A crise do clima e os cactos congelados no coração do estado do Texas, em fevereiro deste ano: o caos gerado pelas baixas temperaturas deixou as pessoas sem aquecimento e água potável CREDITO: RALPH ARVESEN_2021_ZUMA PRESS
A volta da alternativa
O novo keynesianismo do governo Biden e a infraestrutura no século XXI
Roberto Andrés | Edição 177, Junho 2021
Nos países centrais do capitalismo, a ideia de que não haveria alternativa à ordem econômica neoliberal imperou implacavelmente por quatro décadas – até o dia em que deixou de prevalecer. Todo um sistema de crenças parece estar perdendo força e abrindo espaço para a construção de novos consensos, que ainda disputam a hegemonia. No centro da reviravolta está o governo de Joe Biden nos Estados Unidos, iniciado em janeiro de 2021.
A mudança veio de onde menos se esperava. Biden é um político moderado, membro do establishment do Partido Democrata, cuja longeva atuação como senador e depois como vice-presidente de Barack Obama nunca desafiou o status quo. Com sua vitória eleitoral, imaginava-se que seu governo representaria um retorno ao que a filósofa norte-americana Nancy Fraser chamou de “neoliberalismo progressista”. Ou seja: um governo formado por políticos de matiz progressista empenhados em cumprir a agenda de austeridade, privatizações e cortes de serviços públicos. Aos 78 anos, Biden parecia reencarnar Bill Clinton ou Tony Blair, o primeiro-ministro britânico que levou o Partido Trabalhista a partícipe do consenso neoliberal.
O neoliberalismo, ao acelerar o desmonte da proteção social, estimular a extração predatória de recursos naturais e promover o incremento da desigualdade, deparou-se com muitas pedras no meio do caminho nas últimas quatro décadas, mas as crises acabaram postergadas por sucessivos arranjos provisórios. O sociólogo alemão Wolfgang Streeck definiu essa estratégia como “compra de tempo”. Em sua perspectiva, o conflito distributivo do capitalismo neoliberal, anunciado pelas agitações grevistas do final dos anos 1960, foi continuamente adiado por medidas paliativas que, ao final, desembocaram na crise de 2008.
Mais do que postergar conflitos, a compra de tempo camuflou um processo de desmonte dos Estados de bem-estar social. O endividamento dos países ricos cresceu consideravelmente nos últimos quarenta anos, embora eles não tenham ampliado investimentos. O que se vê é um descolamento entre as receitas fiscais, que se estabilizaram, e os gastos públicos, que continuaram a crescer sem que houvesse expansão dos programas sociais. Ao contrário, em muitos desses países foram realizados cortes e privatizações de serviços de educação, saúde e assistência social. Parte relevante do crescimento do gasto público foi apropriada pelos mercados por meio dos serviços das dívidas pagos pelos Estados – uma espiral de retroalimentação da riqueza que amplia continuamente a diferença entre os “dependentes do salário” e os “dependentes do lucro”, nos termos do sociólogo alemão.
Como resultado, aumentou a desigualdade de renda em países como Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Japão, Alemanha e Suécia entre 1985 e 2005. No mesmo período, conforme demonstram os estudos liderados pelo economista francês Thomas Piketty, o 1% mais rico passou a se apropriar de uma fatia ainda mais ampla da riqueza. Esse processo deu-se junto ao desmonte dos sindicatos e à redução quase a zero do número de greves nesses países, em contraste com as grandes paralisações dos anos 1960 e 1970. A desmobilização da classe trabalhadora não ocorreu por avanço na pirâmide social, mas pela desarticulação sindical associada a uma promessa de melhoria de vida baseada no crédito.
Essa “revolução neoliberal” foi operada politicamente por meio daquilo que a cientista política belga Chantal Mouffe chamou de “consenso de centro”: uma alternância formal entre centro-direita e centro-esquerda nos governos, mas com manutenção da mesma política econômica. O “neoliberalismo progressista” foi a contribuição da esquerda para o consenso de centro. A ausência de alternativas políticas acabou por reduzir o interesse pelas eleições. Dados compilados por Streeck mostram que, nos 22 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o comparecimento às urnas caiu de uma média de 84,1% na década de 1960 para 72,5% na década de 2000. A queda não é um efeito da satisfação do eleitorado, visto que “os eleitores que participam menos das eleições são aqueles que têm rendimentos baixos”, afirma o autor. Além disso, quanto maior a taxa de desemprego, menor o comparecimento às urnas. Por décadas, a classe política ignorou a desconfiança das instituições por parte daqueles que o neoliberalismo deixou pelo caminho.
Quando eclodiu a crise de 2008 e o subsequente ciclo de revoltas, parecia que a pedra no caminho do neoliberalismo ficara grande demais para ser contornada. Mais uma vez, porém, o capitalismo liberal desviou-se do pedregulho e seguiu adiante “cambaleando” e de “olhos vidrados como um zumbi”, nas palavras de Rodrigo Nunes, no artigo O presente de uma ilusão, publicado na piauí_174, de março. Junto ao desmonte dos Estados de bem-estar social e ao aumento da desigualdade, a globalização estressou os limites ambientais com a intensificação sem precedentes da exploração de recursos, produção e consumo de bens globais, tudo à base de muito derivado de petróleo. Em toda a história da humanidade, mais da metade do carbono dissipado na atmosfera devido à queima de combustíveis fósseis foi emitida nas últimas três décadas, como apontou o jornalista David Wallace-Wells, em um realista e assustador artigo, Desastres em cascata – reproduzido na piauí_153, junho 2019 –, sobre as consequências em cadeia que tendem a advir da crise climática.
Foi esse mundo de desigualdade de renda acentuada, de crise climática, de transformação de valores sociais e de descrédito com a política institucional que produziu as condições para a emergência de fenômenos como a eleição de Donald Trump e a aprovação do Brexit inglês, ambas ocorridas em 2016. Prometendo combater os avanços progressistas de valores (e um retorno ao mundo em que a ordem patriarcal não é questionada) e as perdas de renda da classe trabalhadora provocadas pela globalização, uma nova extrema direita se forjou, explorando a desconfiança nas instituições e difundindo teorias conspiratórias.
O populismo autoritário, mitomaníaco e socialmente corrosivo de Donald Trump e companhia não significou um desafio incontornável ao neoliberalismo, acostumado a conviver com formas políticas não exatamente agregadoras ou democráticas. Mas, para o establishment do Partido Democrata, a água parece ter batido na bunda. Sobrepondo-se ao risco destrutivo da extrema direita, vieram a pandemia da Covid-19 e a crise humanitária decorrente, que fez explodir a demanda por proteção social. Os últimos anos também ofereceram uma pequena degustação das consequências da crise climática. Quando os democratas norte-americanos acordaram do sono zumbi, se depararam com um rochedo intransponível.
O jornalista Ezra Klein, colunista do New York Times, conta que já cobriu Joe Biden diversas vezes, desde o período em que era senador até a campanha presidencial de 2020. Surpreso com as primeiras ações do governo – e especialmente com os pacotes de investimentos trilionários anunciados em março –, Klein afirmou que, embora “pensasse que tinha uma boa compreensão de Biden”, nunca chegou a “prever esse estilo de presidência e tampouco essas contas”. O jornalista refuta a tese de que os planos de Biden sejam somente uma resposta à crise da Covid-19: as propostas do governo miram em uma série de problemas que antecedem a pandemia, como a alta desigualdade, a injustiça territorial urbana e a crise climática. Em suas palavras, “o status quo antes da pandemia era um desastre”, e “os democratas, que participaram da construção do desastre, foram muito lentos em reconhecer os problemas e muito tímidos para enfrentá-los”.
A afirmação do colunista introduz a entrevista que fez em seu podcast com o cientista político Brian Deese, que trabalhou na administração Obama e preside o Conselho Nacional de Economia de Biden – o locus de formulação da política econômica do governo. Como Deese há muito se dedica à questão climática, Klein conclui que sua nomeação para o alto cargo significa que “toda agenda econômica do governo será também climática”. Em muitos momentos, a entrevista aborda uma questão que todos que acompanham a política econômica norte-americana devem se colocar: Por que as propostas do governo Biden diferem tanto do governo Obama, com um protagonismo muito maior do Estado, focando na transição energética, na redução da desigualdade, na economia do cuidado e na revisão da infraestrutura?
A conversa dá boas pistas para a guinada. E permite interpretar o novo keynesianismo de Biden como resposta a ameaças internas e externas, que tiraram os democratas da inércia. A primeira delas é a crise climática, que deixou de ser percebida como um debate teórico e se tornou um problema vivido no país, cujo episódio mais recente foi o caos na infraestrutura de água e energia elétrica gerado pelas baixas temperaturas no Texas, que deixou as pessoas sem aquecimento nas casas e sem água potável. Os cidadãos norte-americanos que consideram a crise climática “alarmante” passaram de 11% em 2015 para 26% em 2020, enquanto aqueles que duvidam da existência do aquecimento global caíram de 15% para 11% no mesmo período, segundo pesquisa do Programa de Comunicação sobre a Mudança Climática da Universidade Yale. A percepção de risco é intensificada ainda pela pandemia, que levou a população a vivenciar os impactos de uma crise humanitária de grandes proporções.
A segunda ameaça é externa: a China, com seu crescimento robusto e sua acelerada transição para uma economia de baixas emissões de carbono. Na avaliação de Brian Deese, na última década a China realizou uma série de investimentos – em trens de alta velocidade, em pesquisa e desenvolvimento para inovação etc. – enquanto os Estados Unidos ficaram estacionados. Perder a liderança global para o país asiático tornou-se uma ameaça muito maior em 2020 do que era em 2009, quando o pib chinês era quase três vezes menor.
Há, ainda, o trauma gerado pela eleição de Trump e a ameaça de que ele ou outro prócer da extrema direita possa voltar a governar os Estados Unidos. Os democratas parecem ter compreendido que abandonar as pessoas à própria sorte, enquanto a riqueza de poucos vai às alturas, pode torná-las presas fáceis de projetos políticos com alto potencial destrutivo. Por isso, o governo Biden está mais preocupado com os riscos políticos do que econômicos, aponta Klein: “Prefere errar gastando mais e assegurando que as pessoas vão ter uma melhora de vida ou um novo emprego a fazer menos e deixar as pessoas em dúvida se o governo está trabalhando para elas.”
Oferecer respostas concretas para os problemas daqueles que deixaram de confiar nas instituições passou a ser visto como a melhor maneira de tirá-los da alçada da extrema direita e suas falsas promessas. Esta sempre foi a perspectiva de Bernie Sanders, o senador democrata pelo estado de Vermont que entusiasmou a juventude e a esquerda dos Estados Unidos em duas prévias presidenciais, em 2016 e 2020. Embora pressione pela ampliação das propostas do governo, Sanders tem demonstrado um otimismo incomum e já afirmou que as medidas do governo Biden foram as políticas mais importantes de benefício à classe trabalhadora realizadas nos Estados Unidos nas últimas quatro décadas.
O senador por Vermont e seu grupo político – herdeiros do espírito do Occupy Wall Street, cujo slogan evocava o embate de 99% da população contra o 1% que domina a riqueza – têm realizado uma relevante renovação na esquerda do país, mobilizando a sociedade e elegendo jovens líderes, como Alexandria Ocasio-Cortez e Ilhan Omar. O crescimento de uma esquerda organizada e com alta penetração na juventude pode ser visto como a quarta ameaça que fez o governo Biden assumir um viés progressista. Este é o argumento de Meagan Day e Micah Uetricht, em entrevista recente à Jacobin Radio. Os pesquisadores são autores do recém-lançado livro Bigger than Bernie: How We Can Win Democratic Socialism in Our Time (Maior que Bernie: Como podemos conquistar o socialismo democrático na nossa era), que apresenta os bastidores da campanha de Sanders como um ecossistema de ativismo político que vai além das eleições.
Ezra Klein considera que, embora “Sanders não tenha vencido as eleições de 2020”, ele “parece ter vencido suas consequências”, lembrando que o plano de recuperação econômica do governo é muito mais próximo das propostas dele do que das do atual presidente. Já o American Jobs Plan, o plano de infraestrutura de 2,3 trilhões de dólares, pode ser visto como uma versão mais moderada do Green New Deal, a proposta de descarbonização da economia com justiça social lançada em 2019 por intelectuais e lideranças políticas de esquerda, como Ocasio-Cortez. Embora sustente que o plano seja ainda insuficiente, a jovem deputada democrata aponta que as propostas de seu grupo influenciaram o plano do governo e chegou a afirmar que “embora parte do partido evite usar o termo ‘Green New Deal’ para descrevê-las, o quadro conceitual é o mesmo”.
O Partido Democrata não deu uma guinada política porque o presidente acordou benevolente na manhã de 20 de janeiro, mas porque viu as ameaças crescendo no horizonte. A crise climática se tornou real demais, a China avança rápido demais, os riscos do retorno da extrema direita ao poder são grandes demais. Além disso, a inércia do establishment democrata poderia abrir espaço para a esquerda. Cabe lembrar, ainda, que o grupo de Sanders e Ocasio-Cortez foi muito ativo na campanha de Biden, apoiando a candidatura e sendo capaz, hoje, de influenciar suas decisões.
Ainda é cedo para afirmar que estamos assistindo ao fim do neoliberalismo. Mesmo porque uma de suas pernas, que é a precarização do trabalho, permanece por hora intocada nos Estados Unidos, como lembrou o historiador canadense Quinn Slobodian, autor de um livro recente sobre a história das ideias neoliberais. Além disso, a superação do modelo depende da aprovação dos pacotes de Biden no Congresso e de seu sucesso macroeconômico – em suma, se ele vai ser capaz de gerar crescimento econômico sem produzir inflação. Outros fatores podem desestabilizar, ainda, a tensa coalizão entre liberais e socialistas que sustenta o governo Biden – a atuação norte-americana nos ataques de Israel à Palestina é um exemplo recente de discordância entre os grupos. O certo é que a ideia de que não há alternativa ao neoliberalismo e às políticas de austeridade fiscal, bordão da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013) que reverberou por décadas na boca de governantes mundo afora, caiu por terra na maior economia do mundo. E isso não é pouco.
As medidas do governo Biden têm uma identificação imediata com as políticas propostas pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), que estruturaram o New Deal norte-americano nos anos 1930 e o modelo implantado nos países do centro do capitalismo nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Essas políticas contavam com o protagonismo do Estado no investimento em infraestrutura, na proteção social e na estabilização econômica; e com o fortalecimento de sindicatos, compreendidos como instrumentos legítimos de busca de melhorias para a classe trabalhadora. Por décadas, esse arranjo resultou no crescimento da demanda e na ampliação de mercado para as empresas, que, por sua vez, acabavam por compartilhar parte dos ganhos de produtividade com os trabalhadores, por meio de aumento dos salários, e com os Estados, por intermédio de impostos que eram reinvestidos em infraestrutura e proteção social. Em uma perna, industrialização fordista e sindicalizada; na outra, Estado de bem-estar social.
Em sua análise das fases históricas do capitalismo, Nancy Fraser denomina esse período de “capitalismo administrado pelo Estado”, apontando que todos os esforços empreendidos pelos Estados centrais “visavam a assegurar as condições para uma acumulação sustentável de capital privado e esvaziar a revolução”. O keynesianismo foi a solução encontrada para enfrentar uma ameaça da geopolítica internacional. Para Wolfgang Streeck, durante “os trinta anos gloriosos” que se seguiram à Segunda Guerra, “as relações de poder entre as classes estiveram contrabalanceadas como nunca outrora no capitalismo”.
Na Europa, de fato, o pós-guerra foi marcado por uma série de políticas públicas que foram além do crescimento com distribuição de renda, constituindo experiências de Estados de bem-estar social significativas na busca por sociedades mais igualitárias. No centro dessa agenda, estiveram as políticas urbanas, com o investimento em transporte público, em moradia, em espaços e serviços públicos – enfim, em infraestrutura distribuída nos bairros, elemento essencial para a vida em um mundo urbanizado. De acordo com o urbanista italiano Bernardo Secchi (1934-2014), “a urbanística europeia foi muito mais ‘escandinava’ do que os governos e as políticas dos diferentes países”. Daí porque haveria menos desigualdade na Europa do que nos Estados Unidos, onde uma dimensão mais ampla do Estado de bem-estar social nunca chegou a ser implementada.
A crise atual é também um resultado das contradições internas das políticas adotadas pelas democracias ocidentais no pós-guerra. Seu modelo de desenvolvimento produtivo e de organização industrial urbana baseou-se no petróleo e na criação de mercados globais para esse combustível. O controle do petróleo em países do mundo árabe foi parte do arranjo, como argumenta o cientista político inglês Timothy Mitchell no livro Carbon Democracy: Political Power in the Age of Oil (Democracia do carbono: O poder político na era do petróleo). Para que os países do centro pudessem exercer sua combinação de democracia, desenvolvimento industrial e bem-estar social, ditaduras um tanto brutais foram mantidas nas bordas.
O automóvel é central no esquema. A indústria automotiva, considerada indutora da industrialização e ativadora de uma extensa cadeia econômica, passou a ser peça-chave da riqueza dos países. A difusão do estilo de vida baseado no carro exportava para o resto do mundo um modo de deslocamento extremamente perdulário no gasto de combustível. Enriqueciam os países produtores de carros e criavam-se mercados superdimensionados em demanda por petróleo e monopolizados por uma só indústria.
O próprio termo fordismo keynesiano – como o período é denominado por muitos analistas – partia já de uma contradição constitutiva que opunha, de um lado, a busca por sociedades mais igualitárias e coesas e, de outro, a difusão de um item de consumo produtor de individualismo e desagregação. Com a massificação do carro, democratizou-se também a possibilidade de que alguns pudessem tirar vantagens à custa de outros, já que a adaptação das cidades para o transporte individual prejudica a coletividade, com impactos maiores sobre aqueles que não se motorizam. Nancy Fraser, referindo-se à suburbanização das cidades norte-americanas baseada no automóvel – processo que, ao retirar a classe operária de bairros com coesão social onde antes vivia, tornou-a “mais consumista e menos solidária” –, fez o seguinte diagnóstico: “A social-democracia criou seus próprios coveiros e acabou desativando as mesmas forças sociais que, historicamente, a sustentaram.”
Por ocuparem uma quantidade descomunal de espaço para o deslocamento das pessoas, os carros rapidamente congestionam as ruas das cidades quando se difundem. O fordismo keynesiano abordou esse problema como uma oportunidade: optou-se por ampliar continuamente a infraestrutura viária, gerando impulso nas atividades econômicas pela execução de grandes obras de engenharia. Embora as novas pistas fossem rapidamente saturadas, o impacto que causavam nas outras formas de deslocamento e o estímulo que produziam à motorização serviram para tornar os carros cada vez mais necessários. Assim, “o automóvel conformou as cidades e definiu o modo de vida urbano na industrialização”, como resumiu a urbanista Ermínia Maricato.
Nos Estados Unidos, o imposto sobre combustível, diretamente atrelado ao investimento em infraestrutura rodoviária, foi fundamental nessa equação. Tendo sofrido resistência inicial da indústria automobilística, o imposto foi finalmente aceito quando se percebeu a espiral pró-automóveis que produzia: com os recursos arrecadados vinculados ao investimento em estradas, obrigava-se à ampliação constante da infraestrutura rodoviária; isto gerava, por sua vez, incentivo ao uso de mais carros, o que garantia o crescimento da indústria e os gastos com combustível, aumentando cada vez mais os recursos para construção de estradas.
O New Deal da década de 1930 e os “trinta anos gloriosos” que se seguiram à Segunda Guerra basearam-se na indústria automobilística e na construção de estradas, túneis, viadutos e vias expressas. Especialmente nos Estados Unidos, essa dinâmica foi levada ao limite, promovendo verdadeiras necroses no tecido urbano e estabelecendo aquilo que poderíamos chamar de democracia de motoristas: as classes médias e altas foram morar nos subúrbios, usando carros cotidianamente para acessar os centros e beneficiando-se de altos investimentos em infraestrutura. Enquanto isso, quem não tinha carro enfrentava condições de deslocamento cada vez mais precárias e assistia à degradação de seus bairros, com o aumento da poluição e dos acidentes.
Houve resistência social a esse estado de coisas. É bastante conhecida a disputa da jornalista norte-americana Jane Jacobs (1916-2006) com o engenheiro Robert Moses (1888-1981) em torno de grandes obras rodoviárias em Nova York. O poderoso engenheiro queria implantar avenidas e vias expressas que cortariam ao meio bairros tradicionais. Jacobs, que escrevia sobre cidades, uniu-se a moradores e passou a liderar movimentos contra as obras. O corte de gênero era evidente: enquanto Moses tinha a seu lado burocratas e empresários engravatados, todos homens, grande parte das pessoas engajadas nos protestos era composta de mulheres e crianças. Na primeira disputa, sobre o projeto de uma avenida que destruiria a Praça Washington, localizada no Sul de Manhattan, Moses chegou a afirmar que todos aprovavam seu projeto “exceto um grupo de mães” e caracterizou Jacobs como uma “dona de casa”.
Jacobs e seu grupo foram capazes de impedir a destruição da Praça Washington e, alguns anos depois, a implantação da via expressa que atravessaria bairros como SoHo e Little Italy. Em alguns outros locais do país, movimentos sociais também foram capazes de barrar intervenções similares. A degradação dos bairros, no entanto, correspondeu a uma evidente desigualdade racial. Um estudo recente analisando toda a rede de vias expressas projetadas no país desde a década de 1950 mostra que em regiões centrais, de maior poder aquisitivo e população branca, os projetos originais foram mais adequados às demandas dos moradores, enquanto em bairros pobres e majoritariamente ocupados por pessoas negras ou latinas, os projetos foram executados conforme o original. É dessa época a frase do escritor nova-iorquino James Baldwin (1924-87) segundo a qual “renovação urbana significa remoção dos negros” – urban renewal means negro removal.
A poluição ambiental e a emissão de gases geradores da crise climática são outra consequência do modelo. Nos Estados Unidos, o setor de transportes representa hoje quase 30% das emissões que geram o aquecimento do planeta – e, dentro do setor de transportes, os automóveis respondem por quase 60% das emissões. Os carros nos Estados Unidos, apenas eles, produzem mais emissões do que o Brasil inteiro. A ampla difusão de veículos de 1 a 2 toneladas para transportar 1 ou 2 pessoas foi excelente para a indústria de petróleo, já que forjou uma demanda extraordinária para seus produtos. Para as cidades e para o planeta, foi desastroso. Ainda porque o modelo automobilista é indutor do espraiamento urbano e do esvaziamento dos centros, impulsionando a demanda por construção civil – segmento com contribuição relevante para as emissões.
Em resumo, o fordismo keynesiano norte-americano foi abastecido pela difusão global do petróleo, sustentado por uma geopolítica internacional que tolerou regimes ditatoriais sanguinários, estruturado em torno da massificação do automóvel e seus efeitos de degradação urbana, social e ambiental, baseado na afirmação do poder patriarcal em detrimento do restante da sociedade, e no racismo inoculado em obras de renovação urbana. O neoliberalismo, ao acelerar o modelo subtraindo dele a proteção social e a sindicalização, conduziu o barco até a tragédia atual.
Nenhuma dessas críticas é novidade para a nova esquerda norte-americana, cuja visão resultou no Green New Deal – proposta baseada em uma compreensão ampla da dinâmica social e ambiental, e que busca enfrentar problemas que remontam ao New Deal original. Para a nova esquerda global, da qual a norte-americana faz parte, o capitalismo é compreendido como algo maior do que sua economia, produzindo injustiças que vão além da desigualdade financeira. A costumeira hierarquização das desigualdades promovida pela tradição marxista parece ter ficado para trás. A luta de classes, entre capitalistas e trabalhadores, é parte da disputa, mas deixa de ser vista como contradição primária. Elevam-se ao primeiro plano as lutas de fronteira – termo usado por Fraser para se referir aos conflitos ocorridos nos domínios de onde a economia capitalista suga valor sem repor, como o ambiente, as condições de reprodução social e os poderes públicos.
Em seu último livro, o italiano Bernardo Secchi – um urbanista, diga-se, formado durante os anos do Estado de bem-estar social na Europa – afirma que no mundo atual não seria possível resolver de forma separada a questão ambiental, a mobilidade urbana e a desigualdade social. Essa ideia desembocou na geração do Green New Deal, ganhando uma compreensão ainda mais ampla: a de que as desigualdades raciais e de gênero também são atravessadas pela economia e pelo modo de organização da vida no território. A nova esquerda parece ter entendido que qualquer solução que não seja de fato universalizável deixará os mais fragilizados pelo caminho. Nisso, mais uma vez, o automóvel é exemplar: não há condições econômicas, de provimento de energia e de espaço urbano para que todos possam ter seu próprio veículo. Como o carro gera uma série de efeitos negativos que impactam mais os não motorizados, todo desenvolvimento baseado nele levará ao acirramento de desigualdades de condições de vida.
Os últimos anos também deixaram evidente que a população mais pobre é a mais impactada pela tragédia climática que já começamos a vivenciar. Um planeta mais quente afeta a todos, mas a capacidade de se proteger é radicalmente diferente para ricos e pobres. A desertificação de áreas não gera migrações em massa da elite, mas de lavradores pobres. Os tornados e furacões podem atingir diversas regiões, mas só os excluídos não terão recursos para se deslocar com velocidade e reconstruir a vida em outros lugares. As enchentes e deslizamentos que já assolam as cidades brasileiras não ocorrem no Jardim Europa ou no Leblon, mas nas periferias precárias.
Essa abordagem avançada já seria significativa se estivesse restrita aos círculos da esquerda, mas fato é que transbordou para os “liberais” – termo que, nos Estados Unidos, refere-se aos centristas que hoje estão à frente da administração Biden. Também por pressão de congressistas da esquerda do Partido Democrata, as políticas do governo têm dado ênfase a comunidades fragilizadas na destinação de recursos e à correção de injustiças sociorraciais herdadas do modelo de desenvolvimento urbano que o keynesianismo rodoviarista produziu.
O movimento negro tem importante relevância nessa ascensão política, com destaque para os protestos do Black Lives Matter e para a decisiva atuação nas eleições presidenciais de 2020. Graças à forte mobilização de ativistas negros no estado da Geórgia, Biden venceu no estado, quebrando uma hegemonia republicana de quase três décadas. A Geórgia elegeu também dois senadores democratas, um afro-americano e um judeu, o que foi crucial para que o partido obtivesse maioria no Senado. Ativistas como a advogada negra Stacey Abrams estiveram à frente da grande mobilização social que possibilitou essas vitórias. A reforma da polícia, tradicionalmente violenta contra afro-americanos, é a pauta de maior pressão atual do movimento sobre o governo.
A ideia de que a infraestrutura de transportes é também uma pauta de direitos civis vem sendo recorrentemente vocalizada por Pete Buttigieg, o ex-prefeito de South Bend, no estado de Indiana, que se tornou secretário dos Transportes de Biden, cargo equivalente ao de ministro no Brasil. Suas propostas para as rodovias do país incluem rever vias expressas que degradam bairros majoritariamente negros ou latinos. Referindo-se às grandes obras rodoviárias herdadas do século XX, o atual secretário chegou a afirmar no Twitter que “as vias expressas do país foram muitas vezes construídas sobre bairros negros de propósito – dividindo comunidades, aumentando a poluição e tornando a vida dos pedestres menos segura”. Buttigieg é um político de centro, muito mais próximo de Biden do que de Bernie Sanders.
O orçamento para essa revisão, no entanto, é ainda minoritário em relação aos outros gastos em transportes, a mais robusta das quatro áreas do plano de infraestrutura. Os maiores recursos serão destinados à transição para veículos elétricos (174 bilhões de dólares) e à reparação e manutenção de estradas (115 bilhões), sinalizando que a ênfase no transporte individual motorizado não está sendo eliminada, mas ajustada para tecnologias menos poluentes e de menor impacto nas cidades. Como o carro elétrico altera a fonte de energia, mas ocupa o mesmo espaço urbano que os automóveis convencionais, a transição reduz emissões e poluição do ar, mas não elimina outros problemas. Se o carro elétrico se massificar, a extração da colossal quantidade de lítio para fazer baterias produzirá consideráveis crateras mundo afora e elevará às alturas a necessidade de produção de energia elétrica. O gasto perdulário de energia nos deslocamentos não é universalizável com fonte alguma.
Os investimentos em ferrovias e transporte público podem atenuar essa tendência, mas representam a terceira e a quarta maior rubrica da área de transportes do plano – 85 e 80 bilhões de dólares, respectivamente. Eis aí uma diferença entre o plano de Biden e o Green New Deal, cujas propostas priorizam o investimento em transporte público e ferroviário. Equilibrando-se entre a agenda mais transformadora da esquerda e a conquista de apoio de setores mais conservadores, o American Jobs Plan busca fazer uma transição em que todos saiam ganhando. Obviamente, a tarefa não é fácil. O nome dado pelo governo ao plano entra nessa lógica: ao focar no emprego, Biden tenta acenar à vasta classe média baixa empobrecida, boa parte dela conservadora e trumpista.
De outro lado, chama a atenção no pacote de Biden a importância dada à economia do cuidado. Pauta histórica do pensamento feminista e assunto relegado por décadas a um segundo plano, o cuidado com crianças e idosos ganhou um lugar relevante no orçamento. O entendimento de que a reprodução social é essencial para a vida e também para a economia dita “produtiva” ultrapassou em muito as pensadoras radicais feministas dos anos 1970 e alcançou o governo presidido por um homem branco de 78 anos. A esquerda do Partido Democrata tem pressionado pelo aumento dos investimentos e a construção de um verdadeiro Estado de bem-estar social nos Estados Unidos, com propostas como a ampliação da saúde gratuita e o ensino superior gratuito.
Para pagar a conta de seus planos trilionários, o governo busca recuperar impostos cortados pela administração de Trump e aumentar a taxação sobre grandes empresas, tornando a tributação do país mais progressiva. Como o aumento não cobre de imediato os investimentos previstos, a perspectiva é, como resumiu a economista Laura Carvalho, “gastar agora e arrecadar depois”, em uma aposta de que o crescimento econômico ampliará a arrecadação do governo no futuro.
Buscando dialogar com a esquerda e os movimentos sociais que pressionam por mais investimentos, promover melhorias significativas de vida para a população precarizada, frear a crise climática, aprovar seus projetos no Congresso e, ainda, não desagradar a elite econômica que o apoia, o governo Biden tenta se equilibrar. Busca também retomar o protagonismo do país na diplomacia internacional, assumindo metas mais significativas de redução de emissões e pressionando outros países a ir na mesma linha. Mas o governo sabe que só será possível realizar sua parte na redução de emissões se os planos forem aprovados. Nas palavras da analista de política da revista The New Yorker, Susan B. Glasser: “Ao contrário do socialista Bernie Sanders, Biden não se proclama um revolucionário. Ao contrário do populista Donald Trump, Biden não se proclama disruptivo. Mas se conseguir passar suas propostas no Congresso, o atual presidente será as duas coisas.”
A emergência do novo keynesianismo nos Estados Unidos espalha otimismo para a esquerda global, gerando a expectativa de um novo ciclo progressista que poderia apontar para a saída da enorme crise em que o mundo está metido. Por enquanto, essa nova onda ainda habita mais o campo do desejo do que o das probabilidades, mas é fato que uma tendência pode se iniciar. Se o Partido Verde vencer as eleições de setembro na Alemanha, como indicam as pesquisas mais recentes, há boas chances de políticas similares à de Biden serem adotadas no país. O governo de Berlim lidera a linha de política econômica no bloco europeu e hoje segue na toada da austeridade fiscal.
No Brasil, ressurgiu a possibilidade de retorno de um ciclo progressista com a volta de Lula ao jogo eleitoral. O plano Biden já é motivo de debate entre economistas nas páginas dos jornais. O desafio parece ser encontrar a qualificação certa para esse keynesianismo atualizado, indo além do economicismo ao qual muitas vezes a discussão fica restrita. Mais do que gastar ou não gastar, o debate deveria ser sobre em que gastar e como. Se isso não acontecer, corremos o risco de ficar presos entre o apego a um neoliberalismo zumbi e a produção, no melhor dos casos, de mais um Gray Old Deal.