Crédito: Faw Carvalho_2021
Viva Nossa Senhora do Café!
Entrevista imaginária com a criadora do projeto Entreviste um Negro
Armando Antenore | Edição 179, Agosto 2021
Helaine com H? Sim, Helaine Braga Martins Pereira, um nome de responsa, quase tão extenso quanto os da nobreza. Mas, na prática, é menorzinho: Helaine Martins e ponto final. Bem mais adequado à plebeia aqui, né? Decidi encurtá-lo quando me tornei jornalista. Nomes grandes não funcionam na hora de assinar uma reportagem. Herdei o H dos parentes maternos. Vovó se chamava Helena. Mamãe se chama Heloísa. Meus tios, Hélio e Helenice. Só o Alan escapou da sina. Privilégio de caçula… Ele é meu único irmão. Apelido? Carrego uma infinidade. Lane, Nani, Lany, He… Deixo a escolha por conta do freguês.
Paraense? Nada! Carioca da gema. Nasci no bairro da Glória, em maio de 1980. Nunca pensei que iria completar 40 anos durante uma pandemia. Quarentar na quarentena… Não recomendo para ninguém. Sou filha de um oficial da Marinha Mercante com uma dona de casa que, mais tarde, virou costureira. Saí do Rio de Janeiro ainda novinha e cresci em Niterói. Lembro-me perfeitamente dos Carnavais daquela época. Mamãe se divertia horrores nas matinês dos clubes. Ela me fantasiava com o verde e rosa da Mangueira, se enfeitava dos pés à cabeça, e juntas requebrávamos pelos salões afora. Eu, no fundo, detestava os bailinhos. Até agora não curto muito o combo verão + suor + multidão + Deus sabe onde vai dar para fazer xixi. Prefiro estourar pipoca e assistir às escolas de samba pela tevê, embora sempre caia no sono antes de a Mangueira desfilar.
Logo que meus pais se separaram, mudei para Belém, cidade natal de toda a minha família. Cheguei por lá no começo da adolescência. Sozinha? Não, com mamãe e o Alan. Em poucos meses, me senti bastante acolhida. Que saudade, mano! Não conheço povo melhor que o de Belém. Uma galera quente, generosa e festiva, que valoriza a presença e o abraço. Por isso, não canso de repetir que o Pará é o meu país.
Ironicamente, tenho pavor de água. Passei a infância e a puberdade à beira-mar. Depois, vivi numa capital amazônica que reúne catorze bacias hidrográficas. Mesmo assim, jamais perdi o medo de me afogar. O menor dos igarapés já me assusta. Por quê? Não sei direito… Talvez seja por influência do meu signo, Touro. Os taurinos necessitam da solidez, dos caminhos retos, dos pés firmes no chão. Terra, terra, terra.
Em fevereiro de 2009, com 28 anos, peguei um ita no Norte, como cantava o Dorival Caymmi, e vim para São Paulo morar. Desde então, amanheço rodeada de prédios, avenidas e motoboys. Eu adoro, na real. Lentamente, aprendi a extrair poesia do concreto, beleza do feio e luz dos dias nublados. Hoje apresso o passo mesmo que esteja só passeando e não compreendo mais os que consideram maravilhosas apenas as tardes de sol. Posso afirmar que encontrei um jeito muito próprio de amar São Paulo, mas admito que ainda se trata de um amor em construção. O meu amor por Belém é diferente. Já se consolidou. Basta ver como pulo de alegria quando danço o brega, escuto os acordes frenéticos da guitarrada, bebo cachaça de jambu, tomo sorvete de queijo cuia, provo uma colherada de maniçoba, devoro bombons de cupuaçu e acompanho o Círio de Nazaré, a maior procissão da América Latina.
Católica? Não, me criei no espiritismo, a religião de mamãe, e me converti à umbanda em São Paulo, com a graça das pombajiras. Laroiê, Maria Padilha! Laroiê, Dama da Noite! Por sorte, Nossa Senhora de Nazaré, a santa dos paraenses, não rejeita crença nenhuma e derrete inclusive o coração dos ateus. O círio que homenageia a padroeira é de uma lindeza sem fim. Mil vivas à querida Nazica! E outro punhado de vivas a Nossa Senhora do Café, que protege todos nós, trabalhadores freelancers, contra o terrível mal do sono.
De tanto zanzar para cima e para baixo, adquiri um linguajar amalucado. Ora incorporo o típico carioca e solto um “mermão” com o R bem rasgado ou compro briga por insistir que o certo é “biscoito”, não “bolacha”. Ora imito os amigos de Belém e coloco um “ééééégua” no meio das frases, como quem diz “poxa” ou “caramba”. Às vezes, também arranco um “mano” da cartola, a minha gíria favorita do paulistanês.
Qual a importância da ZL? Pô, a ZL já conquistou o status de meu segundo país. Zona Leste de São Paulo… Caótica, miscigenada, rica e paupérrima. De início, arranjei um canto na Mooca, bairro tradicionalíssimo da região. Em seguida, me piquei para o Tatuapé, outro bairro das antigas. É lá que fica o meu cafofo atual – um quarto e sala de bom tamanho, com pufes verdes e parede cor-de-rosa. Mal o aluguei, me transformei no que mais sonhava: mãe de plantinhas. Nunca quis filhos. Gosto de viajar, de saborear a liberdade, e criança prende a gente. Melhor me dedicar às plantas. Cuido de oito e duvido que haja alguma espada-de-são-jorge tão exuberante como a minha. Atenção, atenção, empregadores do meu Brasil varonil! Mandem jobs, por favor! Preciso continuar adubando as plantinhas e bancando o apê colorido delas.
Em que momento surgiu o interesse pelo jornalismo? Muito, muito cedo. Com uns 7 anos, avisei à mamãe: “Quando crescer, vou mudar para São Paulo e trabalhar na Folha.” Com 10, ganhei de aniversário a assinatura do Globo que tanto pedia. Com 12, venci um concurso de redação no colégio particular onde estudava. Os competidores podiam abordar qualquer assunto, mas tinham que usar pseudônimos. Resolvi discorrer sobre o impeachment do presidente Fernando Collor e me identifiquei como Cor Púrpura, em razão do filme protagonizado pela Whoopi Goldberg, até hoje um dos meus prediletos. À beira dos 20 anos, finalmente ingressei na Universidade Federal do Pará e, oito semestres depois, tirei o bendito diploma de jornalista.
Desconfio que escolhi a profissão porque desejava contar histórias para mamãe. Pretendia lhe apresentar as venturas e desventuras do mundão. Deu certo. Ela é minha fã número 1. Lê, analisa e compartilha tudo que faço. Nada me deixa mais triunfante que o sorriso da coroa. Nós costumamos papear no domingo à noite pelo telefone – uma conversa que dura três, quatro, cinco horas. Mas não imagine que minha diva só pensa em rasgar seda. Mamãe sabe exatamente como puxar a orelha das crias e botar ordem na porra toda. Em parte por causa dela, não me arrependi do jornalismo. A grana é pouca, o mercado se precarizou e o tal glamour não passa de fake news. No entanto, olha ali a dona Helô descobrindo algo novo com um texto que escrevi…
A Folha? Por ora, se limita às fantasias infantis. Nunca rolou de trabalhar lá. Em compensação, já prestei serviços para uma série de outras instituições: O Liberal, Grupo Votorantim, Pernambucanas, TAM, Unilever, Editora MOL, Facebook, Think Olga, Petrobras, UOL, Estadão… O meu xodó continua sendo o Entreviste um Negro, projeto bem simples que bolei. Na ocasião, percebi o óbvio: a mídia não tem o hábito de colher informações com pretos e pardos. Prefere consultar os brancos. Para ampliar a diversidade de fontes, montei um arquivo digital que agrega os perfis e os contatos de especialistas negros em diversas áreas: da literatura à sociologia, da astrofísica à nutrição. São dezenas de nomes, que divulgo pelas redes sociais. A iniciativa acabou me abrindo portas até como palestrante e consultora. Tenho imenso orgulho das minhas raízes e jamais vou me conformar com o racismo. Parafraseando a romancista Carolina Maria de Jesus, se houver reencarnação, quero sempre voltar preta.
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Helaine Martins morreu no último dia 3 de julho, aos 41 anos, em decorrência de uma parada cardiorrespiratória. Obesa, sofria de bronquite asmática. Este texto se baseia em posts da própria jornalista, publicados no Instagram, e em depoimentos de seus amigos e parentes.
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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