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Mulher de azul lendo uma carta, de Vermeer: enquanto o artista pinta, o mundo lá fora está em fúria – com pessoas ajoelhadas em sujeição, pessoas sendo marcadas com ferro quente CRÉDITO: MULHER DE AZUL LENDO UMA CARTA_ C.1662-63_JOHANNES VERMEER_ RIJKSMUSEUM, AMSTERDAM_FOTO DE ART IMAGES VIA GETTY IMAGES
Vermeer, para além da beleza
A violência dos tempos do pintor holandês está em suas obras-primas – para quem souber onde procurá-la
Teju Cole | Edição 205, Outubro 2023
Tradução de Isa Mara Lando
Na tarde em que descobri Vermeer, eu estava bisbilhotando os livros e diversas publicações empilhadas nas prateleiras, na minha casa em Lagos, a maior cidade da Nigéria. Eu tinha 14 ou 15 anos. Entre os livros que sobraram dos estudos universitários dos meus pais (peças teatrais nigerianas, histórias francesas, textos sobre administração de empresas), encontrei algo desconhecido: o relatório anual de uma multinacional. Não lembro qual era a empresa, mas devia ter alguma coisa a ver com comida ou bebida, pois na capa havia uma pintura com camponeses num trigal ondulante e, na contracapa, um quadro mostrando uma mulher servindo uma jarra de leite.
Lembro-me da tranquilidade daquela tarde e da minha fascinação pelas imagens no relatório, que pareciam transfigurar o espaço ao meu redor. Ao ler as legendas, fiquei sabendo que as pinturas eram Os ceifeiros, de Pieter Bruegel, o Velho, e A leiteira, de Johannes Vermeer. Esses nomes eram novos para mim na época, mas eu era um estudante de arte ávido por aprender e conseguia perceber quando algo me tocava. Vermeer, especialmente, tinha um mistério simples, mas impressionante. Eu nunca vira uma parede tão bem pintada, uma figura humana situada no espaço pictórico de modo tão convincente. E tudo isso estava banhado por uma luz que fazia a cena se parecer mais com a própria vida do que com outras pinturas. Na época, eu não teria pensado em chamá-la de “luz do Norte”, mas sabia que estava olhando para algo estrangeiro e sedutor, algo ambientado em um mundo radicalmente diferente do meu mundo tropical.
Ainda me emociono com o milagre tranquilo daquela tarde da infância. Mas minha relação com a arte mudou. Hoje eu procuro problemas. Um quadro de Vermeer não é mais simplesmente “estrangeiro e sedutor”. É um artefato inevitavelmente envolvido na trama caótica do mundo – o mundo da época em que o quadro foi pintado e o mundo de hoje. Olhar um quadro dessa maneira não estraga nada. Pelo contrário, amplia o quadro, e aquilo que antes era apenas uma superfície se torna um portal, revelando todo tipo de coisas que eu preciso saber.
No primeiro semestre deste ano, estive no Rijksmuseum, em Amsterdã, e fiquei novamente diante de A leiteira, contemplando-a em sua humildade, sua solidez e a continuidade do seu trabalho doméstico, 33 anos depois daquele dia em Lagos. Eu amo a pintura – amo a moça – tanto quanto antes. Foi ela quem inspirou o poema epigramático Vermeer, de Wisława Szymborska:
Enquanto aquela mulher do
Rijksmuseum
atenta no silêncio pintado
dia após dia derrama
o leite da jarra na tigela,
o Mundo não merece
o fim do mundo.[1]
Os curadores do Rijksmuseum conseguiram juntar, em uma exposição bastante elogiada, o maior número de quadros de Vermeer já reunidos – 28 dos 34 considerados de autoria do artista. A mostra – que provavelmente não se repetirá em tal escala nesta geração – é uma proeza de coordenação de quem organizou e de generosidade de quem emprestou as obras.
Mas eu não estava muito interessado em ver a exibição e as razões para isso começaram a se acumular. O total de ingressos, cerca de 450 mil, se esgotou em poucas semanas. Mesmo que eu conseguisse uma entrada, as galerias do museu certamente estariam lotadas. Também não me encantei com a solução tão restrita da exposição: uma pintura de Vermeer, seguida de outra, seguida de outra. Uma exposição de sucesso, em geral, precisa de mais contexto. Mas o que realmente estava começando a me irritar era o entusiasmo exaltado dos críticos. O nome Vermeer, hoje em dia, é sinônimo de excelência artística, e muitos elogios à exposição também pareciam ter um significado emocional. Falava-se em grandeza, perfeição, divino – um conjunto de adjetivos apropriados para descrever um certo tipo de experiência cultural.
Os que já tinham visitado a exposição eram invejados pelos que ainda não haviam tido o mesmo privilégio. Dava-se como verdade absoluta que se tratava de uma experiência “única na vida”. (E, no entanto, quantos dos nossos melhores encontros com a arte aconteceram em algum pequeno museu modesto, em um dia tranquilo? E qual momento, plenamente vivido, não é “único na vida”?) De alguma forma, a ideia de que as imagens eram maravilhosas tinha se mesclado com o dogma de que as imagens eram absolutamente maravilhosas e ponto final. Em meio a todo esse consenso extasiado, era difícil aparecer uma discordância da crítica.
Mas alguns amigos holandeses conseguiram uma entrada para mim – e comecei a fraquejar. Em seguida, Martine Gosselink, diretora do museu Mauritshuis (que é o lar de Moça com brinco de pérola e emprestou algumas das principais obras para a exposição), me convidou para percorrer a mostra com ela depois do horário normal. Nessa altura, recusar o convite seria absurdo. No final da tarde de 13 de março, acompanhado por um amigo, entramos na exposição. A última onda de visitantes foi conduzida para fora e lá estávamos nós, três visitantes sortudos, com 28 Vermeers.
Vermeer não foi um artista prolífico: acredita-se que tenha pintado apenas 42 quadros no total. Era razoável supor, como fizeram os historiadores de arte durante muito tempo, que esse ritmo lento de produção fosse consequência de uma técnica particularmente meticulosa. Mas os raios X e as imagens em infravermelho mostram que ele fazia rascunhos rápidos na tela e muito poucos desenhos preparatórios. Sendo assim, o que ele fazia com todo o tempo extra? Em primeiro lugar, tinha um emprego como marchand de arte, profissão que herdou do pai. Além disso, era pai de quinze filhos (onze sobreviveram a ele). A casa devia ser bem barulhenta. Contra esse pano de fundo ruidoso, surgem esses quadros surpreendentes na sua compostura, dois ou três por ano.
São pinturas que parecem fazer certas coisas com a luz que nenhuma outra pintura havia feito antes. O historiador de arte Lawrence Gowing descreve isso como uma certa despreocupação com o assunto, uma certa fidelidade à pura aparência: “Vermeer parece quase não se importar, ou nem mesmo saber, o que está pintando. O que é isso que os homens chamam de feixe de luz? Um nariz? Um dedo? O que sabemos sobre a sua forma? Para Vermeer, nada disso importa, o mundo conceitual dos nomes e do conhecimento é esquecido, nada o preocupa exceto o que é visível – o tom, o feixe de luz.”
Nosso pequeno grupo parou em frente a Mulher de azul lendo uma carta, e era tão bonito que meu coração quase parou. A pintura tem uma gama limitada de tons. A parede é branco-amarelada com nuances de azul. O grande mapa das regiões da Holanda e da Frísia Ocidental é ocre, com um toque de verde. As duas cadeiras que ladeiam a mulher têm tachinhas cintilantes de latão que prendem o estofamento azul-escuro. Uma cadeira é maior que a outra, mais próxima de nós. A outra está mais afastada. Entre as duas, há um espaço em que está a mulher. Ela veste uma bata azul e uma saia cor de oliva. Todas as cores são tão esmaecidas que parecem ser apenas lembradas e não pintadas. A mulher, de perfil, em profundo devaneio, o olhar baixo, sonhador, segura a carta com as duas mãos. Vemos algumas fitas no cabelo. A bata azul é uma béddejak, uma espécie de avental caseiro bem amplo. Ela está grávida. Alguns estudiosos duvidam que ela esteja grávida ou dizem que não podemos saber ao certo. Mas nós confiamos nos estudiosos apenas para que nos digam aquilo que não podemos ver e não aquilo que podemos ver claramente.
O que terá ele escrito para ela – pois decerto é um homem e decerto é o pai do bebê? Seus lábios estão entreabertos. Vermeer aperta a corda das sugestões ao nosso redor. Uma narrativa respira sob o silêncio da cena: o mapa, o amanhecer, a carta que viajou durante a noite para ser entregue. Aqui existe drama, se não melodrama. Imaginamos alguém distante cuja distância está sendo imaginada por este outro alguém que ele deixou para trás. Talvez o alguém distante seja um soldado ou um marinheiro. O encosto da cadeira à esquerda lança sombras suaves, azuladas na parede. A janela de onde vem a luz está apenas implícita, não retratada, e a luz incide na testa da mulher e na suave ondulação marinha da sua béddejak. Tudo isso é feito em pinceladas precisas, mas não excessivamente elaboradas, uma área luminosa aqui, outra ali. Como espectadores, prendemos coletivamente a respiração, pois não queremos interromper o que quer que seja isso. A mulher espera a volta do seu amante, espera o nascimento do filho e o pintor espera, depois de trabalhar no seu cavalete todas as manhãs, que chegue o próximo amanhecer e depois o seguinte. Ele espera por essas horas favoráveis, até que o trabalho esteja completo. Lawrence Gowing está certo ao dizer que Vermeer é um pintor da luz. É também, requintadamente, um pintor do tempo.
Mas agora vamos encontrar os problemas. Ao longo de toda a obra de Vermeer há objetos como os que figuram em Mulher de azul lendo uma carta. São objetos que nos lembram como o mundo é vasto. Era esse o mundo que estava surgindo depois da prolongada luta dos Países Baixos para se libertar do domínio espanhol. Durante, e logo depois, da Guerra dos Oitenta Anos, os holandeses estabeleceram postos comerciais na Ásia, na África e nas Américas. Seguiu-se um florescimento do capitalismo, interno e ultramarino. Com ele, deu-se o início de um império colonial. Sua experiência de povo subjugado nada fez para moderar seu desejo de subjugar os outros.
A Companhia Holandesa das Índias Orientais passou a dominar as rotas marítimas e seus acionistas recolhiam fartos lucros. Já a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais foi uma força significativa no comércio de pessoas escravizadas. Cidadãos holandeses comuns enriqueceram com essas atividades criminosas. Com um sentido renovado sobre quem eram no mundo, os holandeses enchiam suas casas de objetos raros e ornamentos finos. Podiam ter coisas luxuosas e também podiam tê-las retratadas em quadros. As pinturas serviam para lembrá-los de que eram mortais, sim, mas também eram ricos.
O chapéu de Vermeer (2008), um livro sagaz do historiador Timothy Brook, destaca a procedência de alguns objetos que vemos nas pinturas de Vermeer. Ele sugere, por exemplo, que a prata sobre a mesa em Mulher segurando uma balança pode ter vindo das famosas minas de prata de Potosí, um lugar infernal que explorava o trabalho de pessoas escravizadas, no que era então o Peru e hoje é a Bolívia. O feltro que forra o chapéu do soldado em Soldado e moça rindo certamente veio de peles de castor obtidas por aventureiros franceses nas violentas redes comerciais do Canadá do século XVII. Brook estabelece uma conexão entre essa alegre cena de pintura de gênero e a amarga história do “inverno da fome de 1649-50”, quando a ganância europeia por peles de animais levou a expulsões, guerras e à morte em massa de crianças indígenas da tribo Huron.
A bata, ou béddejak, em Mulher de azul lendo uma carta, como me explica Martine Gosselink, é pintado com ultramarino, o pigmento azul mais raro e mais caro que estaria disponível para um pintor holandês seiscentista. O ultramarino era feito de lápis-lazúli, que chegava à Europa Ocidental importado das minas do Afeganistão. Provinha do além-mar (de onde vem seu nome, do latim ultra marinus). Possivelmente, com o uso de um pigmento tão caro, Vermeer podia atribuir maior prestígio e maior preço às suas pinturas. Possivelmente, ele gostava de associar sua obra com pinturas de épocas anteriores, nas quais o pigmento era usado para fazer o azul do manto da Virgem Maria. O efeito do ultramarino é deslumbrante, emocionante. Mas quem estava extraindo o lápis-lazúli das minas no Afeganistão e em que condições?
Qualquer obra de arte é uma evidência das circunstâncias materiais em que foi produzida. As melhores obras de arte são mais do que evidências. Dentro de uma única moldura, dentro de uma única pintura notável, a cumplicidade e a transcendência coexistem. Foi o que pensei enquanto percorria Vermeer. A exposição não aborda esses assuntos – e só depois eu leria o catálogo, que é erudito e perspicaz –, mas, naquela tarde, almocei com Valika Smeulders, chefe do departamento de história do Rijksmuseum. Smeulders foi uma das curadoras da exposição Escravidão, realizada no museu em 2021.
A mostra exibiu artefatos das coleções do próprio Rijksmuseum e de uma ampla variedade de outras fontes. Havia pinturas, gravuras, desenhos e documentos, bem como sinos usados nas fazendas para chamar os escravos, troncos para prendê-los pelos pés, uma coleira de latão, um ferro de marcar com um logotipo (provavelmente da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais), um copo cerimonial feito para brindar o sucesso dos escravizadores. Visitantes do Rijksmuseum, acostumados a relatos mais ufanistas da história nacional, foram confrontados por imagens da brutalidade nas lavouras da Indonésia, da África do Sul e das Ilhas Banda, e por histórias da vida de um punhado das centenas de milhares de pessoas escravizadas pelos holandeses.
Uma pintura incluída em Escravidão é de Pieter de Wit, possivelmente um aluno de Rembrandt. O quadro retrata o diretor-geral da Costa do Ouro, um tal de Dirck Wilre, dentro do Castelo de Elmina, no que hoje é o território de Gana. De Wit, como pintor, está muito longe do nível de Vermeer, mas me impressionam os detalhes do quadro, semelhantes aos de O geógrafo de Vermeer, pintado no mesmo ano de 1669: a única janela aberta à esquerda, o vitral, o globo terrestre, o tapete ricamente estampado sobre a mesa. Mas ao contrário de O geógrafo, o quadro de De Wit tem mais duas figuras. Uma delas é uma mulher: uma negra, nua da cintura para cima, ajoelhada, claramente em posição de servidão. Se as pantufas no chão são dela, sua servidão pode ser também sexual. A mulher ajoelhada oferece a Wilre um quadro, uma paisagem mostrando o Castelo de Elmina. Seu corpo e sua terra. A brutalidade é explícita.
A exposição no Rijksmuseum está repleta de imagens impressionantes, boa parte de meados da década de 1660, quando a carreira de Vermeer estava no auge do foco e da inovação. Naqueles anos, ele criou um bom número de imagens imortais, muitas das quais são variações sobre o tema de uma mulher em um ambiente doméstico silencioso, uma mulher solitária, usando uma béddejak com guarnição de pele.
Em Mulher segurando uma balança, ela está grávida e o aposento está mais escurecido do que o habitual, iluminado sobretudo pela luz do dia que se infiltrou pela cortina amarelo-limão. Os pratos da balança que ela segura estão vazios – ela está equilibrando, não pesando. Sobre a mesa à sua frente há moedas de ouro e prata, assim como pérolas, e atrás dela há uma pintura do Juízo Final. Em outro quadro, Moça com colar de pérolas, ela está de perfil, olhando para a esquerda. É a mesma cortina amarela, agora afastada para deixar entrar uma luz suave. No lado esquerdo, na sombra, há um jarro de porcelana azul-escuro, seu brilho duro contrastando com a suavidade e o tom de amarelo – ligeiramente mais frio que o da cortina – da sua béddejak. Moça escrevendo é outra composição em amarelos e azuis. Não sabemos quem ela é, essa mulher de tempos distantes. Não sabemos quem foi nenhuma delas e provavelmente nunca saberemos. Ela também usa uma espécie de bata amarela. (Os poucos adereços de Vermeer reaparecem como os atores favoritos de um diretor.) Está sentada à sua escrivaninha e nos olha diretamente, com um olhar que parece ser de compreensão humana real. É uma imagem impressionante, pertencente à coleção da National Gallery em Washington. Eu já a vira antes, mas nunca a observara bem. É por isso que, finalmente, vamos aos museus: pela chance de aprender a ver novamente, a ver a beleza, a ver os problemas. E há também, claro, a Moça com brinco de pérola, uma visão surpreendente e imediata. No contexto das suas companheiras de estúdio, ela é apenas mais um pico de montanha nessa cordilheira. Mas que cordilheira, e que pico.
Já estávamos saindo da exposição quando voltei correndo e parei em frente ao quadro que mais me surpreendeu: Moça escrevendo. Seu olhar tem complexidade, tem sombras, um sorriso suave. Em suas íris, há pontinhos brancos. (Ela me parece muito mais real do que a Mona Lisa.) Também há toques de branco nas enormes pérolas dos brincos. Caso fossem reais, as pérolas teriam sido colhidas por mergulhadores de pérolas no Golfo de Mannar, entre o atual Sri Lanka e a Índia. Em sua mão direita há uma pena de escrever, pausada no ar. Abaixo dela, uma pincelada de tinta branca denota perfeitamente uma pilha de papel também branco. A caixa que guarda os instrumentos da escrita, feita com diferentes espécies de madeira e tachinhas metálicas redondas, vem, muito provavelmente, de Goa sob o domínio português. Feita por quem? perguntei novamente a mim mesmo. Sob que condições? Atrás dela há uma pintura, em tom marrom-avermelhado, de uma viola da gamba, uma música suave que sugere, ou confirma, o tema do amor na imagem. Mas se seu amante está ausente, quem a interrompeu? Para quem ela sorri com familiaridade tão gentil?
Para você. Esse olhar prende o seu olhar há séculos, suspendendo o tempo – para você. Não há uma única linha dura de desenho no quadro, apenas camadas de tinta colocadas lado a lado, manchas de cor se mesclando umas às outras como se vistas através da lente de uma câmera antiga que se recusa a entrar em foco. A suavidade de Moça escrevendo é tão abrangente que a imagem parece estar prestes a se dissolver. Manhã após manhã, Vermeer senta-se ao seu cavalete, enquanto o mundo lá fora está em fúria – o mundo onde há pessoas ajoelhadas em sujeição, onde há pessoas sendo marcadas com ferro quente. E logo ao lado da sua própria porta, há o cunhado violento que ameaça agredir as mulheres da casa. Mas as imagens são permeáveis a essas aflições externas. São, de fato, contínuas com elas. Aqueles soldados namoradores não estão só brincando de vestir o uniforme. Eles lutam, eles matam. Vasculhamos em vão a obra de Vermeer em busca de uma imagem de uma simples família feliz, com mãe, pai e criança numa paz doméstica. Não, o mundo das imagens é poético e lírico, mas também é fraturado, vulnerável, isolado e ansioso.
Seus quadros (e os de outros, pois as implicações deste argumento não se limitam a Vermeer) não podem ser considerados meras decorações ou realizações técnicas. Eles contêm o conhecimento das suas próprias aflições e podem suportar um contexto mais honesto do que muitas vezes lhes permitimos. Reduzi-los a anúncios de beleza, significantes que flutuam, livres, da cultura e da elegância, é lhes prestar um desserviço. Em sua longa jornada através dos séculos, os quadros de Vermeer trazem consigo tanto o consolo quanto o terror. E enquanto esse for o caso, o mundo não merece o fim do mundo.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_205 com o título “Para além da beleza”.
Texto originalmente publicado na New York Times Magazine, sob permissão da Agência Wylie.
[1] Tradução de Regina Przybycien, em Um amor feliz (Companhia das Letras).
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