ILUSTRAÇÃO: PAULO PASTA_2006
Tratado geral da goiabada
An essay concerning the making of a good goyabada
Saulo Pereira de Mello | Edição 2, Novembro 2006
13 Thermidor 2006
Lieblichen,
Perguntavas-me muitas vezes por que eu fazia uma goiabada tão gostosa — e pedias a receita. Eu dizia que, como Leibniz, eu gostava de ter prazer no prazer do ser amado: tu. “E a receita?” — eu eludia a questão: não há receita, há um “procedimento”. Ademais, querida, dona do meu coração, este procedimento é Alchímico (com ch é mais bacana.). Fazer uma boa goiabada é como fazer L’oeuvre en Noir — fazer ouro. Ou a Philosophical Stone, l’élixir de vie e a Universalmittel. Veja só a importância de uma boa goiabada. Aprendi o procedimento, escrito em linguagem hermética, no Necromicron, aquele livro maldito que nunca existiu e que o Lovecraft me emprestou e eu devolvi. Mandei por SEDEX, para ele, em Providence, antes de eu nascer e depois de ele morrer.
Então, por amor a ti e enfrentando todas as maldições, ameaças e feitiços da Kabbala — aí vai, mas tenho que perguntar, tal como O Coelho Branco, para o Rei (ou será a Rainha?): “Where shall I begin, please, your Majesty?” E o Rei (ou a Rainha), do alto de sua sabedoria real, disse “very gravely“: “Begin at the beginning [you ass] and go on till you come to the end: then stop.”
E assim, seguindo o mais sábio, ilustre, real e lógico conselho – começo pelo começo. E o começo da goiabada é a goiaba!
DAS BRIEF
Minha Michelle Pffeifer, minha Sharon Stone; minha Julieta, minha Beatriz; minha Isolda, minha Heloisa; minha Laura; minha Greta Garbo, minha Lillian Gish, minha Louise Brooks — minha mulherzinha amada: chamamos, com derrisão, essa sobremesa popular, goiabada com queijo, de “Romeu e Julieta”. É realmente popular — mais até: vulgar. Está presente nos bandejões, nos restaurantes modestos, na mesa dos pequenos burgueses do Riachuelo e afins, nos botecos e quartéis1. No entanto, a goiabada com queijo (amarelo, não branco) pode ser uma notável, refinada e saborosíssima sobremesa. O que é necessário é coragem para admitir isso e ter uma goiabada decente. Como, então, ter uma goiabada decente — e mais do que decente — uma goiabada que se possa comparar às boas sobremesas? Tal é o objeto desse tratadinho sobre a goiabada.
A goiabada vulgar revela, apesar de tudo, um certo gosto que nos desperta o senso do prazer. Há algo de gostoso mesmo na mais vulgar goiabada — que certamente vem da própria fruta. Então, como, de que maneira, podemos captar em toda a sua inteireza aquilo que sentimos, difuso, na mais vulgar das goiabadas — translúcida, melenta, saturada de chuchu, doce demais, envolvida em deplorável folha de poliestireno? Isto é: como apreender a essência, a ousia, o quidditas, o quod quid erat esse — o que era antes de ser (veja Aristóteles, Metafísica, z 7, 1032b 1-2) eidoz deV levgw toVtiv h^n ei^nai e&kavstou kaiV thVn prwvthn ou*sivan da goiabada, da goiaba? Essência que se capta no seu maior esplendor quando os açúcares da goiaba — a frutose — reagem quimicamente com o açúcar da cana, refinado, e se transforma em uma molécula única pelo processo de “caramelização”? Isto é, na verdadeira, pura, refinadíssima e maravilhosa goiabada — que só perde em gosto para o da mulher amada.
Eis o segredo, eis a questão: “to be” (a true goyabada) “or not to be” (a true goyabada). “That is the question.”
O segredo é de polichinelo — só exige cuidado. Eis o caminho.
I
Primeiro, a matéria prima: a goiaba. Um truísmo: a goiaba é o fruto da goiabeira. Então,
GOIABEIRA – Arvoreta – isto é, pequena árvore da família das mirtáceas Psidium guayava nativa da América tropical – isto é: não há goiaba na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá (os ingleses a acharam na Índia – mas não desenvolveram a goiabada). É amplamente cultivada pelos excelentes frutos édulos (que é uma forma pedante de dizer comestível. Michele Pffeifer, por exemplo, é édula.).
Goiaba, diz também Mestre Aurélio, é indivíduo chato, bolha. Agora, Santo Agostinho dizia (não lembro mais onde) que tudo merece ser bem feito. inclusive a goiabada, deduzo.
Tudo o que é bom custa esforço, tudo o que vale a pena tem seu preço em trabalho. Fazer uma goiabada digna tem seu preço, além do preço das goiabas, do açúcar e da conta do gás.
II
Você há de ir à feira – ou à Cobal (nunca delegue esta importante missão a fâmulos) – e escolher suas goiabas. Olho atento, tato apurado, olho de águia, mãos de cirurgião (ou de amante.). Exija escolher. Sempre.
Então, primeiro a escolha — escolha goiabas belas, grandes, sadias e, sobretudo, maduras, isto é: bem amarelinhas e suaves ao toque. A doçura do toque, essa suavidade que você sente em cima – na superfície – mas que te revela a verdadeira suavidade em baixo – no âmago. Ah, meu Deus, quantas lembranças!. A goiaba é muito feminina.
Segundo. Nunca, nunca muitas goiabas. No máximo dois quilos (três exigirá muito trabalho e paciência). Cada vez é uma única vez (como o ato de amor.). Goiabada boa é goiabada verdadeira, com personalidade própria.
Então, estamos de posse de dois quilos de lindíssimas, extremamente femininas goiabas maduras, amarelinhas (de interior vermelho, como deve ser.) Que fazemos? Pelamo-las. Isto é: tiramos a casca delas. Uma faca bem afiada, para retirar a casca com cuidado — bem fininha, justo o amarelo, para que nossa goiabada única renda bem e para que o ligeiro amargorzinho que há sob a pele permaneça. Há aí um certo gostinho.
E estão as goiabas nuinhas. Então, criminosamente, com a faca sobre uma tábua — de madeira (e não de poliestireno) — cortamos as goiabas. Ou se preferir, with a mash, smash the poor goyabas. Este ato criminoso deve ser executado impiedosamente: quanto menores os pedaços, melhor. No entanto, atenção! Muitos desavisados — e, suspeito, preguiçosos — jogam o miolo fora. Nunca faça isso: o melhor da goiaba (e da goiabada) está lá. O miolo é macio, terno e doce. É cravejado de sementes (por isso é chamado de polisperma — do grego: muitas sementes, isto é, polu+ sperma).
Então a maldade maior: depois do esquartejamento, do corpo e do coração dessa fruta tão feminil, ponha tudo em uma panela funda. Para adoçar, acrescente duas xícaras de açúcar (use, refinada e um tanto viadamente, xícaras little onions, azuis.). Em seguida, ponha tudo a ferver, e mexa com uma colher de pau. Atenção: colher de pau de doce deve ser longa para não queimar os dedos de quem se ama. A colher, de preferência, não deve ser nova e não deve ser usada para outra coisa que não seja o sagrado ofício de fazer doces. (enforque na trave do porão o criminoso que ousar sequer misturar a colher do doce com a de comida salgada.). Se tiver que usar uma nova, lave-a bem (para tirar o pó da madeira) e ferva-a em água com açúcar. para adoçá-la para o seu doce ofício. Fogo brando – e mexa, mexa, mexa. Há de se formar uma massa rosada e as goiabas partidas ou esmagadas, tornar-se-ão moles, formando muito fluido. Não o desperdice: é puro ouro. Quando estiver bem macia pegue outro recipiente (de vidro, se possível), tire a panela do fogo e ponha-a ao lado dele.
III
“Aí começa a aporrinhação” (como diria Vinícius.)
Pegue uma peneira e uma colher de sopa. Vá passando, da peneira para outro recipiente, a doce massa rosada das goiabas bem amadas, mas sempre pela malha da peneira, até separar completamente as fibras e as sementes, mas eu disse completamente, nada de preguiça. Só devem restar as fibras e as sementes. Aquela babinha que você vai se sentir tentada a abandonar – já com o braço doendo de tanto esfregar a colher na peneira –, junto com as sementes é a alma da goiabada. Você já reparou como a fruta é mais gostosa junto do caroço? Terminada essa dura faina, transfira de novo a massa – que agora não é mais massa, mas um espesso fluido rosa — que já aspira à dignidade de goiabada – para a panela. Antes, porém, – isso é importante – cate todas as sementes que porventura tenham ficado nela – senão, cuidado com os dentes, obturações etc. E não lave a panela! Cate as sementes! Todo o dulcíssimo e espesso fluido volta para ser fervido mais uma vez. Fogo brando. E tampe, mas não totalmente. Também faz a pressão aumentar e a temperatura subir (veja cap. VII ou IX de qualquer tratado de Termodinâmica). E, principalmente, evita que a suave mão (que acaricia) da mulher amada fique queimada. Porque o raio da goiabada, nesse momento do seu fazer, pula paca. Salpica a gente de gotas quentíssimas que fazem desagradáveis bolhas na pele.
Deixe. “mijotando” (a feiíssima palavra que os franceses empregam para o ato de ferver em fogo brando) mas, de vez em quando, dê uma mexida (na goiabada!.) para não grudar no fundo. Você verá que progressivamente, ela se tornará mais espessa e mais vermelha.
Aí você tem que optar por um de dois caminhos.
Quando a massa estiver pastosa, você apaga o fogo, deixa esfriar e examina o trabalho.
Segue em frente e seja o que Deus quiser (au plaisir de Dieu). Mas aviso: quem se apressa, come cru.
É um momento muito importante da feitura da goiabada. A goiabada gostosa é um compromisso entre o grau de doçura e o grau de consistência. Você não pode ter uma goiabada não muito doce (o que é ótimo porque o sabor da goiaba se acentua) e ao mesmo tempo bem puxa-puxa — isto é: com aquele docinho delicioso do caramelo e aquela consistência agradável do puxa-puxa. Por isso é aconselhável parar, examinar — e meditar.
Primeiro: se tiver pouco açúcar a massa não brilha. Como definir esse brilho? Bem, é um não ser fosco. Quando o açúcar está no bom caminho a massa tem um brilho suave, não é fosca e é bem unie, diria o raio de um francês. Então você está no bom caminho.
Aí você prova. Prova frio. A massa, se você a tocar com um dedo, não deve grudar nele mas ceder, deixando a marca do dedo. E o grau de doçura você avalia, digamos, empiricamente: é questão de gosto. E a consistência você avalia com a colher.
Se estiver bem para você, você pára; mas aconselho a ir um pouco adiante. Volte ao fogo, dessa vez bem forte, todo o fogo do inferno com toda a fúria de uma woman scorned. (William Congrave não dizia: “Hell hath no fury like a woman scorned?” — de resto, frase erroneamente atribuída a Shakespeare por esta besta que vos escreve). Armada com sua colher de pau você mexe furiosamente (o doce.) senão gruda no fundo, queima, forma grumos pretos, um horror!. Você se sentirá uma diaba, a verdadeira Belzebu, assando pecadores. Os lados da panela vão ficar brancos e o fundo tenderá a formar uma película escura, queimada. Mexa furiosamente até sentir cheiro de queimado. (Não, não é nada disso, sua. vestal.) Aí pare. Acabou. Você estará suada, talvez com bolhas nas mãos, mas a doce, suave, maravilhosa goiabada estará lá. pronta.
Retire enquanto está quente e ponha em um pote, tigela, seja o que for que tenha tampa.
Não esqueça: aquela goiabadinha que ficou na panela – a raspa – no fundo e nos lados (nos lados, mas não muito em cima, na parte perto do fundo que não ficou branca) é o que há de mais gostoso. Raspe suavemente com uma colher e coma escondido e não conte pra ninguém. a raspadinha é pouca. e só quem conhece o segredo sabe. (Se fosse eu a fazer a goiabada, me certificaria de que a temperatura é boa, pediria à mulher amada que abrisse a boca e fechasse os olhos e daria a melhor parte — com todo o necessário carinho – como um gentleman deve fazer.)
Agora, se você não se agradou do grau do doce e consistência, ponha mais açúcar. O brilho da massa aumentará e a consistência ficará mais espessa. Cuidado porém — é melhor ir por tentativas do que ter pressa. Pela Graça do Senhor, tudo no mundo é diferente e não há nada igual (veja Princípio de Identidade dos Indiscerníveis de Leibniz). Cada goiaba é diferente da outra, então não há fórmula para a quantidade de açúcar porque o doce da goiabada é a soma do doce da goiaba com o doce do açúcar. Este você controla; mas o da goiaba, que veio direto de Deus, não. Só a experiência poderá resolver.Este horrível fato, que evidencia a falha de todo racionalismo radical (que Leibniz,o supremo racionalista, aponta), é o segredo da goiabada.
Ponha mais açúcar então. Volte ao fogo — ao fogo do inferno — mexa e prove outra vez. Se estiver a seu gosto, termine o serviço. Você terá uma goiabada mais doce e mais caramelizada. Questão de gosto. E de gustibus coloribusque non disputandum est. Para o latim, pergunte à Laurinha e ao João.
Uma coisa, porém, é certa: não há doce gostoso sem o processo de caramelização. Mais doce ou menos doce, a caramelização é necessária: sem a fusão em uma única molécula dos dois açúcares (das duas “essências” diria um aristotélico, um escolástico, um raio de um tomista ou neo-tomista), não há doce bom o suficiente para nossas línguas metidas a besta.
A que mandei para você é menos doce — isto é: sacrifiquei o puxa-puxa pelo menos doce, preservando o sabor da goiaba. Mas o puxa-puxa tem seus encantos. Os dentistas adoram — aumenta o mercado deles, arranca obturações.; mas que delícia! Grave problema metafísico sobre o qual medito em minhas longas noites de insônia, velho que sou.
Tal é o mundo da Goiabada.
Te amo de paixão — carnal e espiritual. Assim como forma (morϕhv) e matéria (uJlhv), em Aristóteles: inseparáveis.
Saulo Th. Pereira de Mello,
sweets maker
outubro de 2006
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1 Estava sempre presente no restaurante universitário do Calaboço (antes ou depois de chegada da polícia.).