Na volta de Beit Jala (ao fundo), descemos do ônibus e fazemos fila, cercados de recrutas. Passamos quinze ou vinte minutos naquele deserto militar conhecido como checkpoint, respondendo perguntas e mostrando documentos. Zima diz que o checkpoint é um muro móvel onde Israel nos lembra de sua soberania sobre os territórios palestinos; é parte de uma política sistemática de assédio CREDITO: JOSEF KOUDELKA_2008_MAGNUM PHOTOS_FOTOARENA
Tornar-se Palestina
Gaza parecia fechada com cadeado, e a chave havia sido engolida por Israel
Lina Meruane | Edição 155, Agosto 2019
Tradução de Mariana Sanchez
RETORNOS EMPRESTADOS
Retornar. Esse é o verbo que me assalta toda vez que penso na possibilidade da Palestina. Digo para mim mesma: não seria um regresso, apenas uma visita a uma terra em que nunca estive, da qual não tenho uma única imagem própria. A Palestina sempre foi para mim um rumor de fundo, uma história a qual recorrer para salvar da extinção uma origem compartilhada. Não seria um retorno meu. Seria um retorno emprestado, um regressar no lugar de outro. De meu avô. De meu pai. Mas meu pai não quis pôr os pés naqueles territórios ocupados. Só se aproximou da fronteira. Uma vez, do Cairo, dirigiu os olhos já velhos na direção leste e os manteve por um tempo no ponto distante onde a Palestina poderia estar situada. O vento soprava, erguia-se uma poeira de filme e passavam ao lado dele centenas de turistas com previsíveis tênis e bermudas e mochilas, turistas estrangulados por câmeras japonesas, as mãos suando cheias de compras. Turistas rodeados de guias e intérpretes nos quais não prestavam atenção. Meu pai enfiou sua cabeça entre eles. Estendeu o olhar até aquele pedacinho de Palestina colado na divisa do Egito, aquela Palestina distante e distinta da ideia que ele tinha de Beit Jala.[1] Aquela era a Gaza sitiada, acossada, muçulmana e alheia. Uma outra vez, meu pai esteve na divisa da Jordânia; sua vista pôde abarcar o deserto atravessando a fronteira. Bastaria se aproximar do cruzamento, mas seus pezões permaneceram afundados na areia movediça da indecisão. Vendo uma oportunidade na dúvida, minha mãe, com seu pequeno indicador esticado, apontou ao longe, para o extenso vale do rio Jordão que se avistava do monte Nebo, águas que a religião cristã considera bentas, e insistiu em cruzar até a Cisjordânia. Temos que ir, disse a meu pai, com urgência, como se fosse ela a palestina. Depois de tantos anos juntos, assim acabara por se sentir minha mãe, mais uma voz desse clã barulhento. Mas meu pai deu meia-volta e caminhou na direção oposta. Não ia se submeter à espera arbitrária, à meticulosa revista de sua mala, ao abusivo interrogatório na fronteira israelense e nos sucessivos postos de controle. Não ia se sujeitar a ser tratado com desconfiança. A ser chamado de estrangeiro numa terra que considerava sua, porque continua ali, ainda invicta, a casa de seu pai. Ali, do outro lado, está essa herança da qual ninguém nunca tomou posse efetiva. Talvez o assuste a possibilidade de chegar a essa casa sem ter a chave, bater na porta desse lar vazio do que é seu e cheio de desconhecidos. Deve assustá-lo percorrer as ruas que poderiam ter sido, fossem as coisas de outro modo, seu parquinho. O martírio de encontrar, no horizonte outrora limpo daqueles becos, as casas geminadas dos colonos. Os assentamentos e suas câmeras de vigilância. Os militares enfiados em suas botas e fardas verdes, seus longos rifles. Os arames farpados e os escombros. Troncos de anosas oliveiras cortados rente ao chão ou transformados em cotocos. Ou talvez cruzar a fronteira significasse para ele trair seu pai, que – ele sim – tentou voltar. Voltar uma vez, em vão. A Guerra dos Seis Dias impediu-lhe a viagem. Ficou com as passagens compradas, a mala cheia de presentes e a amargura da desastrosa derrota que significou a anexação de mais territórios palestinos. Essa guerra durou apenas uma semana, mas o conflito seguia seu curso incansável quando morreu minha avó: a única companheira possível de seu retorno. Essa perda o lançou a uma velhice repentina e irreparável. Sem volta. Como a vida de tantos palestinos que não puderam ou não quiseram mais retornar, que esqueceram até mesmo a palavra árabe do retorno; palestinos que chegaram a se sentir, como meus avós, chilenos comuns e correntes. Os corpos de ambos estão agora em um mausoléu de Santiago, ao qual não voltei desde o último enterro. Pergunto-me se alguém terá ido visitá-los nesses últimos trinta anos. Desconfio que não. Desconfio inclusive, mas não pergunto, que ninguém saberia me dizer em que lugar do cemitério estão seus ossos.
FALSA PISTA DE UM SOBRENOME
Começo escrevendo a palavra Meruane. Pressiono a lupa que inicia a busca em uma base de dados. O único resultado que a tela me devolve é um artigo publicado numa revista britânica. “Saara em 1915”, intitula-se. Boto para funcionar a máquina da imaginação. Um Meruane explorador-de-cantil–a-tiracolo no deserto. Um Meruane negro trazido à Palestina (me vêm à memória as fotografias do meu pai aos 30 anos, seu cabelo curto de pequenos cachos, grandes óculos escuros cobrindo sua pele bronzeada, lábios grossos como os meus). O elo perdido da África no meu sangue, penso. Mas as datas não batem: foi em torno de 1915 que meu avô emigrou do Levante para o Chile. Mergulho mesmo assim na leitura e me enredo em dados de uma topografia interrompida e devastada pela construção de uma via férrea. São mencionados seis oásis argelinos e leitos de rios ressecados, partes desoladas de deserto, crostas de sal em vários trechos. Algumas linhas abaixo, aparece, finalmente, a palavra. Meruane: outro lago salgado e seco que nunca teve importância e foi completamente apagado do mapa.
RECAPITULAR
A recapitulação do passado tornou–se duvidosa até mesmo para meu pai. Não lhe contaram o suficiente ou ele não prestou atenção ou o que lhe chegou era material reciclado demais. Frequentemente, delega o relato às irmãs que lhe restam. Com certeza suas tias sabem, diz ele, desvencilhando-se de minhas perguntas, certamente sabem mais do que eu, repete, empurrando-me um pouco mais longe com essa frase, pois teme que também em suas irmãs o tempo tenha semeado esquecimentos. Invariavelmente, minha tia–primogênita se defende, dizendo, quando lhe pergunto sobre algum detalhe: como seu pai não te contou? Meu pai dá de ombros, na outra ponta da mesa. E você não lê a revista Al Damir?, continua a mesma tia, a mais memoriosa. Sou obrigada a lembrá-la que há anos fui embora do Chile e não tenho acesso a essa publicação. E seu pai, por que não te manda? Sou eu quem dou de ombros agora. Há uma acusação de indiferença no ar. Uma acusação que recai sobre mim e sobre meu pai, embora ele mantenha, como muitos compatriotas de sua geração, um vínculo solidário com Beit Jala que jamais alardeia. Auxílios monetários que, somados, mantêm lá um colégio chamado Chile. Uma praça chamada Chile. Crianças, palestinas de verdade, se é que a verdade palestina ainda existe.
OS ANDES, AO FUNDO
A cordilheira nevada ao fundo do caminho. As varas de videiras cortadas correndo na direção oposta, lembrando a hipnose que essa paisagem de velozes palitinhos costumava provocar em mim. Abro a janela para encher–me de um ar silvestre que irrita meus pulmões. Respirar o campo, agora, é uma forma de intoxicação. Outra forma é esse regresso. A incursão num tempo que já não existe. A excursão do presente. Nossa travessia carece da dramaticidade que a viagem a esse vale teve para os primeiros imigrantes. Penso na história daqueles périplos promissores, mas sobretudo penosos que, à diferença da imigração europeia, não teve apoio de nenhum governo nem recebeu qualquer subsídio. Os barcos zarpavam de Haifa[2] e descansavam em algum porto do Mediterrâneo (Gênova ou Marselha) antes de seguirem para a América com seus porões de quinta categoria cheios de árabes, de ratos, de baratas famintas. Aqueles árabes errantes eram cristãos ortodoxos menosprezados pelos turcos. Eram considerados emissários do Ocidente, ofensiva europeia, protegidos de nações adversárias. Deixavam suas terras, os árabes, portando um passaporte paradoxalmente otomano que lhes permitiria fugir daquele império, de seu serviço militar em tempos de guerras, onde seriam bucha de canhão. Os que puderam escaparam da sentença de morte trazendo um contrassenso: ser apelidados para sempre de turcos. O nome inimigo impresso como uma maldição eterna no nebuloso mapa daquela imigração. Os árabes foram arrastando uns aos outros, às Américas e ao Chile, em quantidades assombrosas; fundaram em cada ponto do vale entre as cordilheiras a lenda de que a nova terra tinha uma alma síria ou libanesa ou palestina que lhes permitiria imitar a vida tal como era, como nunca mais seria. Convenceram-se de que aquela era a única opção. Entre canteiros de damascos e azeitonas e, depois, de abacates e berinjelas e abobrinhas chamadas de italianas, e de tomates doces a ponto de explodir. Em tardes protegidas por parreirais cujas folhas deviam ser colhidas a partir de setembro e antes que o outono as tornasse papel. Sob o mesmo sol macerante, os já numerosos palestinos foram se multiplicando até duplicar os outros árabes que haviam embarcado com eles nos mesmos barcos, parado com eles no Rio de Janeiro, testemunhado as mesmas luas despontando sobre o mar até o desembarque em Buenos Aires, cruzado juntos a cordilheira no lombo de mulas guiadas por arrieiros ou, mais tarde, nos vagões de um trem transandino que foi quase completamente desmantelado.
LÍNGUAS QUE SE BIFURCAM
Avançamos em silêncio ou em castelhano, embora haja mais línguas adormecidas em nossa genealogia. Os imigrantes árabes adquiriram o castelhano à medida que perdiam o idioma materno, mas o continuaram falando entre eles, como se fosse um código secreto vedado a seus filhos: comeriam a própria língua em vez de legar a eles o estigma de uma cidadania de segunda classe. Havia uma sombra colada àquele sotaque tão evidente como a vestimenta gasta da pobreza. De ambos foi preciso se livrar e não foi difícil. Não lhes custou tanto a roupa nova porque era do mesmo estilo da que vestiam. Tampouco lhes custou adicionar o castelhano a suas línguas porosas: seus antepassados haviam habitado o espanhol durante séculos na Península Ibérica, haviam-no arabizado, conquistado sua alma com o silencioso parêntese do agá intercalado e o alvoroço-alarido-algazarra dos prefixos árabes. Falar o castelhano agora era outra forma de retorno. Minha avó, diz meu pai, o aprendera de menina, ao chegar; já meu avô o adquiriu com 11 ou 12 ou talvez 14 anos. Meu pai explica, aproveitando esse desvio, que a incerteza sobre a idade de Salvador[3] se devia à perda da certidão de nascimento quando a igreja palestina foi queimada. (Outro incêndio, eu anoto. Outra perda, a dos documentos que certificam sua origem.) Mas sua mãe e os irmãos deveriam saber a data, eu argumento, levantando o lápis do papel, levantando também os olhos para meu pai. Ele torce a boca e recorre à minha segunda-tia, que tampouco pode explicar esse enigma e, ao invés de tentar, diz que as crianças eram batizadas com atraso, que a data era adulterada para adiar ou evadir o serviço militar turco. Depois descubro que tampouco é claro se Isa veio com sua mãe viúva, uma mulher chamada Esther (que tinha uns olhos muito azuis que ninguém nunca herdou), ou se ela já estava no Chile com os irmãos mais velhos e ele chegou mais tarde com seus tios. As versões são contraditórias. Meu pai diz também, sem certeza, que meu avô foi trabalhar no sul, no moinho de seus irmãos mais velhos, enquanto aprendia sua terceira língua. O alemão ele tinha estudado num colégio de padres protestantes numa das tantas escolas de comunidades religiosas europeias que funcionavam na Palestina naquele tempo. Há cenas aqui e ali: meu avô arranhando alemão com algum cliente da loja La Florida, meu avô fazendo papel de escriba e de leitor voluntário aos compatriotas iletrados que recebiam cartas familiares do Levante. Diz meu pai: parece que estou vendo, havia um velhinho da colônia, baixo, de tez muito branca, cabelo loiro e olhos claros, que não sabia ler nem escrever. Quando recebia cartas de sua família, ia até meu pai para que ele as lesse e respondesse, e eu, que às vezes o acompanhava na loja, ficava maravilhado vendo-o riscar a página da direita para a esquerda. Não foi então nenhuma tragédia dobrar os alfabetos, inverter o sentido da escrita, permutar a sintaxe, modular a entonação até aprimorar o sotaque chileno: a placa dessa bifurcação linguística anunciava progresso, e os palestinos pegaram esse caminho. Abandonaram a venda ambulante, assim como meu avô abandonou as viagens ao sul como representante de uma distribuidora de mercadorias de um tal Manzur. Meu pai insiste, rigoroso com dados que não importam, que sequer me interessam, mas que, para ele, parecem sinalizar uma posição social: meu avô não foi vendedor ambulante, mas representante. É para sustentar essa posição instável que meu avô precisou abandonar o moinho e o armazém que teve em sociedade com seus irmãos mais velhos em Toltén, cidade que desapareceria arrasada por um maremoto vinte anos mais tarde.[4] (Outra desaparição, eu anoto, em uma saga de perdas.) Foi imprescindível se instalar na região central para dar melhor educação às três filhas de então e aos dois seguintes. Porque o grande lema de minha avó, mais ilustrada ou pelo menos mais leitora, era que o progresso exigia educação. Foi ela quem insistiu em mandar minhas tias à universidade, dar-lhes oportunidades que ela não teve, sendo aluna de um liceu técnico no qual não chegou a se formar. Foi ela quem se opôs a meu pai herdar a loja aos 16 anos, quando meu avô, sobrecarregado com sucessivos empreendimentos, pensou em passar a administração de La Florida a seu único filho. Intercedeu, também ela, para que suas filhas pudessem se casar fora da colônia. Que se relacionassem, sim, mas que mantivessem o sobrenome como marca invicta de pertencimento.
OLHAR O MAR
O ônibus que nos traz de volta de Beit Jala mantém os motores ligados enquanto descemos, um por um, e fazemos fila cercados de recrutas. Quinze ou vinte minutos naquele deserto militar conhecido como checkpoint, respondendo perguntas e mostrando nossos documentos. Agito em uma das mãos o passaporte chileno do qual, alertada por Ankar,[5] acabo de retirar a etiquetinha vermelha e numerada que, acabo de descobrir, comprova minha alta periculosidade. Na outra, a direita, agito meu green card. É essa mão que estica até o soldado enquanto a canhota esconde o passaporte. Começa a anoitecer quando deixamos o segundo posto de controle. Tivemos sorte, diz Ankar, poderiam ter sido mais. Mais paradas e mais longas e mais complicadas, se alguém tivesse aparecido em alguma lista. Muito mais tempo. Por isso precisávamos sair cedo, se desculpa Zima,[6] e baixando o tom da voz acrescenta que o checkpoint é um muro móvel onde Israel nos lembra de sua soberania sobre os territórios palestinos, que esse controle faz parte de uma política sistemática de assédio. Atrasa a viagem dos palestinos a Israel e dentro do que resta do território deles, mas ainda mais grave é a construção de muros de concreto, de estradas particulares para os colonos, de assentamentos que irrompem e interrompem a continuidade do território palestino e a união entre povos vizinhos. Nosso mapa está mediado pelos assentamentos e nossas cidades se tornaram espaços sufocantes dos quais é difícil sair. Até mesmo para ver o mar, acrescenta Ankar. O mar, repito, lembrando de repente que os cisjordanianos não têm mais litoral e que Tel-Aviv foi construída à beira do oceano. Lembro que a mulher sentada ao meu lado no avião não entendia por que eu não tinha colocado roupa de banho na mala: nunca pensei no mar. Não me aproximei para olhar a praia. Às vezes, Ankar continua falando sem reparar no meu assombro, em certas ocasiões alguma família consegue sair da Cisjordânia e se aproximar para olhar as ondas. São casos raros, diz ele, pois os palestinos são mantidos presos dentro de seus territórios. E supõe-se que os israelenses também não podem entrar nessa área: poderiam ser atacados, e uma vítima judia é uma grave questão diplomática, um assunto que poderia detonar uma guerra. Não podem entrar porque poderiam ser ativistas de esquerda, e isso é ainda pior. Só que os israelenses entram, explica Zima, entram o tempo todo para comprar, porque tudo aqui é mais barato, e entram para ocupar terras que depois reivindicarão como suas. Também as terras são mais baratas, exclama com ironia. Ankar olha para Zima com receio, Zima olha sobre meu ombro por um momento, e imediatamente se cala.
ENROLAR-SE EM UM VÉU
Compro um véu, embora Ankar tenha me dito que não é necessário. “Aqui as mulheres que querem usam e as que não, não”, escreveu-me em alguma de suas cartas. “No meu casamento havia desde burcas integrais até decotes de enlouquecer, e, em muitos casos, eram de irmãs ou primas. Na Cisjordânia é possível que você se sinta mais confortável com o véu. Zima às vezes usa quando saímos atrás de temas para crônicas. Mas não porque alguém diga que você deve usar, e sim porque aqui os homens estão menos acostumados a ver mulheres descobertas do que do lado israelense. Sem véu, chamará mais atenção. Você decide. De qualquer forma, caso queira um véu, te recomendaria comprar um hijab. Se a ideia é parecer uma local e não uma correspondente da BBC, é melhor comprá–lo aqui.” Faço isso. Por 5 shekels arranjo um véu preto e o enrolo no pescoço, à francesa. Paro numa esquina e espero abrir o sinal. Sinto um toque de mão por trás, na verdade um dedo sobre meu ombro e uma voz que formula uma pergunta que não entendo. Nem mesmo poderia afirmar que língua é, e sem olhar muito eu respondo em inglês, desculpe, não falo nem árabe nem hebraico. A mulher que fez a pergunta me olha com espanto. Árabe? Não deve ser árabe, ela, pela cara que faz quando diz essa palavra. Árabe?, em inglês, com horror, mas quem está falando árabe aqui? Alguém ao lado murmura algo em seu ouvido, suponho que em hebraico, pois falam entre si e seus rostos se contraem. A acompanhante me diz que a outra, que havia perguntado, queria saber a hora. Pensou que a senhora era israelense, isso aqui é Israel, me diz. Enganou-se, eu digo, não sou israelense e não sei a hora. E, desenrolando meu véu do pescoço, começo a enrolá-lo em volta da cabeça.
CRIANÇAS INDISTINTAS
Esta cidade é Jerusalém. Esta é a escola Max Rayne. Este judeu que surge à porta se chama Ira e não é o diretor, mas o funcionário de uma organização que apoia as cinco escolas integradas de Israel. Ankar e eu viemos conhecer essa instituição excepcional que acolhe crianças árabes e judias para oferecer a elas uma educação bilíngue e multicultural. As janelas da escola dão para uma linha de trem que funcionou até 1967 como linha de fronteira. O deslocamento dos limites, a expansão da soberania israelense após aquela guerra deixou a via sem uso e permitiu a união do pitoresco bairro árabe de Beit Safafa a Israel. Esse bairro cheio de árabes cresceu dramaticamente: assim diz Ira, que é alto e magro e nada irado, e fala com perfeito sotaque norte–americano durante nossa visita pelas instalações. Fala-nos com energia e entusiasmo quando destaca a contribuição da escola nos esforços pela paz futura. Alguns dos alunos que o escutam não parecem tão convencidos, mas Ira é inabalável em sua convicção. É impossível arranhar seu discurso com nossas inquietações. Primeiro, alega que as crianças são indistintas: ninguém poderia afirmar a que tipo de família pertencem. Depois, alega que a ideia de que os árabes são mais escuros que os judeus nem sempre é correta. Sucessivas alegações: as crianças parecem e se vestem iguais, escutam a mesma música, leem as mesmas revistas. E aprendem as mesmas línguas, incluindo o inglês: é nesse terceiro idioma que falam conosco quando Ira as convida a fazer suas declarações. O que as diferencia, acrescenta Ira sem sorrir, é o time para o qual torcem. E a religião, corrige Ankar. A religião, assente Ira, mas elas gozam dos mesmos feriados religiosos. Ainda que em versão reduzida, pois são muitos e longos. Mas deve haver alguma outra diferença e não poucas tensões entre elas, sugiro eu, pensando nas habituais crueldades da vida escolar. Ira reflete um momento e aceita que existam. São estas: os árabes conhecem melhor os judeus do que os judeus conhecem os árabes. Sabem mais da cultura, das tradições e da religião dos judeus. E aprendem melhor e mais rápido o hebraico do que as crianças judias o árabe. Por mais que os dois professores em cada turma falem seu idioma sem recorrer à tradução, os árabes estão mais expostos à língua dominante. E, quando um colega judeu se aproxima, a boa educação os obriga a passarem àquela que todos falam melhor. Além disso, enquanto a totalidade dos tutores fala hebraico, somente alguns pais judeus sabem se virar em árabe. Esses pais querem que seus filhos conheçam os árabes, cresçam com eles e, apesar das diferenças (Ira me lança um olhar de reprovação), acabem virando amigos. E os pais (israelenses de esquerda, políticos, jornalistas do Haaretz, intelectuais) também fazem esse esforço. Querem quebrar preconceitos e estereótipos, querem entender os outros e criar comunidade. Ser parte da solução, não do problema. Mas não é fácil, isso Ira também reconhece, quando consegue se libertar do homem relações-públicas que traz dentro de si. E não adianta nada ambos os lados se mostrarem como vítimas, diz, levantando a mão para cumprimentar um professor que passa por ele depressa, sem parar, como se fugisse. Estamos tentando sair dessa situação criando um clima diferente, diz, e acrescenta: deixando de ver as pessoas como representantes do governo ou como representantes do Hamas. Tentando ver em cada um o que é como indivíduo. Aqui, não impomos que as pessoas estejam de acordo. O que exigimos é que ouçam e respeitem o próximo, mesmo quando houver discórdia. Impusemos muitas regras: não se pode usar apelidos difamatórios, nem xingar ninguém. É preciso aprender a falar e discutir sobre os fatos. Deve ser a hora da troca de turno: ao nosso lado passam várias crianças correndo, indistintas. Ira as vê se afastarem. Nós, ao lado dele, as vemos desaparecer no umbral de uma porta que se fecha. Ira limpa a garganta e nos conta que, quando os alunos voltaram das férias depois da última guerra em Gaza, a escola os reuniu durante três horas para discutir o assunto. Uma coisa surpreendente aconteceu, afirma Ira, se preparando para nos impressionar. Nem todos pensavam a mesma coisa nem pensavam da maneira esperada. Algumas crianças judias se opunham às ações do governo, dizendo que não estava certo o que fazia. Algumas crianças árabes se perguntavam o que o governo podia fazer, se era atacado com mísseis desde Gaza. Fico um tempo perplexa com a possibilidade das histórias invertidas. O efeito é quebrado pela criança que se aproxima de nós na saída da escola. Questionado por Ira, esse menino árabe abandona o script para nos contar sobre as mensagens de ódio que apareceram dias atrás nos muros da instituição. Contra a escola, diz o menino, contra nós, alunos árabes. Ira o interrompe para garantir a nós e a si mesmo que aqueles rabiscos não tinham nenhuma relevância. Ira o manda de volta à classe, mas o menino árabe insiste nos detalhes, de novo, as mãos passando nervosas pelo peito como se quisesse ter certeza de que seu corpo está ali, presente.
MUROS DE GAZA
“Gaza é uma grande prisão ao ar livre, cercada de muros de concreto intercalados por torres de vigilância e arame farpado, vigiada por ar, mar e terra. É um dos territórios mais densamente povoados do mundo, e muito pobre”, me respondeu Ankar em uma mensagem em fevereiro, quando lhe perguntei sobre a possibilidade de entrar na cidade. “É praticamente impossível, a menos que você venha com autorização especial de uma missão internacional com lealdade comprovada a Israel ou disponha de muitos contatos no Exército, do lado de fora, e tenha um familiar doente, correndo risco de morte, do lado de dentro. As frotas de ativistas do mundo todo são uma das duas únicas formas de entrar e levar comida, remédio ou materiais de construção (embora correndo o risco de sofrer um ataque do Exército israelense, que é quase como um ataque do próprio Deus). A outra forma é ir ao Cairo, viajar até a fronteira, pelo deserto, e passar correndo por um posto de controle, como se você fosse uma mulher de Gaza sem documentos. Mas então o risco dobra, porque há dois exércitos não coordenados guardando a fronteira: o egípcio e o israelense. Algumas ONGs importantes com sede em Tel-Aviv, relações com os Estados Unidos e não muito alinhadas à esquerda conseguem passar alguns de seus membros, mas muito de vez em quando. Entrar assim tão rapidamente e sem justificativa firmada e carimbada, eu acho impossível.” Não deixei que a mensagem de Ankar me desanimasse. Contatei uma representante do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância]. Pode esquecer, me disse num e-mail, mas me convidou a ir a Ramallah.[7] Uma ativista italiana me confirmou que havia se tornado “extremamente difícil, e ultimamente bem poucos conseguiam. Entrar em Gaza pela passagem de Rafah é mais fácil, mas, ainda assim, muita gente espera dias e tampouco consegue”. Bati em outras portas, mas Gaza parecia fechada com cadeado. A chave havia sido engolida por Israel e estavam bombardeando os palestinos presos lá dentro. Bombardeando-os outra vez: numa intensificação de sua política de lento estrangulamento, Israel agora lançava toneladas de morte sobre eles. Era como se quisesse limpar o terreno antes de abrir a prisão. Como se fosse preciso fechar a entrada para que ninguém visse o horror da vida e da morte entre seus muros. Depois seria tarde, pensei, quando já não restasse nada, quando já não houvesse ninguém para contar como havia sido resistir ali dentro.
VIZINHOS JUDEUS
Essa noite a porta está aberta. A sala, no escuro e em silêncio. Deito no sofá sem tirar a roupa e fecho os olhos, mas estou tão cansada e tão agitada e tão comovida que não posso dormir. Não quero dormir. O tempo está acabando. Amanhã encherei minha mala minúscula de vidas que agora me pesam, mas que não posso deixar para trás. Amanhã ou depois voltarei ao sossego do meu sofá para escrever sobre o desassossego da Palestina. Sobre a calma da minha incompleta história familiar. Sobre a serenidade do meu prédio rodeado de judeus ortodoxos – os homens com cachos laterais, as mulheres com perucas e longos vestidos pretos –, sobre a angústia que me causa a movimentada sinagoga da esquina vigiada por policiais nova-iorquinos. Minha rua cada vez mais povoada dessa comunidade que foi se multiplicando ao meu redor, a universidade judaica a algumas quadras, a escolinha hebraica que eu contorno todas as manhãs a caminho do metrô, as barulhentas crianças de quipá que aprenderão inglês e hebraico e sabe-se lá que outras línguas e os vizinhos judeus que conheço há anos e de quem ouvi pedaços de seu passado. De olhos fechados, penso na velha Aviva, que, enquanto lembro dela, está quase morrendo: conseguiu se salvar, junto com os pais, de um campo de concentração. Antes de perder, há pouco, a cabeça, confessou-me que preferia não ir visitar a nora. Filhos demais. Regras religiosas demais, que ela, Aviva, se nega a obedecer. Uso peruca porque não tenho mais cabelo, contou-me da última vez que apareceu no meu apartamento, sorrindo com malícia. Penso também na velha Moriah, no canto oposto do corredor: ainda mais velha, mas continua de pé – é descendente de russos que fugiram dos pogroms. Moriah nunca seguiu nenhum protocolo e é radicalmente liberal. Não só na política. Moriah se casou quatro vezes, a última com um negro. Ela conta assim: sou viúva de um negro que não chegou a ser o amor da minha vida. E ri com o corpo todo, a cabeleira ruiva sacudindo a cada gargalhada. É Moriah quem guarda nossa correspondência e recebe as encomendas quando não estamos, que deixa em cima do nosso capacho de entrada as revistas literárias que assina, depois de ler. Minha memória do amanhã viaja agora até a porta do rabino que é contrário à existência de Israel porque lê a Torá literalmente, e a Sagrada Escritura determina que Israel só poderá existir quando o Messias voltar. Israel, para esse vizinho, constitui um anacronismo e uma heresia. (Uma vez meu pai parou diante dos adesivos colados na porta do rabino. Adesivos contra o Estado de Israel. Leu-os para mim em voz alta, assustado, meu pai. Quem é esse personagem, perguntou. Alguém que não olha para mim porque meu cabelo solto é ofensivo a Deus, falei, e o empurrei pelo corredor sem dar maiores explicações.) Quando nos cruzamos no elevador, o rabino não retribui meu cumprimento, afunda-se sutilmente em seu canto e debaixo do chapéu preto, para o caso de eu estar menstruada. Mais uma vez amanhã, antes de retornar, pensarei nesse homem que aparece tão de vez em quando, vestido rigorosamente de preto, com a correspondência acumulada debaixo do braço e malas enormes que deixa abertas durante dias no corredor, e me perguntarei o que ele pensa da situação palestina, me perguntarei se o rabino reparou no meu sobrenome, se suspeita de onde vem meu Meruane inventado, se reconhece o traço semita em minhas olheiras.
Trecho do livro Tornar-se Palestina, que a editora Relicário está lançando este mês.
[1] Cidade palestina na Cisjordânia, com população majoritariamente cristã, terra natal de numerosos imigrantes que se estabeleceram no Chile e na Argentina.
[2] Cidade situada ao norte de Israel. Em 1918, deixou de ser dominada pelo Império Otomano e passou para o controle do Mandato Britânico da Palestina. Desde a guerra árabe-israelense em 1948, é parte do Estado de Israel.
[3] Salvador Meruane, nome que Isa, o avô da autora, adotou no Chile. Isa é a forma árabe do nome Jesus.
[4] Toltén, no Chile, foi destruída em 1960 por um tsunami, provocado por um terremoto de grande proporção na costa do país. Nova Toltén foi erguida no local.
[5] Amigo da autora na Palestina, escritor descendente de judeus convertido ao islamismo.
[6] Escritora palestina, mulher de Ankar.
[7] Cidade palestina na Cisjordânia.