Quatro vezes Escárnio, trabalho de Hirotoshi Ito, e a réplica a Benamê Kamu Almudras: embora não ataque explicitamente as cotas, o seu texto recorre a ideias parecidas às de velhos questionamentos para denunciar a profanação da universidade pelos estudantes. Mas não pelos estudantes em geral, e sim pelos que trazem para a sala de aula o debate de questões raciais CREDITO: SNEER_HIROTOSHI ITO_@ITOHIROTOSHI_2014
Uma visão nebulosa e conservadora
O texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo é uma peça preconceituosa
Demétrio Toledo, Regimeire Maciel, Maria Carlotto e Flávio Francisco | Edição 174, Março 2021
A chegada daqueles estudantes havia desestruturado o arranjo secular que reservava as vagas do ensino superior público aos filhos das famílias ricas. O fato escandalizou parte dos professores; poucos, no entanto, tiveram coragem de dizer o que realmente pensavam e menos ainda de agir para restabelecer a ordem das coisas. Afinal, os tempos vinham mudando e já não era tão fácil justificar o antigo exclusivismo. Ainda assim, um deles sugeriu: “E se expulsássemos os que não sabem falar direito?” A ideia, que a alguns colegas pareceu esplêndida, obviamente pegou mal entre os alunos recém-chegados, filhos de imigrantes, que passaram a tratar com vaias e xingamentos os professores mais obstinados.
A balbúrdia chegou a tal ponto que as aulas tiveram que ser suspensas, e a escola, fechada. Os estudantes não se deram por vencidos: vandalizaram o local de trabalho de um dos professores, o mesmo que dias depois teria que se esconder no interior de uma prestigiosa escola para escapar da surra da estudantada, que estava por aqui com ele. Mas a agitação toda rendeu pouco: algum tempo depois desses incidentes, os professores fizeram valer sua autoridade e restabeleceram a ordem. Foram aplicadas novas provas de português, e os reprovados foram expulsos.
Essa história aconteceu na capital paulista, em 1913, na recém-criada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, mais tarde incorporada à USP. Seus elementos estruturais, contudo, se repetem: o professor que resiste à democratização do acesso à universidade denunciando a perda da qualidade do ensino e a falta de mérito – e de modos – de quem chega. O ano de 2021 começou com uma reedição dessa história.
O texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo, publicado na piauí_172, de janeiro, causou enorme impacto no meio acadêmico e dividiu opiniões: “muito bom”, disseram alguns; “abominável”, disseram outros. Nele, um docente universitário, elegendo os estudantes como ameaça existencial à universidade pública brasileira, descreve platitudes das relações entre eles e os professores, no dia a dia. O artigo defende que muitas das contestações dos estudantes aos métodos e às disciplinas da universidade pública e seu corpo docente são movidas por uma atitude “neoliberal”, que vê a escola como uma espécie de estabelecimento comercial e os professores como “serviçais privados”, cuja função é satisfazer as vontades dos alunos, que se entendem como “consumidores”. Essa atitude, diz o texto, acaba resvalando em manifestações autoritárias da parte dos estudantes, tanto à direita quanto à esquerda.
Lançando mão da expressão “neoliberalismo cultural” – que não é empregada a título de crítica ao capitalismo e de seus modos de dominação, mas de condenação moralista das lutas pela democratização da universidade pública –, o texto diz haver uma indústria de denúncias que promove “a proliferação de acusações infundadas de racismo, sexismo, classismo, homofobia e transfobia feitas contra professores”. O artigo termina com um chamamento: “Romper nosso pacto de silêncio e reconhecer os perigos igualmente autoritários, igualmente violentos e igualmente neo-liberais que vêm do outro lado [da esquerda política] – inclusive de nossos alunos.” O que pensar disso tudo?
O texto se revela nos detalhes. É o caso da autoria. É assinado por Benamê Kamu Almudras, pseudônimo cuja sonoridade desorienta quem lê, visando talvez obter um salvo-conduto para dizer o que, sem esse escudo, não ousaria. O anonimato leva o leitor a pensar que nas universidades impera um clima de perseguição e de ameaça à liberdade de expressão que o autor (ou será autora? Impossível dizer) vem denunciar.
As anedotas relatadas, talvez para dificultar a identificação da autoria, só aumentam a confusão: não há nomes, não há tempo, não há lugar. Seus heróis são arquétipos (o professor da área de ciências humanas, a professora da área de saúde), vivem em lugares indefinidos (o Sudeste, o Nordeste), pesquisam e dão aulas em uma instituição genérica (a universidade pública) e lutam contra inimigos (os estudantes) que compensam sua falta de poder real com muita esperteza.
O caráter nebuloso do texto é o que lhe confere força, mas também produz sua fraqueza. A descontextualização histórica e a ambiguidade teórica e política criada pelo uso da expressão “neoliberalismo cultural” foi o que produziu empatia até mesmo em um público favorável à democratização do acesso à universidade e que, curiosamente, se sentiu contemplado pelos argumentos do texto. Com isso, o autor logrou conquistar novos e improváveis aliados para sua cruzada restauradora. Por outro lado, justamente porque descontextualiza os conflitos relatados é que o texto ignora o essencial das transformações da universidade, deturpando o seu sentido.
Mas, afinal, o que está acontecendo na universidade pública brasileira que incomoda tanta gente? Para entendermos o descontentamento do autor, é preciso voltar um pouco no tempo e recordar algo das lutas pela democratização do acesso à universidade.
Ao contrário de outras ex-colônias da América, que fundaram universidades ainda no período colonial, o Brasil só foi contar com instituições regulares de ensino superior depois da Independência, ocorrida em 1822. Aqui, as primeiras faculdades (instituições isoladas e ainda não organizadas na forma de uma universidade) foram criadas para formar os quadros políticos necessários à construção do Estado nacional. Desde o início, já continham os traços que marcariam o ensino superior brasileiro até o século XX: o caráter fortemente elitizado de seus corpos discente e docente e a necessidade de imersão na vida acadêmica, com dedicação exclusiva do aluno, que precisava, portanto, ser sustentado pela família.
A democratização do acesso ao ensino superior brasileiro se deu em três ondas. A primeira ocorreu com o surgimento das universidades entre as décadas de 1920 e 1930 e dos primeiros cursos propriamente científicos do país. Os cursos de física, química, biologia, matemática, ciências sociais, história, geografia, letras e filosofia, porém, exigiam muita dedicação para o pouco retorno político e econômico que rendiam. Assim, não atraíam o interesse das elites nacionais, mais voltadas para as formações tradicionais de advogado, médico e engenheiro. O desinteresse dessas elites pelas carreiras científicas permitiu que os filhos de imigrantes e, em menor medida, os trabalhadores e as mulheres que compunham a florescente classe média urbana tivessem acesso aos cursos menos procurados.
O avanço deu-se lentamente, apesar da pressão do movimento estudantil pela criação de novas vagas. A tensão atingiu o auge durante a ditadura militar (1964-85), levando os militares a recrudescer o controle político nas universidades, perseguindo professores e alunos, e a promover uma reforma universitária no simbólico ano de 1968 que favorecia, pela primeira vez, como política pública, a expansão do ensino superior por meio do setor privado. Essa segunda onda, que se estendeu até o início dos anos 2000, foi marcada pela inclusão de mulheres na universidade e representou um passo importante na reconfiguração do ensino superior. Mas não houve mudança substancial no perfil social e, particularmente, racial das universidades.
Nas duas últimas décadas o ensino superior passou por sua terceira e mais profunda transformação, em consequência de um conjunto de políticas dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-16). Essas políticas incluem o Programa Universidade para Todos (Prouni), implantado em 2005, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2007, e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), em 2010, que utiliza a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para selecionar candidatos às universidades federais. Houve ainda a reestruturação do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
Uma das novidades do período foi a adoção de cotas de acesso às universidades públicas com recorte social e racial. Principal modalidade de ação afirmativa adotada no Brasil, as cotas começaram a ser implantadas no início dos anos 2000. Ao contrário do que muitos pensam, elas têm, antes de tudo, um recorte socioeconômico, pois seu primeiro objetivo é facilitar o acesso de alunos oriundos da rede pública à universidade. Só depois de feito esse recorte, aplica-se o critério racial. Assim, a terceira onda de democratização do acesso ao ensino superior contemplou tanto os filhos da classe trabalhadora quanto a população negra e indígena.
As cotas foram um divisor de águas nas discussões sobre a universidade brasileira e seu caráter elitista. Ao desfazer o monopólio do acesso à universidade que as elites brancas detinham desde o Império, as cotas promoveram a mobilidade social ascendente a amplas parcelas da população. Um diploma universitário dá acesso a melhores postos de trabalho no mercado privado e público, com impacto direto sobre a renda dos indivíduos. Mas os benefícios do diploma não se esgotam na pessoa que obteve o título: refletem-se no conjunto de sua família (inúmeros estudos revelam que a variável que mais afeta a renda de um indivíduo é o nível de escolaridade dos pais). Graças a essas mudanças, hoje a universidade pública é também um dos poucos espaços da sociedade brasileira onde jovens de classes sociais e origens distintas podem se encontrar, socializar e criar redes de solidariedade que subvertem ao menos um pouco a desigualdade econômica que tanto separa os brasileiros em mundos isolados.
Essas mudanças criaram e ainda criam desconfortos, como o manifestado no texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo. Ainda que se coloque como parte de uma minoria e defensor de pautas progressistas, o autor ultrapassa a fronteira que separa progressistas de conservadores, ao afirmar, como foi dito, que há uma indústria de falsas denúncias na universidade brasileira sob o comando dos “neoliberais culturais” (inclusive de esquerda, todos eles autoritários). Nada de novo no argumento. Antes mesmo de serem adotados programas de ações afirmativas nas universidades, acadêmicos e intelectuais que questionavam essas políticas profetizaram que os campi universitários se converteriam em espaços de conflito racial. Articulistas da grande imprensa chegaram a dizer que uma ditadura do politicamente correto estava se expandindo nas universidades, comprometendo o direito de livre expressão no debate público.
Embora não ataque explicitamente as cotas, o texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo recorre, de maneira sub-reptícia, a ideias muito parecidas às dos velhos questionamentos para denunciar a profanação da universidade e do conhecimento pelos estudantes. Não pelos estudantes em geral – no fundo, sua denúncia tem um alvo preferencial: os estudantes que trazem para a sala de aula o debate de questões raciais.
As anedotas contadas pelo autor perdem, então, seu caráter banal, pois envolvem desde “eventuais deslizes de linguagem passíveis de punição pela impiedosa e infatigável milícia do vocabulário” (deslizes cujo conteúdo ele não revela, indicando apenas se tratar do uso de expressões hoje em dia consideradas preconceituosas), até “acusações infundadas de racismo”.
O autor cita, por exemplo, o caso de uma aluna negra que teria aproveitado o impacto causado pelos protestos depois do assassinato do negro norte-americano George Floyd para acusar de racista um professor “especializado em pensamento afro-atlântico” que a reprovara. Também relembra o caso de uma docente que, “entre os vários supostos erros de que […] foi acusada, estava o de, apesar de ser branca (judia, vale lembrar), ter dedicado décadas de pesquisa e atuação pública ao combate ao racismo”. Faz referência genérica a cotas na pós-graduação, acrescentando que a não admissão de uma pessoa de grupo discriminado em um programa de pós-graduação pode resultar em acusação (falsa) de preconceito. Nesse ponto o autor apresenta uma de suas mais reveladoras reflexões: “Há casos em que um candidato a pós-graduação, ao não ser admitido em processos seletivos com cotas para grupos discriminados (como todos os programas devem incluir), afirma que sua não admissão é sintoma de preconceito – mesmo que, obviamente, a vaga que ele não obteve seja destinada a outra pessoa da mesma categoria (vemos aqui o problema do fogo amigo: programas que não praticam ações afirmativas não correm o risco desse tipo de acusação e seu racismo passa incólume).”
A argumentação é tortuosa, mas não deixa dúvidas quanto à posição do autor, que subverte a relação entre opressor e oprimido, atribuindo a estes o preconceito, e ainda diz: “O preconceito de alguns indivíduos contra o próprio grupo oprimido é uma triste realidade.” Deplora o “brutal assassinato de George Floyd”, mas recrimina a referência ao caso e aos “recentes protestos antirracistas nos Estados Unidos” como recurso para contestar uma decisão da universidade.
Mas como dizer o que de fato pensa sem ser acusado de conservador? É justamente por causa da força que a pauta antirracista ganhou há pouco no país e, antes disso, no ensino superior público, que o posicionamento do autor contra o processo de abertura da universidade a novos grupos sociais não é explícito. A saída que encontrou foi lançar mão deste conceito que, à primeira vista, parece ter algum valor crítico: “neoliberalismo cultural”.
A ambiguidade teórica e política da expressão “neoliberalismo cultural” – relação na qual estudantes se sentiriam na posição de clientes e consumidores, tratando o ensino como mero serviço que lhes é oferecido por professores – explica a recepção favorável que o texto teve entre muitos colegas da academia. A função é retórica: apesar de ele ser implicitamente contra a democratização do acesso à universidade, a expressão leva o leitor a situar o autor no campo progressista. Ele não percebe, ou não quer ver, que as situações que qualifica com o rótulo de neoliberalismo cultural são parte importante dos questionamentos que hoje ocorrem nas universidades e têm a ver com as demandas de novos sujeitos que nelas estudam e a ruptura da homogeneidade historicamente constituída nas escolas. Para piorar, o texto cala a respeito do neoliberalismo realmente existente, que, este sim, é uma ameaça concreta à universidade pública, pois tira recursos destinados a ela, destrói políticas arduamente conquistadas e fecha o horizonte ao desenvolvimento inclusivo e democrático.
Os argumentos do autor só esclarecem sobre sua incapacidade de lidar com as transformações da universidade e mesmo com os princípios democráticos da academia. Ora, nada poderia estar mais de acordo com o espírito que rege a vida universitária do que o questionamento constante do que se aprende e do modo como se ensina. Não é segredo para ninguém que as bibliografias dos cursos, os temas de pesquisa, os métodos de aula e às vezes os assuntos tratados muitas vezes estão parados no tempo. Em um ambiente universitário que só recentemente se abriu à população negra e aos estudantes de baixa renda, a tensão entre as ideias estabelecidas e as novas era de se esperar, mas é também algo bem-vindo.
O autor, contudo, não para aí sua digressão sobre o desconforto que lhe causa a universidade atual. Vai além, recorrendo a um dos principais argumentos contra as ações afirmativas nas universidades: a meritocracia, ideologia que transforma privilégios de classe, raça e gênero em mérito individual dos… privilegiados. Ele escreve: “Tive a oportunidade de ler várias cartas de alunos, endereçadas a professores e a instituições, que defendiam não tanto o direito de estudar, mas sobretudo o de receber um diploma acadêmico, independentemente do mérito do estudante.” No seu entender, muitos dos novos estudantes não disporiam de mérito suficiente para receberem o diploma, pois acham apenas que “o incontestável direito à educação equivale a um suposto direito universal a um título”, não exigindo deles nenhum esforço. Conclui, dizendo que o problema fundamental causado pelo neoliberalismo cultural é seu impacto sobre a universidade, a saber: a perda de qualidade do ensino e da pesquisa e o aviltamento da civilidade acadêmica.
A realidade, contudo, é diferente. Pesquisas revelam que os estudantes que ingressam por meio de cotas têm desempenho igual ou superior aos estudantes que ingressam pela concorrência geral. Além disso, os debates propiciados pela presença desses estudantes nas universidades são também uma oportunidade de renovação científica e intelectual dos professores, arrancando-nos da mesmice de um mundo intelectual feito por e para pessoas brancas num país em que a população negra é maioria.
Sem dúvida, o neoliberalismo tem provocado forte impacto nas universidades. O principal, contudo, não é a intensificação dos conflitos advindos da chegada de estudantes com novos perfis socioculturais, especialmente a população negra, mas a fragilização das mudanças que permitiram que eles entrassem na universidade. O sucesso das políticas de inclusão desses alunos e da sua permanência nas escolas se deve também ao financiamento público do ensino superior, pois garante bolsas socioeconômicas, de pesquisa e extensão, moradia e assistência estudantil, mobilidade, bem como a formação e a contratação de professores.
O campo educacional é, como muitos têm mostrado, um espaço prioritário para a ação do programa neoliberal, tanto em países centrais quanto periféricos. No Brasil, tornado terreno de experimentação de políticas neoliberais, o efeito da emenda constitucional do teto de gastos sobre as universidades públicas (para citarmos apenas um exemplo) compromete esse processo transformador, seja porque bloqueia a expansão do sistema, seja porque destrói as políticas de inclusão.
O autor não se refere ao neoliberalismo como ideologia econômico-política, mas a um processo cultural genérico (uma “forma cultural, em que o mercado, a ética individualizante e o espírito do consumismo são erigidos como o modelo cognitivo e normativo da vida social”) que atua sobre o comportamento e as expectativas individuais, conformando sujeitos que da universidade só querem os diplomas. Ou seja, de conceito crítico, o neoliberalismo foi transformado, como dissemos, em condenação moralista das formas culturais que a democratização do acesso à universidade teria assumido nas mãos dos estudantes – uns mal-educados, na visão do autor, que estão mandando a etiqueta às favas (“é também corriqueira a impolidez de pós-graduandos brasileiros, que não agradecem a seus orientadores […], não pedem desculpas por falhas que cometem e exigem reuniões, atestados e assinaturas, amiúde com prazos impraticáveis, em vez de pedi-los com boa antecedência e de forma cortês”).
Conforme essa visão, a resistência ao neoliberalismo não passa pela luta de classes nem pela solidariedade social, não se dá na disputa pelo fundo público, não envolve a construção de um projeto de nação menos desigual nem a defesa de uma universidade pública mais democrática e receptiva a novos sujeitos. Ao focar apenas no chamado “neoliberalismo cultural”, o artigo parece indicar que tudo se resolveria ao denunciar as contestações dos estudantes ao sistema universitário, descartando a possibilidade de elas serem atitudes induzidas pela crítica e forjadas na prática política.
A recepção complacente da parte de alguns setores da esquerda – progressistas conservadores, com o perdão do paradoxo – de um texto que ataca a recente democratização da universidade parece estar ligada à busca pela pedra filosofal que finalmente legitimará a oposição ao antirracismo, restabelecendo as concepções de mundo centradas na classe social e deslegitimando os temas “identitários” – que combinam a defesa de políticas distributivas com as reivindicações de identidade.
Nesse ponto, o texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo é apenas o capítulo mais recente da velha tentativa de apresentar as lutas por igualdade social e racial como fabricações ideológicas, desse modo livrando a cara dos que se beneficiam com essas desigualdades. E a expressão “neoliberalismo cultural” seria a mais nova aquisição daquela velha linhagem de ideias confortáveis que tentam apaziguar ou neutralizar as reivindicações de grupos no Brasil, como “democracia racial”, “cadinho de raças” e “identitarismo”. Não é de todo improvável que alguém, da próxima vez que houver uma acusação de racismo, sexismo, classismo, homofobia ou transfobia nas universidades, recorra ao texto em questão para desqualificar a denúncia.
As acusações apresentadas no texto visam lançar em uma zona de desconfiança não apenas os estudantes, em especial os oriundos da terceira onda de democratização, como também os professores que defendem que essa democratização não se resume à presença física daqueles alunos, mas inclui o diálogo a respeito das novas questões que eles trazem à universidade…
A universidade é uma instituição-chave para a transformação social. Por isso, é importante que professores, estudantes e atores da sociedade civil engajados na luta contra as desigualdades sociais apoiem tanto as políticas de inclusão como os debates intelectuais que surgem no novo ambiente acadêmico, dando um sentido prático a expressões como “construção de novos saberes” (que aparecem frequentemente nas linguagens institucionais inclusivas, mas quase nunca têm efeito prático).
O pioneirismo e mesmo a teimosia com que o movimento negro brasileiro defendeu as cotas nas universidades públicas e transformou essa demanda em políticas públicas são uma contribuição civilizacional. À medida que o debate ganhou corpo, mobilizando diferentes setores da sociedade, a definição de políticas de ação afirmativa foi sendo ampliada, incorporando outros grupos sociais e passando a atender a parcelas expressivas da população. Os estudantes que ingressaram nas universidades públicas por meio das ações afirmativas não são uma ameaça neoliberal disfarçada em pautas identitárias nem desqualificam o saber acadêmico. Ao contrário, eles são os protagonistas de uma transição que ocorre nas universidades – de projeto público-patrimonial para projeto inclusivo, que desafia os preconceitos que ainda resistem firmemente nas instituições brasileiras.
Apesar da tragédia social, política e de saúde pública que vive o país, a universidade pública é hoje um espaço onde o otimismo e a esperança continuam presentes diariamente, pois ali se produzem as transformações sociais por meio da educação. Esse é o motivo por que a universidade pública precisa ser defendida por todos que compartilham um projeto democrático e popular de sociedade.
É professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC
É professora de políticas públicas na Universidade Federal do ABC
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