escondida. Demorou-se ali uns dez minutos e voltou com o dossiê, ao qual havia acrescentado novas folhas. Trouxe também um pequeno tesouro: um papel pequeno que valia como certificado temporário de residência até que fosse trocado pelo visto permanente dali a três meses.
Era a vitória do desespero letão sobre a frieza do papelório portenho. Aquele papel arrancado a lágrimas representava a alforria dos Buquebus, o fim de um pesadelo que já durava anos. O entusiasmo que tomou conta da estudante durou alguns dias, até que um exame mais minucioso revelou que o documento autorizava a residência na Argentina da estudante Elina Ozolina, cidadã da… Lituânia. Essa república báltica é ortográfica e geograficamente vizinha da Letônia, mas isso em nada resolvia o problema de Elina. Num passe de mágica, ela voltara a ser uma imigrante ilegal. Ia começar tudo de novo.