O vírus é uma ameaça à humanidade, mas também, em certo sentido, um elo com a nossa versão celular mais arcaica. No princípio, antes do verbo, nós talvez fôssemos um tipo de vírus CREDITO: VITO QUINTANS_2020
Uma biografia improvável
O que são vírus – esses parasitas que nos deram nada menos que 8% do nosso DNA
Roberto Kaz | Edição 164, Maio 2020
Cena 1: planeta Terra, 4 bilhões de anos atrás. É um típico dia de sol, a temperatura oscila entre 75 e 100ºC. Não há plantas nem bichos, apenas rochas, que se deslocam como seres vivos, tamanho é o número de terremotos, tsunamis e erupções vulcânicas. Vez ou outra, o horizonte de furacões e raios é entrecortado pela queda de um meteoro, evento comum num sistema solar ainda jovem, na flor dos seus 500 milhões de anos. Mais explosões, mais terremotos, mais tsunamis.
Cena 2: Estados Unidos, 1952. Os cientistas Stanley Miller e Harold Urey, da Universidade de Chicago, tentam reproduzir em laboratório o que seria a atmosfera daquela Terra vulcânica. Colocam água, hidrogênio, metano e amônia dentro de um recipiente, que é depois aquecido, até que o líquido vire vapor. Bombardeiam o vapor com descargas elétricas para induzir as reações que resultariam de uma tempestade de raios, e voltam a condensá-lo, imitando a cadeia natural da evaporação seguida de chuva. Após uma semana de processo intermitente, a solução aquosa antes estéril passa a abrigar cinco aminoácidos.
O experimento de Miller e Urey foi um divisor de águas na bioquímica por comprovar uma tese até então restrita ao campo teórico: a de que moléculas inorgânicas, como o metano e a amônia, poderiam dar origem a elementos orgânicos, como os aminoácidos. “O aminoácido não tem vida, mas é uma molécula complexa, que serve de base para a formação das proteínas”, explicou o virologista Francisco Murilo Zerbini, da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. “E, se numa semana o experimento gerou essas moléculas, não é absurdo pensar que numa escala de milhões de anos a atmosfera pudesse gerar os nucleotídeos.” Os nucleotídeos são moléculas também complexas – as famosas letrinhas A (de adenina), T (timina), G (guanina) e C (citosina) que, combinadas, servem de base para a estrutura do DNA.
O fóssil mais antigo já encontrado até hoje tem 3,5 bilhões de anos de idade. Trata-se de uma cianobactéria, um organismo unicelular que, a exemplo de nós, humanos, e de qualquer protozoário, fungo, planta ou animal, armazena sua informação genética em hélices duplas de DNA. Mas como foi que a natureza saltou de um cenário de reações químicas elementares para um mundo de enorme complexidade biológica, em que uma célula é capaz de se repartir ao meio, produzindo uma cópia de si mesma, de forma a se perpetuar?
Não são poucas as teorias que tentam explicar o surgimento da vida, questão fundamental que inaugura a ciência, a filosofia e a religião. Uma tese razoavelmente bem aceita, ao menos entre virologistas, é a do “Mundo do RNA”, assim cunhada em 1986 pelo bioquímico norte-americano Walter Gilbert, que ganhou o Prêmio Nobel de Química antes disso, em 1980. Segundo a tese, a sopa primordial de elementos químicos pode ter levado os nucleotídeos a se agruparem inicialmente em moléculas de RNA, que são mais frágeis, instáveis e, por assim dizer, mais manobráveis que as de DNA (a molécula de RNA, que também é composta de quatro nucleotídeos, seria como uma casa de alvenaria e a de DNA como um bunker de aço).
Em algum momento, essas moléculas de RNA teriam aprendido a se reproduzir. “O RNA é reativo, ele pode atuar como se fosse uma enzima, ao contrário do DNA, que é estático”, explicou Zerbini. Enzimas são moléculas dotadas de propriedades catalisadoras, ou seja, que podem induzir reações químicas. “A gente sabe que algumas das enzimas são capazes de fazer o RNA se dividir. Se existe essa capacidade, não é exagerado pensar que outras moléculas de RNA pudessem catalisar o processo inverso de juntar duas moléculas que estivessem próximas.” Esse potencial de recombinação teria aberto caminho para uma infinidade de mutações genéticas, que podem ter levado o RNA a consolidar o processo de reprodução e, em última instância, a “subir na vida”, evoluindo para o invólucro mais seguro do DNA.
Hoje, todo ser vivo – a ameba, o mosquito, a bromélia, a água-viva, a gaivota, o baobá ou a baleia-azul – armazena sua informação genética em DNA. A única exceção é o vírus, que pode armazená-la em DNA, mas também em RNA, como é o caso do Sars-Cov-2, nome técnico do novo coronavírus responsável pela atual pandemia. Ele é uma ameaça à humanidade, mas também, em certo sentido, um elo com a nossa versão celular mais arcaica. No princípio, antes do verbo, nós talvez fôssemos um tipo de vírus.
O vírus é o parasita por excelência, incapaz de ser protagonista da própria vida. Ele precisa da ajuda de uma célula, da qual se apropria à força, sequestrando certas partes, para conseguir se replicar. Quando não está usufruindo do seu hospedeiro, o vírus navega pelo mundo, como um barco à deriva, esperançoso de encontrar uma ilha – um ser vivo dotado de células compatíveis com o seu material genético – onde possa atracar. Por vezes, o encontro é violento, ou patogênico, em termos técnicos: o náufrago se faz dono da ilha, consome todos seus recursos e vai embora depois, ainda faminto, rumo a ilhas similares (não sem antes se reproduzir aos milhares, para otimizar a nova empreitada). É essa a relação que temos com o novo coronavírus.
A segunda forma de o vírus se relacionar com o hospedeiro, e a mais comum, pelo que se sabe, é classificada na categoria “comensal”. Nesse encontro, o náufrago habita a ilha de forma sustentável, pesca seus peixes, bebe seus cocos, tomando cuidado para não extinguir nenhum recurso natural. Em outras palavras: o vírus vive dentro da célula, faz uso do maquinário dela, mas não a adoece. Não espalha seu material genético com tanta rapidez nem tenta matar aquela que tão bem o acolheu. É o tipo de relação menos estudada, justamente porque não provoca nenhum dano constatável.
Há ainda um tipo de interação de característica “mutualista”, em que tanto o vírus quanto o hospedeiro se beneficiam. Nesse encontro, o náufrago não só respeita as condições da ilha, como resolve aproveitar um terreno baldio para cultivar uma horta. A relação mutualista é como um casamento arranjado que tem tudo para não funcionar, mas acaba prosperando, por obra do acaso e pela capacidade de adaptação de cada cônjuge. Um exemplo: quando infectado com um tipo de densovírus, o piolho-cinzento-da-macieira desenvolve asas que o ajudam a alcançar novas plantas. Outro exemplo: certas abóboras se tornam menos atraentes para o besouro – uma praga – quando infectadas por uma espécie de potyvírus. Há vários casos. Uma infecção por herpes pode proteger camundongos contra a peste bubônica. O vírus da hepatite G retarda o desenvolvimento do HIV em humanos.
Virologistas gostam de dizer que o vírus é o organismo mais abundante no mundo. A estimativa é hipotética, dado que apenas 6 590 espécies foram catalogadas (a título de comparação, cientistas já descreveram mais de 1,2 milhão de organismos celulares). Ainda assim, faz sentido quando se pensa que cada espécie de bactéria, protozoário, fungo, planta e animal é infectada por seus vírus particulares. O Sars-CoV-2 é ilustrativo: habitava morcegos e pangolins, com os quais tinha uma relação saudável – como a do náufrago que usufrui da ilha sem esgotá-la – até sofrer uma mutação espontânea, que o tornou compatível com humanos. Foi assim que surgiu a Covid-19, sigla em inglês para a doença do coronavírus de 2019, quando o primeiro caso foi registrado na província chinesa de Wuhan.
“Quando um vírus encontra um novo hospedeiro, ele costuma causar uma doença muito severa, já que o corpo ainda não está preparado para combatê-lo”, explicou Zerbini. “Com o passar do tempo, a tendência é que ele se torne menos nocivo.” A reconfiguração ocorre tanto por obra do organismo infectado, que vai criando anticorpos para combater o intruso, quanto do próprio vírus, que lucra mais, em termos de perpetuação genética, se mantiver o hospedeiro vivo, espalhando suas cópias como uma arma biológica. “Um vírus que te deixa de cama e te mata em questão de dias não vai ser transmitido para muita gente”, disse Zerbini. “Nesse sentido o novo coronavírus está na infância, já que nunca coevoluiu com o ser humano. É capaz de ele causar uma doença muito menos grave daqui a cinco ou dez anos.”
Francisco Murilo Zerbini é uma espécie de jurista da virologia. Ele integra, com outros dezoito pesquisadores, todos eles estrangeiros, a diretoria do Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV, na sigla em inglês). É esse comitê – uma espécie de Supremo Tribunal Federal do mundo dos vírus – que nomeia e classifica cada espécie de acordo com reino, ordem, família e outras categorias da taxonomia. Sars-CoV-2, por exemplo, é o diminutivo de Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (ou seja, é o segundo coronavírus conhecido a causar a síndrome respiratória aguda grave). O nome foi oficializado pelo ICTV no dia 11 de fevereiro, quando o vírus passou a integrar o grupo de 39 espécies da família do coronavírus. Seu irmão mais velho, o Sars-CoV, foi batizado em 2003.
Zerbini é um homem magro, de cabelo liso e repartido ao meio, aparentando ter menos do que os seus 53 anos. Além do trabalho no ICTV, ele coordena o Laboratório de Ecologia e Evolução de Vírus, que ocupa um andar amplo e organizado do Instituto de Biotecnologia da Universidade Federal de Viçosa. Lá, orienta doze pesquisadores que trabalham com vírus de plantas. “Normalmente, isso aqui está cheio”, contou, enquanto mostrava o laboratório em uma chamada de vídeo, numa segunda-feira de abril. “Mas por causa do coronavírus fizemos uma escala de trabalho, para não haver mais de duas pessoas ao mesmo tempo.”
Nascido em Maringá, no Paraná, Zerbini passou a infância entre Curitiba, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. “Meu pai era gerente do finado Banco Nacional. A gente se mudava muito, mas eu nunca gostei de cidade grande”, disse. Conheceu Viçosa ainda criança, quando um irmão, doze anos mais velho, mudou-se para a cidade depois de passar no vestibular. “Decidi que também queria vir. Achava que gostava de engenharia genética, mas, no fundo, o que eu queria fazer era secundário.” Entrou para a faculdade de agronomia.
Na agronomia, Zerbini teve uma aula sobre vírus que infectam plantas. “Dali em diante já comecei a trabalhar como voluntário no laboratório de virologia.” Continuou no laboratório, durante o mestrado, quando estudou o vírus do mosaico dourado do feijoeiro (os vírus, ao contrário dos animais ou das plantas, não seguem um padrão de nomenclatura: às vezes são registrados com siglas técnicas, como a “salmonela vírus SN34”, que infecta uma bactéria; outras, com nomes poéticos, como o “vírus da tristeza dos citros”, que acomete laranjais).
“Esse vírus do mosaico do feijoeiro é superimportante”, continuou Zerbini. “O produtor perdia muito dinheiro na época com essa doença. Tanto que, até hoje, dos itens básicos da nossa alimentação, o feijão é o único que o Brasil ainda importa.” Quando foi fazer doutorado na Universidade da Califórnia em Davis – referência na área de agronomia –, tentou continuar com o estudo. “Mas o meu orientador de lá, o Robert Gilbertson, me sugeriu trabalhar com o vírus do mosaico da alface. Naquela época, a Califórnia produzia 80% da alface dos Estados Unidos, era um mercado de 2 bilhões de dólares que estava tendo prejuízo por causa da doença.” Zerbini teve seu estudo bancado por uma empresa que depois viria a ser comprada pela Monsanto, multinacional da área de agricultura e biotecnologia. Chegou a desenvolver uma alface transgênica, resistente à virose, que não foi plantada em larga escala. “Já havia muita pressão contrária”, justificou.
Em 1996, com 30 anos de idade, ele voltou para Viçosa, depois de passar num concurso para professor na universidade federal.
Por mais distintos que sejam entre si, animais, plantas, fungos, bactérias e protozoários dividem o mesmo denominador comum: todos possuem um pequeno grupo de genes que codificam o DNA ribossomal, responsável por produzir proteínas na célula. São esses genes que dão respaldo prático à teoria, elaborada pelo naturalista britânico Charles Darwin em 1859, segundo a qual todos os seres descendem de uma mesma “forma primordial”. “A sequência dos genes não é idêntica no humano e na bactéria, por exemplo, mas é suficientemente parecida”, explicou Zerbini.
Já com os vírus, não há uma sequência genética que perpasse todas as espécies como no caso dos organismos celulares. Alguns vírus, como o parvovírus, que ataca cachorros, carregam sua informação genética numa única fita de DNA. Outros, como os da varíola, herpes e catapora, carregam a informação também em DNA, mas numa hélice dupla, a exemplo do que ocorre conosco. E há, por fim, os vírus constituídos de RNA: HIV, ebola, rubéola, dengue, raiva, sarampo, poliomielite e o novo coronavírus. São os que mais causam epidemias. “Eu não diria que eles são mais nocivos, visto que a varíola dizimou populações inteiras, e era feita de DNA”, explicou o virologista Edison Durigon, da Universidade de São Paulo, referindo-se à doença que matou ao menos 300 milhões de pessoas antes de ser erradicada, em 1980. “Mas de fato existem mais epidemias de RNA porque eles mutam com facilidade, o que gera uma vantagem para escapar do nosso sistema imunológico.”
“Quando dois virologistas se conhecem, a primeira pergunta que fazem é: ‘Trabalha com DNA ou RNA?’”, disse Zerbini, em tom de anedota. A diferença entre as duas categorias – de vírus, não de virologistas – se dá no uso que o parasita faz da célula infectada. “O vírus invade uma célula para criar novas cópias de seu material genético”, prosseguiu. “Para isso, ele tem duas alternativas: ou produz a enzima que faz esse trabalho, ou usa a enzima da célula para fazê-lo.” O vírus de DNA é do time que prefere usar o motor enzimático da célula, mais “compatível”, afinal, com a configuração genética dele, que é também feita de DNA. O vírus de RNA, por sua vez, usa o próprio motor, mas sequestra outras propriedades da célula para poder acioná-lo.
Zerbini ilustrou: “Pense que a célula é um caminhão, e que o vírus, muito menor, é uma moto. Eles param lado a lado no sinal de trânsito, e o motoqueiro anuncia um assalto.” Se a moto (na condição de vírus) é feita de DNA, o motoqueiro só precisa roubar o combustível do caminhão para seguir viagem. Se a moto for feita de RNA, é como se fosse movida a eletricidade e, nesse caso, roubar o combustível é inútil. “O motoqueiro vai roubar outras coisas que faltam em sua moto, como caçamba, estepe, rádio, farol de milha.”
Ou seja, o vírus de RNA acaba fazendo um estrago maior. “Uma outra imagem que eu gosto de usar é a seguinte: pense que são dois irmãos pedindo dinheiro para o pai. O irmão de DNA precisa de 100 reais, mas pede 50. O de RNA precisa dos mesmos 100 reais, mas pede 5 mil. Desperdiça muito mais.” É o caso do novo coronavírus, que deixa um mar de células estraçalhadas no pulmão, o que acaba por levar o paciente à morte. Não por acaso, a palavra virus em latim significa “veneno”, e a palavra “virulência” – termo técnico para descrever a gravidade de uma doença – acabou virando sinônimo de violência.
Zerbini já trabalhou tanto com vírus de RNA – o do mosaico da alface –, quanto de DNA – o do mosaico dourado do feijoeiro. Por motivos práticos, como o preço dos reagentes, se dedica hoje apenas ao segundo grupo. “Foi uma forma de eu ficar competitivo internacionalmente. O trabalho com RNA é mais caro, demorado.” Ainda assim, é pelo vírus de RNA que seu coração bate mais forte. “Eu gosto desse aspecto de falsa simplicidade que ele tem”, disse, com uma frase que vale tanto para o vírus como para o amor. “Consome tanto recurso da célula que é excessivo até para si mesmo.”
Eugene Koonin é um biólogo russo naturalizado norte-americano e uma referência no restrito campo da virologia evolutiva. Quatro anos atrás, publicou um estudo respondendo à pergunta que mais se faz às pessoas que estudam os vírus: se esse agente infeccioso está ou não está vivo, já que é incapaz de se reproduzir sem parasitar outra espécie. No estudo, Koonin relembrou um anúncio de revista que exaltava os desinfetantes à base de álcool. “Eles matam a maioria dos tipos de bactérias, vírus e fungos em poucos segundos”, dizia a publicidade. Explicou que, apesar da “imprecisão técnica” – desinfetantes não matam grande parte dos fungos –, o anúncio respondia “inconscientemente” a uma dúvida debatida por cientistas há muitas décadas: “A lógica aqui é simples e inquestionável: você não pode matar algo que não esteja vivo.”
Vírus não só estão vivos como são um fator fundamental na evolução de todos os seres vivos. Num relatório publicado em 2013, a Sociedade Americana de Microbiologia sugeriu, inclusive, que o surgimento dos organismos multicelulares – uma importante ruptura evolutiva, que fez um ser de uma única célula resultar, bilhões de anos depois, num tiranossauro – teria ocorrido, em parte, como resposta à predação dos vírus. “A vida das células em grupo pode ter proporcionado um alívio à infecção”, dizia o texto.
Vírus e células disputam um eterno jogo de gato e rato, ou uma corrida armamentista, como definiu a virologista norte-americana Marilyn Roossinck. Se o vírus desenvolve um novo míssil depois de uma mutação, a célula precisa criar um novo escudo antiaéreo, e assim por diante, num padrão contínuo de mudança que pode ou matar, ou fortalecer, ou até resultar em novas espécies, tanto de vírus quanto de hospedeiro. É por isso que o vírus da gripe, por exemplo, que frequentemente cria um novo míssil por meio de mutações, todo o ano precisa ser enfrentado por uma nova vacina.
Esse processo explica por que, no longo prazo, os vírus deixam marcas no DNA das células, como um organismo de milhões de anos fossilizado numa pedra. O melhor exemplo é o do retrovírus. Trata-se de um tipo específico de vírus de RNA, que prefere depositar uma cópia do seu genoma na célula invadida em vez de apenas usufruir de seu maquinário. Seguindo o exemplo do filho que pede dinheiro ao pai, o retrovírus não quer 50 reais, como o vírus de DNA, nem mesmo 5 mil, como seus irmãos de RNA. Ele propõe logo uma sociedade.
O HIV é um retrovírus. Quando infecta a célula, ele funde uma cópia do seu genoma com o DNA da própria célula, que passa a interpretar o código genético do vírus como parte de si mesma. A partir daí, toda nova cópia da célula terá também o DNA do vírus, que nesse caso, ganha um novo nome: retrovírus endógeno.
O retrovírus endógeno é um manual de instruções de como fabricar o vírus, mas ele pode passar anos dentro de um corpo, sendo replicado de maneira silenciosa, sem agredir o organismo. É por isso que algumas pessoas têm o HIV (que é o vírus), mas não a Aids (que é a doença). A Aids mesmo só aparece quando a célula, por um motivo aleatório, como o estresse, recorre ao manual guardado do retrovírus endógeno e começa a fabricar milhares de cópias do vírus original – e, este sim, se incumbe de atacar as células. É também por estar impresso como fóssil no dna celular que o HIV pode ser transmitido durante a gravidez para a geração seguinte.
Quando o genoma humano foi mapeado, no começo deste século, descobriu-se que 8% do nosso DNA (sim, 8%) é formado por trechos originados de retrovírus. “Essas sequências um dia foram retrovírus endógenos íntegros, ativos, que tinham condição de criar cópias do vírus original. Hoje estão inativas, devido ao processo de mutação ocorrido dentro da própria célula”, afirmou Zerbini.
Foi em 2002 que Zerbini se juntou ao ICTV. Na época, ele estudava duas espécies novas de vírus que vinham atacando as plantações de tomate. “O laboratório onde eu fiz meu doutorado, nos Estados Unidos, era especializado num grupo de vírus chamado geminivírus”, contou. “E para a minha sorte – e essa ‘sorte’ eu coloco entre aspas, claro –, quando eu voltei para o Brasil os tomates estavam sendo predados por dois vírus dessa família.” Como os novos vírus eram ainda desconhecidos da literatura científica, Zerbini precisou enquadrá-los nos padrões da taxonomia. “Foi ali que surgiu esse meu interesse.”
Naquele ano, Zerbini participou de um simpósio do ictv em Paris, onde apresentou um trabalho sobre os novos vírus, que ele nomeou como “vírus do mosaico dourado do tomateiro” e “vírus da mancha amarela do tomateiro”. Ato contínuo, passou a fazer parte do grupo de estudo responsável pela classificação dos geminivírus. Em 2007, organizou um simpósio do grupo em Ouro Preto. Em 2014, foi convidado para ser um dos membros do Comitê Executivo (na analogia jurídica, se o Comitê Executivo é o Supremo Tribunal Federal da virologia, os subcomitês e grupos – onde há outros pesquisadores brasileiros – são as instâncias inferiores, como o Superior Tribunal de Justiça). Está prevista para outubro a escolha de novos membros para o Comitê Executivo do ICTV. “Mas a gente não sabe se o encontro vai acontecer por causa da pandemia”, disse Zerbini. “Se rolar, imagino que eu continue na diretoria. Dificilmente aparece alguém interessado.”
Hoje, Zerbini acumula a diretoria com a coordenação do subcomitê responsável pelos vírus de plantas (que, por sua vez, é dividido em 22 grupos de estudo). “Nós nos reunimos uma vez por ano para analisar cerca de 150 propostas. Algumas são de vírus novos, outras de realocação de vírus antigos em outras categorias taxonômicas. É um trabalho totalmente voluntário, que dá uma dor de cabeça, porque muitas das decisões são questionadas pelos virologistas.”
Zerbini já apresentou mais de quarenta novos vírus ao ICTV, um número considerável, dado o catálogo exíguo de espécies classificadas. “A virologia é um campo muito recente”, lamentou. A razão é de ordem prática: até 1931, quando foi inventado o microscópio eletrônico, os vírus, que medem até cem vezes menos que uma célula, só existiam no campo especulativo (as bactérias, muito maiores, já eram vistas através de microscópios desde 1676, mesmo que só viessem a ser nomeadas quase dois séculos depois). Além disso, o grosso da pesquisa virológica é voltado aos vírus que causam doenças em humanos, e esses mal passam de 250.
Em março, Zerbini expôs ao ictv sua proposta mais ambiciosa, assinada em conjunto com Eugene Koonin e mais seis virologistas. A tese defende que os vírus “nasceram” ao menos quatro vezes ao longo da história, ou seja, que tiveram ao menos quatro ancestrais, diferentemente dos seres celulares, que compartilham dos mesmos genes e, por isso, têm um único e mesmo ponto de partida. “Eu diria que essa é a maior mudança no campo taxonômico da virologia dos últimos trinta anos”, disse, sem disfarçar o orgulho.
Apesar de acatada pelo Comitê Executivo, a teoria desagradou nomes importantes da área. “Por que construir algo tão rígido que pode ir desabando à medida que novos vírus forem descritos?”, perguntou o virologista Edward Holmes, da Universidade de Sydney, na Austrália, ao ser entrevistado pelo New York Times. Exemplo concreto: o yaravírus, recém-descoberto por uma equipe coordenada pelo virologista Jônatas Abrahão – integrante do ICTV e professor da Universidade Federal de Minas Gerais –, não se encaixa em nenhum dos quatro grupos propostos.
“Alguns vírus ficaram de fora”, admitiu Zerbini. “Provavelmente existem mais um ou dois reinos que não conseguimos enquadrar.” Comparou: “Pense na taxonomia como um armário. No armário dos organismos celulares você consegue guardar cada espécie na sua respectiva gaveta. No dos vírus você guarda a maioria, mas sobram algumas, que acabam sendo jogadas naquela gaveta da bagunça.” Concluiu: “No fundo, a taxonomia é algo completamente abstrato, artificial, já que os critérios de classificação foram inventados pelo homem. Mas sou um cara meio neurótico, faço questão de que tudo esteja no lugar certo. No meu laboratório é assim. Poder categorizar me ajuda a entender como as coisas funcionam.”
Zerbini tem ido todo dia à universidade, mesmo com a suspensão das aulas. “Nosso laboratório tem colônia de inseto e câmara de crescimento de planta, não dá pra deixar sem cuidado diário”, afirmou. “Além disso, é difícil fazer home office com três crianças.” Sua mulher também é virologista, pesquisadora da universidade. A família mora numa casa a sete minutos de carro do trabalho. “Para Viçosa, isso é distante.” A cidade tem 78 mil habitantes.
Desde 2008, o laboratório de Zerbini se dedica exclusivamente ao estudo evolutivo de vírus de plantas. “No segundo mandato do Lula, tinha tanto recurso para pesquisa que me dá vontade de chorar quando lembro”, disse. “Nessa época eu pude começar a estudar ciência básica, sem a necessidade de haver um interesse econômico.” Ultimamente, sua equipe tem comparado o desenvolvimento de espécies de geminivírus em dois cenários: o de regiões com agricultura e o de regiões mais selvagens, com pouca atividade humana. “Queremos saber como o vírus que está lá quietinho, em equilíbrio na natureza, passa a infectar uma planta com a qual ele não está acostumado e se torna um patógeno. No fundo é um estudo sobre o salto do hospedeiro, a mesma coisa que aconteceu com o novo coronavírus.”
Com a chegada da pandemia ao Brasil, o laboratório de Zerbini foi habilitado pela Secretaria de Saúde do governo de Minas Gerais a fazer testes clínicos do Sars-CoV-2 para pessoas com suspeita de infecção na Zona da Mata. Em meados de abril, ele recebeu os reagentes, comprados com verba da Universidade Federal de Viçosa. “O kit de diagnóstico chegou ontem. Dá para fazer mil testes, o que é pouco, já que a demanda é de duzentos por dia”, disse, por telefone. “Só em Minas tem uns 25 mil na fila de espera. Estou muito ansioso com isso.”
Naquele momento, Viçosa tinha um paciente com suspeita de Covid-19 internado e alguns sendo acompanhados de casa. A prefeitura havia decretado estado de emergência e fechado as três vias de entrada da cidade. “Como todo mundo aqui se conhece, as pessoas têm me parado quando vou à padaria para perguntar quando vamos começar os testes”, contou, dizendo-se feliz de prestar um serviço público. “Mas não deixa de ser estranha essa novidade. Nosso trabalho nunca chamou muita atenção, eu até gostava que fosse assim.”
Também em abril, começou a ganhar vulto uma teoria defendida pelo virologista francês Luc Montagnier – ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 2008 – de que o novo coronavírus teria surgido em um laboratório de Wuhan, após ser acrescido de sequências do HIV. “Descarto totalmente. O artigo científico em que ele se baseou para afirmar isso era ruim de dar dó, tanto que foi retirado do ar dois dias depois de ser publicado”, disse Zerbini. O texto, assinado por uma equipe de pesquisadores da Índia, havia sido veiculado em janeiro na plataforma bioRxiv, um site onde rascunhos científicos se tornam públicos sem passar pelo rigoroso escrutínio das revistas acadêmicas. “Os pesquisadores ‘identificaram’ pequenas regiões do coronavírus aparentadas com o HIV. Só que esse parentesco não é só com o HIV, e sim com dezenas de outros vírus de RNA”, explicou. “Seria como dizer que humanos são relacionados com peixes porque as duas espécies têm um par de olhos.”
Zerbini prosseguiu com uma explicação técnica, repleta de siglas, nomes de proteínas e termos em inglês, para concluir: “O que eu quero dizer é que um evento simples e aleatório de recombinação pode ter gerado o Sars-CoV-2.” Ele acredita que o vírus, num primeiro momento, teria migrado de um morcego ou de um pangolim para uma pessoa. “No ser humano, esse vírus teria baixa adaptabilidade.” Mas, por coincidência, essa pessoa estaria infectada por outro coronavírus já adaptado ao corpo humano. “Com os dois vírus presentes na mesma célula, teria então ocorrido o processo de recombinação, gerando um novo vírus plenamente adaptado, mas com severidade muito maior.”
Reiterou que a sua explicação é hipotética. “Não existe evidência direta de que isso tenha ocorrido, mas há precedentes com inúmeros outros vírus.” O fato de haver em Wuhan, onde começou o contágio, um instituto de pesquisas que trabalha com coronavírus alimenta a ideia da fabricação do novo parasita em laboratório. “Mas é pura coincidência. As pessoas não resistem a uma teoria conspiratória, porque ela fornece uma resposta simples para algo extremamente complexo, como a origem de um vírus.”
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