FOTO: MAYA GOED_MAGNUM PHOTOS
Três situações
É evidente que se alguém estiver observando a cena de longe pensará que tem diante de si um louco
Modesto Carone | Edição 12, Setembro 2007
DESENTRANHADO DE SCHREBER
Contar é o método mais eficiente que consegui desenvolver para impedir a manifestação dos urros; tanto que eles emudecem assim que o cortejo dos números parte do cérebro para a boca. O avanço é decisivo em primeiro lugar porque desmente a versão de que sou um idiota incapaz de pensar; em segundo porque é desse modo que concilio o sono. Na realidade, só quem emite uma sucessão de urros na hora de dormir sabe a que ponto o fenômeno é inoportuno. No meu caso ele muitas vezes me faz pular da cama, pôr os chinelos, girar nos calcanhares e cumprir uma tarefa suficientemente clara para provar que sou um ser racional – por exemplo enumerar os reis da França ou fazer e desfazer nós consecutivos nas quatro pontas de um lenço.
Algo semelhante ocorre quando visito lugares públicos na companhia de pessoas educadas. Aí a intromissão dos urros nas pausas da conversa é fatal, a menos que eu permaneça contando sem parar. Com a providência, o máximo que se ouvem são ruídos que os interlocutores interpretam como tosse, pigarro e bocejos desastrados, ou seja, nada que se preste a um escândalo.
Em compensação, fico eufórico quando passeio pelo campo: são momentos bem-aventurados em que simplesmente deixo os urros virem a mim. Nem preciso dizer que eles invadem o meu corpo como uma torrente de água enquanto o espírito se rejubila, atravessado por incontáveis gritos e clarões.
É evidente que se alguém estiver observando a cena de longe pensará que tem diante de si um louco; por isso não é de hoje a convicção de que basta uma palavra para que eu suprima os urros e demonstre minha completa lucidez mental.
DUETO PARA CORDA E SAXOFONE
O cinto não sustenta o peso do seu corpo. Embora ele tenha emagrecido nos últimos meses (estresse, melancolia?), o couro tem um ponto vulnerável na altura dos furos mais usados. Não adianta dar um nó firme com a fivela sobre o pomo-de-adão porque as fibras estalam e estouram assim que os pés descalços saltam do banco de plástico. A visão dos músculos estremecendo, principalmente as pernas, mais finas que há três anos, quando a fluência era completa, ou ao menos parecia, sobretudo no reflexo dos vidros da varanda aberta para os tacos vermelhos do assoalho – é preciso concordar que a imagem não alegra o coração de ninguém. O que talvez substituísse o cinto com vantagem seria o rolo de corda que sobrou do barco à vela. Ele nunca ficou sabendo de quem foi o barco e o embaraço maior é que não faz idéia em que armário a corda se enrola. O nó em volta do pescoço tem de ser ensebado com cera ou com um pedaço de vela, matéria menos rude e própria para correr lisa e sem perigo. Sem perigo – que fim de frase! Alguém disse que a condição de escrita é que a realidade perca a evidência. Deve ser verdade, mas às vezes acontece justamente o contrário. É o caso do cinto neste momento, porque o couro rebentou em dois lugares quando ele puxava com mais força, depois de prender a fivela na maçaneta da porta de entrada, que é maciça. A solução sem dúvida é a corda do barco. O curioso é que, depois de achá-la, ele tomou a precaução de fazer um teste, esticando-a com as costas inclinadas para trás e nesse instante ouviu o som do saxofone. Lá fora fazia um sol esplêndido, as estrias atravessavam os vidros da porta corrediça da varanda protegida por uma grade de ferro e mergulhavam fundo nos tacos vermelhos do assoalho e no tapete de sisal. Mas a impressão mais forte é que os objetos da sala – vasos de flores, pinheiro de Natal, reproduções de quadros conhecidos, os sofás cobertos por lençóis – assumiam uma postura, ou o que quer que seja, que até pouco antes não tinham. Embora breve, a mudança o obrigou a caminhar devagar, os pés descalços, até a varanda estreita do outro lado dos vidros. A essa altura a luz resvalava nas telhas da churrascaria e nos muros baixos do bairro. Não havia vento na rua, as árvores soltavam o pó amarelo que descarregam no fim da tarde e que invade as narinas. Por fim o silêncio dentro e fora e com ele a calma inesperada. Olhou para as mãos, as unhas pretas, as veias saltadas sobre as manchas da pele, voltou a pensar no cinto, na corda, no banco de plástico, nas pernas finas suspensas no ar. Não era fácil, por algum motivo não era nada fácil. A escolha tinha sido pensada muito tempo em todos os pormenores. Viu um clarão nos cacos de vidro sobre a mureta do corredor de entrada e o grave do saxofone desceu cheio pelos seus ouvidos. De onde, onde? Não sabia da existência de nenhum instrumento de sopro naquele prédio pobre, escondido e sem elevador. Ergueu o olhar para as sacadas de cima, duas ou três haviam sumido na sombra, outras pareciam silhuetas, percebeu então a do último andar, que resplandecia. Um risco de prata tingia as grades como se fosse outra coisa além da lua: o sol tinha desaparecido e a noite mal se anunciava. Seriam as chaves do sax? Alguma disposição das nuvens depois que o dia terminara? Simplesmente nada – era isso o mais provável. Deixou a varanda, cruzou de punhos fechados a sala e foi direto ao rolo de corda do barco à vela. Ela estava perfeita em todos os aspectos. Amarrou-a na barra de aço do boxe do banheiro, esticou-a com energia, o laço corria bem, subiu em cima do banco de plástico e deu-lhe um pontapé. Creio que só bem mais tarde o vento vindo do pátio escancarou as janelas e espalhou os papéis da mesa sobre a trama brilhante do tapete de sisal.
O RETORNO DO REPRIMIDO
Ele tinha acabado de morder o tapete num dos seus acessos de raiva quando se lembrou de que agora já podia voltar. Ainda de cócoras arrancou com a mão trêmula os fiapos grudados no bigode branco, decepou com o dedo em riste a baba pendurada no queixo e saltou para cima seguindo a mola do braço direito disparada para o alto. Naturalmente as juntas reagiram mal, mas ele não acusou a menor falha no seu desempenho – o entusiasmo da volta anulava toda possibilidade de crítica. Tanto que, apenas pousou de volta no chão com os braços estendidos, foi procurar o espelho no centro da sala acolchoada. Naquele momento, a imagem não era muito nítida, fosse por causa da distância ou do reflexo nas botas recém-lustradas. A falta de visão era um embaraço, o que não o impedia de se contemplar, fora de foco, pelo ângulo mais favorável. De qualquer maneira, gritou o seu urra! vespertino enquanto observava o cortejo de farrapos avançando pela superfície do espelho. Com um olho e uma sobrancelha ele os fez parar; com os outros dois ficou admirando o crepúsculo que manchava de sangue as vidraças. Terminado o espetáculo, bateu os calcanhares e de ventas infladas, ouvindo o rolar dos tambores, andou até a porta. Fazia tempo que ela ficava travada por fora, mas agora ele sabia que há sempre um vento qualquer que a destrava assim que a noite cai.
Leia Mais