Trânsito
O mundo não fica nem mais leve nem mais livre, fica mais pesado e escuro. Porque os fantasmas fazem o trabalho sujo que torna o mundo suportável
Alberto Martins | Edição 23, Agosto 2008
Nenhum sinal de neve. Vinham cruzando o deserto havia horas, parando de quando em quando no meio do nada para esfriar o motor. Se houvesse algum pico nevado, neve sempre distrai os olhos. Mas não havia neve nem mar. Para onde quer que se virassem era sempre a mesma extensão de terra seca, sem graça.
O moço ao volante tira o pé do acelerador, o carro perde velocidade, sai do asfalto, pára na areia. O rapaz ao lado:
— De novo?
— De novo.
— E tem que deixar esfriar?
— Tem-que.
O rapaz abre a porta e sai chutando a areia. Dez metros adiante pára e berra:
— Nessa porra de deserto e tem que deixar esfriar o radiador!
O que estava ao volante desce do carro e com um resto de jornal começa a espanar o pó do pára-brisa. Fala baixinho:
— O radiador, a cabeça…
O outro escuta:
— A cabeça do seu tio que emprestou essa porra de carro.
— Era esse carro ou encarar o ônibus… que você não quis.
Silêncio.
O rapaz, voltando de longe:
— Tudo bem, já passou.
— Tudo bem… É só o radiador… Até aqui ninguém morreu.
— Não, ninguém… Mas vou te dizer uma coisa — olha em volta. — Se fosse pra morrer eu escolhia esse lugar.
— Por quê?
— Sei lá…
— Tô ficando com frio.
Vai até o carro, pega um casaco e continua a falar:
— Já tá começando a esfriar.
— Tá começando a escurecer também. Dizem que no deserto tudo esfria muito rápido.
— Isso é bom… pro radiador.
— Mas por que esfria rápido?
— Porque aqui tem pouca vida. Só o que é vivo retém calor. Daí, quando escurece, tudo esfria junto.
Silêncio.
— Por aqui não passa ninguém, né?
— Por isso é um deserto.
— Já imaginou um deserto com congestionamento?
— Deve ser a morte.
— Ou pior. Eu prefiro assim: o deserto deserto.
O do volante não responde. Vai até o carro, pega a lanterna e o mapa. Tenta desdobrar a folha enorme sobre o capô do carro, mas o vento não deixa, ela não pára quieta. O outro vem ajudar. Acabam estendendo o mapa no chão, os dois de costas para o vento fazendo um anteparo. Não está escuro de todo, mas o moço acende a lanterna e o facho de luz passeia no mapa entre a Cordilheira e o Pacífico.
— Pisagua, Taltal, Chuquicamata… Como são estranhos os nomes daqui…
— Acho que Chuquicamata é uma mina.
— De cobre?
— De cobre ou de nitrato.
— Nunca soube muito bem o que é nitrato.
— Acho que se usa na pólvora, na fotografia.
— Nitrato.
O rapaz pronuncia cada sílaba em separado e se afasta alguns metros. Uma fileira de montanhas começa a sumir no lusco-fusco. O rapaz pára, olha em volta, dá uns passos, pára de novo.
— Tá vendo o horizonte?
O primeiro termina de dobrar o mapa.
— Mais ou menos.
— Elas nunca se encontram, né? A linha da terra e a linha do céu… quer dizer, às vezes até parece que se encontram, mas a gente sabe que não. Só que aqui, neste desertão, as duas se encontram de fato, né? Elas se encostam, quase se apertam uma na outra… Você não sente isso? Eu sinto até o peso disso, me dá medo. É como se essa linha partisse a gente ao meio…
O do volante ouve, não responde. Gira a lanterna nas mãos, depois desatarraxa o fundo e examina o estado das pilhas.
O rapaz dá mais uns passos, o pescoço enterrado nos ombros. Olha em volta como se quisesse eleger um ponto no meio do horizonte seco e pardacento. E começa a sussurrar:
— Vou dizer uma coisa que só dá pra dizer em voz baixa: sabe quando você olha pra cima, pra baixo e pra todos os lados e percebe que você não existe? que virou invisível? que você é só uma força entre outras forças? e que se der mais um passo, aí você desaparece de vez…?
O outro recoloca as pilhas na lanterna.
— … nesse ponto, quando você chega nesse ponto, na beira da calota, o corpo pode assumir qualquer forma…
— Não sei se sei.
— … e fica fácil se transformar em qualquer coisa… em bicho, em pedra, neste deserto… sabe?
— Não.
— Pois tem gente que fez isso.
— Quem?
— Bob Dylan.
Agora o moço da lanterna se aproxima devagar, brincando de iluminar a ponta do sapato, a cada passo.
— Bob Dylan?
— É.
— O cara tá um caco.
— É que ele já fez isso um montão de vezes.
— Parece um fantasma.
— Eu sei… é um pouco como este deserto, né? — Pausa. — Sabe o que acontece quando um fantasma vai embora?
— Não faço idéia.
— O mundo não fica nem mais leve nem mais livre, fica mais pesado e escuro… porque os fantasmas têm essa missão, eles levam as coisas de um lado pro outro. Eles fazem o trabalho sujo que torna o mundo suportável.
Silêncio.
— Você tá pensando em ficar invisível?
— Não. Ainda não. Nunca mais.
A lanterna faz uns círculos amarelos no chão, contornando os torrões de areia. O moço do volante desliga a lanterna. É noite. Ele pergunta:
— Sabe quanto falta pra Antofagasta?
— Não.
— Uns 500 quilômetros.
— Até que não é tanto.
— Até que não… Vai, põe o casaco. Vamos sair deste frio.
Leia Mais