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Várias mulheres
Ela é do tamanho de um armário. Ela me joga fora feito um limão espremido. Ela sente por mim o que eu sinto por ela. Ela conduz a coisa com muita inteligência, é coerente e usa argumentos bem fundamentados para terminar comigo. Ela pode ser classificada como alguém de quinta. Ela me ama. Ela me odeia
Péter Esterházy | Edição 48, Setembro 2010
QUINZE
Há uma mulher. Ela me ama. Ela me tranquiliza o tempo todo, acredite, diz, a título de exemplo, eu não te odeio nem um pouco. E, sufocando de emoção, acrescenta: Agora vou andar de bicicleta para arejar a cabeça. Como se isso me dissesse respeito. Ou ela me acalma dizendo que não está grávida. Ou melhor, está no sexto mês, veja a barriguinha, mas não se preocupe, ela assume tudo, e, na verdade, com certeza vai ser um menino. Garantido, e me bate nas costas. Quer tudo na hora. Como se a vida, a vida dela, fosse um filme acelerado. Mal tínhamos ido para a cama e ela já se angustiava com a educação da futura criança. As línguas, o mais importante são as línguas, mas não se preocupe, eu resolvo, Instituto Goethe. Com isso tudo ela não deixa de ser atenciosa quando vê que me deprime muito, diz, levante a cabeça, não sou o único homem na vida dela (para diminuir a minha responsabilidade). E eu, estando ou não preocupado, de fato me tranquilizo. Na verdade, quando um dia eu descobrir por que ela tem pressa, por que atropela tudo, por que também me empurra para frente, para uma dieta vegetariana, vai ser tarde demais.
CINCO
Há uma mulher. Ela me ama. Ela se debate com o passado, a saber, o individual e o coletivo, com o passado próprio e o do país. Ela não se conforma. Por exemplo, não consegue digerir a rendição em Világos. Quem sabe se Dembinski tivesse um pouquinho mais de talento… Ou por que ele não gostava de Kossuth-Görgey? O senhor sabe a bunda que eu tinha? Não, o senhor não sabe. Não, não pense num rabo igual ao de uma égua, num redemoinho barroco, não pense nessas, eu entendo, idealizações banais… O senhor só vê o que existe. Em 18 de fevereiro de 1853, János Libényi, aprendiz de alfaiate, cometeu um atentado malsucedido contra o imperador. O senhor vê apenas que ela se desprendeu, que ela está caindo, que a minha bunda está caindo.
Ela gosta de beijar (veja Kossuth-Görgey), deixa-se levar por uma alegria incontida, ri, gargalha, relincha – são diversas variedades de beijo. Que gostoso!, e ela fica brincando na minha boca, mais, vamos, mais um pouquinho, a língua endurece, quase bate no céu da boca, emite trinados lá dentro na escuridão, na minha escuridão. A Paganini dos beijos, digo, vulgar. Quieta! Estou trabalhando! Os beijos deslizam sobre ela, sobre o pescoço, sobre o rosto bronzeado, as bochechas, o nariz, as órbitas, eu a beijo nos olhos, nas têmporas, no alto da cabeça, as coxas se movimentam, apenas se mexem, se tocam e se separam, e nas costelas e nos ossos…
A rendição na planície de Majtény, ela geme.
SEIS
Há uma mulher. Ela me odeia. Tem mau hálito. Da boca dela emergem diferentes cheiros. Podem ser divididos em dois grupos principais, a saber: dependem de ela ter comido ou não. A identificação das circunstâncias acima é uma ciência divertida, talvez sem importância. Sopa de couve-flor. Acompanhada de chucrute. E os básicos, cebola, alho. Por outro lado, por exemplo, o tempero das folhas verdes com alho-poró requer certa sofisticação. E se trata de uma mulher limpa, ou seja, tudo acontece em meio a uma abundância de escovação de dentes, não raro de um excesso de pastas de dentes.
Quando ela não come é que a coisa fica séria, pois nesse caso não existe ontem nem crepúsculo, quando está alimentada não existe coisa parecida, não existe tempo, não existe causa nem efeito, não existe, portanto, lógica, não existe história, não existe memória (e assim também não existe moral), e não existe sociedade, sem falar em país, pátria, nação, existe somente uma pessoa (eu a conheço, por isso falo assim) que exala despersonalização, um fedor pútrido, morno.
Não, não é fedor, é menos que isso, e, portanto, exatamente por essa razão, é mais assustador. É um mau cheiro discreto, suave. Contido, moderado: discreto; se não gostasse acima de tudo de trocar beijos com ela eu não perceberia nada. Se não me impelisse um desejo permanente, insaciável, na direção dos lábios dela, eu não teria consciência desse descuido da criação, dessa ferida, vergonha escancarada. A mulher inteira lembra o vento soprando na direção da fábrica de cola. Nada é mais insuportável que sua ternura. Quando cubro o rosto dela com beijos miúdos, apressados, beijo seus olhos, as pálpebras, as órbitas, o nariz, as orelhas, as bochechas, as têmporas, e, de certa forma, os lábios, a boca, eu me deparo com o próprio horror, chego a extremos tão selvagens de repulsa que fico tonto. Por outro lado, quanto mais selvagem eu sou, insensível e brutal, ou se de pronto eu a subjugo, como um animal, arrancando de verdade a sua boca, como se a devorasse, com as mandíbulas estalando, as línguas se debatendo em meio a um gosto de sangue, tanto menos penso na fábrica de cola, sobre a qual se diz, hoje em dia, que foi privatizada por centavos.
É por isso que quando eu a surpreendo em um momento propício para a beijação, e hoje em dia quase não há lugar para isso, ou seja, antes que eu me veja sob o poder da virtude ou da devoção que cerceia o prazer individual ou coletivo, eu começo a correr na direção dela, como um personagem de desenho animado, ergo as pernas na altura do pescoço e upa!, esbaforido, me agarro a ela, sem parar, porque sei que caso contrário o vazio pútrido me golpearia, me abateria, falta estragada das faltas, o nada apodrecido, sopro fétido, que, já houve exemplo, me dá ânsia de vômito, com ranho e saliva misturados – relação por relação, essa também é uma delas.
Ela sabe de tudo e por isso me odeia. Trata-se de um sentimento que lhe propicia segurança. Ela me entende mal, pensa que faço o que faço por generosidade, e por isso me odeia. Mas não, eu sou mesmo louco por ela, quando fecho os olhos vejo apenas ela, quando abro os olhos, faço de tudo para vê-la. Quando descobrir essa verdade ela também vai gostar de mim. Mas isso não é importante, o importante é que eu possa vê-la.
TRINTA E DOIS
Há uma mulher. A minha mãe. Posso? Tenho uma mãe. Ela me odeia. Recorrendo a uma concepção sexista, de porco chauvinista, ela pode ser classificada como alguém de quinta, com jeito de República Democrática Alemã, evidentemente ordinária (batom, roupas, dentes), que por isso mesmo é um ser que chama a atenção e que, um dia, enquanto tomava sol estatelada, abriu e ergueu um pouco as pernas, e com isso, de certa forma, a carne na base das coxas, atrás, caiu, formou dobras, e essas dobras trouxeram à luz, exibiram, alguns pelos, pelos púbicos. Depois que o movimento cessou, tudo ficou daquele modo, escancarado.
Durante anos não consegui desviar o olhar. Não: nunca consegui desviar o olhar.
TREZE
Há uma mulher. Ela me ama. Só que tenho de esperar pela minha vez. Quando jantamos, sempre há seis ou sete homens além de mim. (Há sempre sete homens além de mim, sempre os mesmos sete homens, não falta nem aquele cujo irmão se suicidou; de manhã ele fez as compras, pôs as cartas no correio, não havia carta de despedida entre elas, em seguida pulou do 10º andar de um condomínio.) São todos simpáticos. A mulher também pensa assim (ou melhor, esta é a opinião dela, eu apenas a partilho), aproxima-se de mim para me sussurrar no ouvido, veja como são simpáticos! Ela se orgulha. Seus olhos de dona engordam o porco.
Comemos em bons restaurantes, gostamos dos que servem peixe. Comemos peixe em três, ou até mesmo em quatro de cada cinco vezes em que saímos. Preferimos os peixes de mar aos de rio, com exceção de carpa; por ela toda a turma se encanta. Na ordem eu sou o último, tenho de esperar pela minha vez. Esperar, esperar como se a noite nunca fosse acabar, ao contrário: como se alguém, de súbito, a qualquer momento, pudesse pôr nela um ponto final. Antes de chegar a minha vez. Eu espero, quando posso. Ora o zero é assustador, ora o infinito. Ora, digamos, o 28. Todos têm alguma razão para passar na minha frente. Isso às vezes cai mal, de outras vezes eu me sinto especial (de certa forma, como uma banda que precede o show principal).
Um dos nossos companheiros é marinheiro, do Danúbio, mas não faz mal. Ele não problematiza nada, ri muito, guturalmente, gosta de contar histórias sobre a família, sobre as duas filhinhas e a mulher, que usa maria-chiquinha, tem duas marias-chiquinhas douradas. A despeito disso ele é um homem fino, sabe contar histórias de maneira interessante, usa montes de palavras e expressões técnicas da Marinha e tem prazer nisso (“Se de manhã até as 11 horas há ao menos uma mancha azul-marinho no céu, ela significa que nesse dia vai fazer sol”), se ofende com facilidade (“O meu pai”, costuma contar, “morreu porque comeu uma cavalinha que já tinha andado pelos lados de Estocolmo”, dava a entender que ela não era fresca, mas não podíamos zombar dele, sem falar que o pai nunca havia saído de Nyírbátor), e tinha um ouvido bom para os comentários escusos. Era mais jovem que eu, de ombros largos, musculoso. Eu só o vi usando paletó de tweed grosso. Assim o imagino jovem. É verdade que, dependendo da situação, ele não fazia muita cerimônia. Quando já éramos apenas três, o que acontecia com frequência – ele, eu e a mulher –, ele tinha vontade de me expulsar do bar. Porque depois do jantar começávamos a andar pela cidade, havia dois ou três lugares que visitávamos sempre na mesma ordem, locais de blues e de rock’n’roll, eu sentia uma leve nostalgia enquanto a mulher e o marinheiro, por serem mais jovens, faziam caretas. O marinheiro não gracejava – uma vez disse: Eu significo muito para ela, disso você sempre se esquece! –, mas sorria, às vezes apertava o meu braço, via-se que desejava alcançar seu objetivo: Agora tome um táxi e vá para casa. Eu também sorria e balançava a cabeça: Claro, claro, daqui a pouco, e continuava balançando a cabeça, como se fôssemos irmãos.
A minha determinação e persistência me surpreendiam. Porque ao final revelavam que eu sou determinado e persistente. Porque a coisa começa de modo diferente. Como se eu fosse um franco atirador, um caçador de oportunidades. Acaricio o xale turquesa (da mulher) chamativo, bonito e, imagino, caro, e nisso a minha mão desliza para o pescoço dela, ela então depressa inclina a cabeça de lado e com ela aperta o dorso da minha mão contra sua clavícula, como faz com o telefone um negociante ou uma secretária experiente. Entretanto, em outras horas da noite sou como o caçador seguro de si, um velho tubarão habilidoso que sabe que o tempo trabalha a seu favor, time is on my side, yes, it is, yes, it is, ora o vento sopra daqui, ora dali e ora de acolá, espera, espreita, a mantém ao alcance dos olhos. Seja como for eu me esforço para que o marinheiro não veja tudo. Eu não gostaria que ele me decifrasse (em especial o meu jeito de fechar os olhos ao trepar) e me pusesse numa situação de desvantagem.
As noites são longas, eu me arrasto em meio a muitas situações imprevisíveis, internas e externas, surpresas, acontecimentos inesperados, mas elas acabam sempre da mesma maneira, graças a Deus. (Um dia os galos se enfrentaram, o marinheiro e eu ficamos de fora, mas depois ele e a mulher tentaram separá-los, e, assim, pareceu que eles também estavam envolvidos. Vi como eles bolinavam a mulher, o marinheiro também. De repente estavam se beijando a três, com as metades dos rostos, não sei muito bem como. Eu estava sentado na banqueta do bar; quando algum deles olhava para mim, eu lia um ódio discreto no olhar. Eu sei me sentar em uma banqueta de bar como outros em sofás; poucos podem afirmar o mesmo.)
NOVENTA E SETE
Há uma mulher. Ela me ama. Gosta de mim cada vez menos, e me deseja cada vez mais. Quando a aperto contra a parede, ela se abre. Não preciso nem me mexer e já me acolhe. Quando estendo a mão para pegar o sal, também acabo pegando nela. No bonde seguramos a passagem juntos. Quando respiro, preciso roubar o ar da sua boca. Um dia encontrei a dentadura dela na minha boca. Sou um ser de outro mundo. Sinto cada vez mais dificuldade para me nomear. Não tenho mais nem escova de dentes própria.
DEZESSEIS
Há uma mulher. Ela me odeia. Me expulsa o tempo todo. Me liquida. Me joga fora, feito um limão espremido. Conduz a coisa com muita inteligência, é coerente e usa argumentos bem fundamentados para terminar comigo. Porque está na hora de parar. Trabalhamos muito, eu também, ela também, de modo que na maioria das vezes, para esta conversa, para este ato, temos tempo somente na cama. Por assim dizer, eu me curvo sob o peso dos argumentos. Eu não achava, esta é a verdade, uma catástrofe a ausência de uma chama ardente em nossos corpos, da indiferença também podem nascer coisas brilhantes. Eu fico muito bem deitado à toa com as mãos no ventre dela. Ela não fala disso, ela fala do todo, eu sempre dos detalhes, e os detalhes, do ponto de vista de sua natureza de detalhes, estão sempre em ordem, mas o todo não está. Somos ridículos, costuma começar assim. Nisso eu empurro as coxas dela mais para cima. As coxas magras, na verdade. Foi bom durante anos, ela diz. Sem dizer uma palavra eu a viro para mim, viro seus seios, na verdade. Seria bom se não existissem esses pensamentos obscuros sobre o todo, mas apenas carne e ossos e tendões, não? Ela não fala deles, mas do que é inevitável, sobre o fato de que no todo há algo de onírico que é pior que o tédio, o cotidiano, o clichê.
Eu não me encontro na cama!, ela grita.
Nisso eu a chuto de cima de mim, com os seios e tudo, descubro o meu corpo nu, o meu caralho, estou aqui! Viva! Ela não responde. Vou te matar se você me largar, eu digo, e mergulho a cabeça dela no travesseiro. A frase é boa, costuma dar certo, ela choraminga, mas se você me matasse seria como se eu fosse apenas imaginação sua. Pode ser que você vá se ofender com o que vou dizer, eu digo, mas peço que me perdoe. Não foi nada, ela diz.
VINTE E UM
Há uma mulher. Ela me ama. Tem sardas e gota. As bochechas dela são cheias de sardas, “o orvalho sagrado do sol”. Ruivinha, Cabelos de Fogo, assim gozavam dela na infância. Quando ela completou 17 anos, a sorte mudou, as pessoas admiravam e se encantavam com as pintas, como se elas transmitissem uma mensagem secreta, misteriosa. Sinto que ela me odeia. Não consigo, penso, satisfazê-la. No início, no nosso início, eu a agredi, a ataquei, a submeti, fiz com que se curvasse, por assim dizer, brandi a espada, valente, não?!, ela sacudia, alegre, a cabeça. A alegria dela me assustava. Embora eu não temesse pela minha impotência. Mas depois eu me larguei, me tornei lento, permissivo; observava os nossos corpos, o que eles desejavam, e, obediente, os seguia. Acho que isso foi bom, eu em todo caso me sentia bem, e me surpreendi ao ver que ela não, ou nem tanto. A alegria dela desapareceu, o que me acalmou. Contei suas sardas mais de uma vez e nunca cheguei à mesma soma. Eu não posso ser contada, ela dizia provocadora.
Além da gota vou mencionar dois casos. Há não muito tempo, como se de passagem, sem crítica, de forma mansa e, eu senti, e por isso registrei, triste, ela disse que ultimamente havia em mim algo que inspirava respeito, foi por isso que, quando à minha fala vangloriosa, bem-humorada, simpática, de que havia tido um dia bom, ela respondeu que isso se ouvia pela minha voz, eu perguntei na sequência se aquilo era uma crítica, ela respondeu com um não, oh não, eu não teria coragem. Eu não entendi o que ela quis dizer. Era mais da autoconfiança dela que se tratava ali, disse, no dia anterior havia conversado longamente com as amigas sobre as assim chamadas profundidades da vida e tinha ficado deprimida. Ou melancólica. Ela na realidade pensa, escuta, que a depressão é do indivíduo, e a melancolia, do coletivo. Dei de ombros. E por isso você está deprimida? Lembro que me espantei com a resposta curta, objetiva, nada disso, por sua causa. Comecei a transpirar, eu, imbecil, de início até me senti feliz. Guarde bem, ela disse numa outra ocasião, guarde de uma vez por todas – e nessa hora ela olhou para mim e, eu, exultante, guardei tudo, e ela continuou –, caminhe, coma bastante, cuide do seu corpo.
O que dizia respeito à gota não era típico, na medida em que o nível de ácido úrico, que em circunstâncias normais é o mensageiro fiel da doença, não se achava particularmente alto, assim, quando as primeiras dores apareceram, as dores misteriosas no tornozelo esquerdo, a partir da dosagem do ácido úrico a possibilidade de gota foi excluída e teve início a enrolação médica – sobre os possíveis azares ligados à distensão de tendões e enrijecimentos – que nos olhos deles, dos médicos, se podia ler. Para sorte dela o joelho inchou, a troco de nada, em um restaurante. Ela pediu para que eu pusesse a mão debaixo da mesa e me convencesse de que o joelho dela, lá embaixo, no escuro, como que em segredo, estava inchado. Eu me convenci. E, quando no segundo dia ele teve de ser drenado, descobriu-se que o líquido de drenagem estava cheio dos malvados cristais de ácido úrico.
Nas despedidas ela costumava desenhar uma cruz na minha testa, como fazia a minha avó.
SESSENTA E DOIS
Há uma mulher. X. (Me odeia.) Os óculos cobrem todo o rosto dela. Parece um sapo. É assustadoramente feia. Consegue ser assustadoramente feia. A boca é ardente. Mas às vezes fica rachada. É inteligente, sabe muito sobre os etruscos. Às vezes sinto uma dor no ombro esquerdo; segundo o técnico em calefação, a parede de pedra irradia frio. A mulher se agita nervosa, abre a bolsa, fecha, pula na direção da estante, agarra um livro, faz menção de tirá-lo, mas desiste. Envergonha-se de gostar de mim, desacostumou-se e está assustada. Os óculos são cada vez maiores, eu poderia caber atrás deles. Faz um café horroroso, pede ajuda aos etruscos, mas eles se extinguiram. Me abraça, tensa. Eu bato nos óculos, eles caem, faço como se tivesse acontecido sem querer, observo-a de quatro enquanto ela os procura, não me mexo. Observo o tecido da calça deslizando sobre o seu traseiro.
VINTE E NOVE
Há uma mulher. Eu a amo. Ela é do tamanho do Empire State. Do encouraçado Potemkin. De uma montanha. De um búfalo. Se me desse uma bofetada eu voaria pela janela, mas por que ela faria isso? Decide coisas o tempo todo, telefona, providencia, manda faxes, funda empresas, ou coisa parecida, e tem também algo a ver de certa forma com os impostos sobre a circulação de mercadorias. Sua cama é a ponte de comando de onde ela dá as ordens. Não usa calcinha. Telefona deitada de barriga, sobe uma das coxas, com isso a saia desliza para cima, e nessas horas aparece a sombra escura. Sombra, é como a chamo. Quando estou bem-humorado, eu grito: é pela sombra que se respeita a velha árvore! Por exemplo, digo: É aqui que você se esconde, sombra? Ou que enquanto o homem projetar sombras sempre haverá desgraças! A visão me faz sonhar. Ela aperta o telefone com a cabeça contra o ombro para que as mãos fiquem livres, mulher de negócios experiente. Tem o raciocínio rápido, é loira, me ama. Pergunta se eu a amo; enquanto isso, naturalmente, toma notas. O que posso responder. Hein, carinha? Seu vocabulário lembra o de um hooligan dos anos 60. Eu te desejo, respondo constrangido. Olha para mim como quem não entende o que eu disse. Meu pau levanta, explico. Ela se põe numa posição visivelmente expectante. Enquanto você telefona, e na verdade você telefona quase o tempo todo, eu te desejo. Está tudo certo no registro de imóveis?, resmunga no bocal, e para mim faz um gesto para que eu venha, vamos, “me amassa”. Além disso, também gosto de conversar com você. Mais, mais. As duas coisas já bastam, não? Tesão e conversa, juntos o tempo todo, significam que eu te amo, não? Faz um gesto delicado como um armário na minha direção, e enquanto eu saio pela janela – vejo que vou despencar justamente sobre um congestionamento de trânsito, imagino a situação desagradável – ainda a ouço convencendo alguém a tomar um empréstimo.
SESSENTA E TRÊS
Há uma mulher. E assim por diante. Odeia todo mundo. Se estiver no clima, é má. Não transmite recados; inventa recados falsos, faz intrigas com as crianças; com os meus pais; com os dela; com os vizinhos, entre eles, todos contra todos, eles contra nós. Seus recursos são ilimitados, às vezes desiste da arma mais eficaz, o disfarce. É sincera, não usa máscara, é permanentemente nojenta. Sente-se mal quando não faz mal. Salga a comida de propósito; enfia passagens vencidas em meio aos passes de ônibus das crianças; não desliga o telefone e denuncia o dono da linha compartilhada, estende uma corda no quarto e quando a minha mãe tropeça, ela põe a culpa em mim; atrasa os despertadores de noite, para que de manhã todos percam a hora; nega os orgasmos, sem piscar os olhos, embora esteja até babando; em segredo modifica a minha declaração de renda, e me adverte com uma carta anônima. Esse ímpeto, ânsia de realização, prontidão permanente para o mal (maldade), o desejo ardente de prejudicar o tempo todo, de lesar, é como uma maravilha da natureza. Podem existir outros assim, entregues a uma relação passional com a vida. Para estragar a vida – com uma exceção. De tempos em tempos, ela escolhe um livro que lhe agrada na minha biblioteca e cola uma a uma as páginas (ou melhor, aos pares). Quando depois pego um Borges, para reler o conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”, tenho o livro nas mãos como um tijolo desajeitado, um enigma secreto, como um escudo vazio, e não sou mais ninguém, ou, mais exatamente, não seria mais ninguém se nessa hora, como sempre, ela não me odiasse intensamente.
VINTE E DOIS
Há uma mulher. Sente por mim o que eu sinto por ela, me odeia, me ama. Quando ela me odeia eu a amo, quando ela me ama, eu a odeio. Não existe outra possibilidade.
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