Xuxa Meneghel: “Quero ser uma velhinha de sítio, criando galinha solta e acolhendo bicho abandonado”, diz ela, que, durante a pandemia, pensou seriamente em fazer veterinária CRÉDITO: BLAD MENEGHEL
Xuxa está em paz
A apresentadora, aos 60 anos, lida com a idade sem dramas ou angústias
Tiago Coelho | Edição 199, Abril 2023
A mesa está posta para duas pessoas na cozinha. Tudo muito simples, sem luxo. Das panelas no fogão vem o cheiro apetitoso do jantar vegano: arroz basmati, feijão, escondidinho de soja e lasanha de berinjela. Na parede, fotografias emolduradas de um leitão, um bezerro e uma galinha. Dana, a cadela adotada, repousa sonolenta num canto. Lá fora, no jardim, o piado de pássaros agita o quintal, onde outra cadelinha, a Doralice, circula calmamente. Um par de pernas femininas muito compridas atravessa o jardim e pega Doralice no colo. Aquele andar é muito familiar. É a Xuxa.
Ela entra na sala ampla de sua casa na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Há poucos móveis ali: um longo sofá em formato de L e uma mesa comprida com oito cadeiras. Na decoração minimalista, destaca-se uma enorme pintura do rosto de uma mulher indígena, feita pela artista plástica Rose Samara. Ela senta-se no sofá, cruza as pernas e acomoda Doralice no colo, feito um bebê. Aquela posição também é familiar: era assim que, em seu programa de tevê, a apresentadora, de 1,78 metro de altura, se sentava sobre a pilha de cartas que as crianças lhe mandavam, mais de trinta anos atrás.
Xuxa faz carinho no dorso da cadela. “Doralice veio de um canil. Viveu por um ano e oito meses em uma gaiolinha. Era uma espécie de matriz, gerando outros filhotinhos”, conta. “Chegou aqui cheia de trauma, magrinha, não conseguia andar, tremia inteira. Até hoje para comer é difícil. Mas ela é muito doce, dorme comigo. Os bichos sentem o quanto gosto deles.” Ela aponta para uma mesa no jardim. “De manhã, eu sento ali fora para tomar café. Vêm todos os passarinhos pra cima de mim. A Doralice briga com eles. É uma confusão.” Quando indagada se Sasha tem a mesma ligação com os bichos, Xuxa pega o celular e mostra a foto da filha, com uma cadela no colo. “Olha! É uma vira-lata de 3 meses, e a Sasha está numa felicidade só”, diz. “Eu gosto mais de estar com bicho e criança do que com adulto. Desde pequena. Só fui entender melhor os adultos depois que me tornei mãe.”
No primeiro disco da série Xou da Xuxa, lançado em 1986, havia uma música de Rita Lee chamada Peter Pan, que diz: Areia da grossa/Areia da fina/Areia me faça ficar pequenina. Xuxa recorda: “Eu estava começando na Globo. Ninguém apostava que o disco fosse fazer sucesso. Ninguém queria me dar uma música para gravar.” Até que a Rita Lee aceitou. “Eu era conhecida como um símbolo sexual naquela época. E a Rita disse que só via uma menina em mim.”
Empresto os meus olhos para a criança que fui, e percorro com eles o rosto de Xuxa: a boca preserva o mesmo desenho da época em que ela mandava beijinhos na tevê, os olhos azuis rasgadinhos também são os mesmos, assim como os cabelos louros. Xuxa conversa olhando nos olhos. Talvez não tenha reparado os meus percorrendo seu rosto. Há mais de quarenta anos ela é alvo do olhar do público e da mídia. Era ainda adolescente quando começou a posar e desfilar como modelo. Adulta, tornou-se um fenômeno da televisão. Em 27 de março passado, Xuxa completou 60 anos.
Quatro anos atrás, ela curtia férias com o namorado, o cantor e compositor Junno Andrade, em uma praia na Jamaica, e a linda tonalidade da água do mar, um azul-turquesa bem clarinho, a estimulou a fazer uma selfie. Vestiu a parte de cima do biquíni (estava sem), posicionou o rosto sem maquiagem diante do celular, sem nenhum filtro, e clicou. A foto revelava as marcas de expressão no seu rosto, as sardas, a raiz branca dos cabelos. Ela escreveu na legenda: “Olha a cor dessa água.” E postou a imagem.
A fotografia causou um rebuliço nas redes sociais e gerou três tipos de reação dos usuários. A maioria a parabenizou por sua beleza e por se mostrar sem maquiagem. Uma parcela pequena a atacou grosseiramente, chamando-a de “velha”. E teve um terceiro grupo que não a atacou, nem a elogiou, apenas se mostrou surpreso ao perceber que Xuxa está envelhecendo. “O que mais me assustou foram os comentários das mulheres. Mas entendi o que aconteceu. Ao me verem velha, muitas devem ter se percebido velhas também. E não gostaram dessa percepção, me reprovando por não fazer plástica”, diz. “Teve gente que se incomodou com a aceitação da minha própria idade. Não era necessário tanto burburinho. Trabalho com minha imagem desde os 16 anos e tenho espelho em casa.” Ela já fez alguns procedimentos estéticos, como implante de silicone e botox, mas nunca recorreu à cirurgia plástica no rosto para rejuvenescimento.
Xuxa nasceu em Santa Rosa, cidade gaúcha que tem hoje 74 mil habitantes, muito próxima da fronteira com a Argentina. Sua avó ficou viúva cedo e precisou trabalhar fora. Como não tinha com quem deixar a filha, Alda, a menina ficava sozinha. Ciganos que viviam na região perceberam os choros da criança e se dispuseram a cuidar dela enquanto a mãe trabalhava. Alda se casou com o militar Luiz Floriano Meneghel e, influenciada pela cultura cigana, batizou os filhos com os nomes Solange Aldaiz, Mara Rúbia, Cirano Rojabaglia e Bladimir Elisaldo. A caçula se chamaria Morgana Sayonara. Mas, por causa de complicações graves no parto, os pais resolveram mudar seu nome para Maria da Graça. O irmão mais novo logo ficou enciumado com a bebê. Para alegrá-lo, Alda disse que a garotinha era um brinquedo novo que a mãe lhe trouxera. E ele respondeu: “É a minha Xuxa.” A menina nunca mais atenderia pelo nome de batismo.
Xuxa era grudada na mãe. E nos bichos. Tinha o hábito de, nas casas que visitava com Alda, soltar os passarinhos das gaiolas. O que não a tornava muito bem-vinda. Ao primeiro contato agarrava-se a qualquer bicho solto na rua. Era constantemente mordida por cães, o que a obrigava a tomar vacina antirrábica com certa frequência. Mas não foram esses episódios que a traumatizaram na infância.
O que a marcou para sempre está contado em seu livro Memórias, lançado em 2020, no capítulo Medo, Culpa e Nojo. Xuxa tinha cerca de 4 anos, e em sua família era costume tomar uma dose de um elixir levemente alcoólico para abrir o apetite antes do almoço. Depois da refeição, as crianças tiravam uma soneca juntas na sala. Como Xuxa tem intolerância a álcool, dormia profundamente. “Me lembro de um cheiro de álcool, uma barba que machucou o meu rosto e algo que foi colocado em minha boca. Acordei dizendo que alguém tinha feito xixi na minha boca, e meus irmãos disseram que eu havia sonhado”, ela contou no livro.
No início dos anos 1970, Luiz Floriano, um militar austero e não muito dado a manifestações de afeto, foi transferido para o Rio de Janeiro e levou a família para morar em um apartamento pequeno no bairro Bento Ribeiro, na Zona Norte. Na escola, os irmãos Meneghel foram alunos, um após outro, do professor de matemática Clóvis Marques. Xuxa projetou no professor uma figura paterna e ganhou dele dois presentes dos quais nunca esqueceu: um exemplar de O Pequeno Príncipe, o livro de Antoine de Saint-Exupéry, e Kiko, o primeiro cachorro que ela teve no Rio.
O professor se tornou tão querido por Xuxa e seus irmãos que Alda o chamava para almoçar em sua casa. “Fiquei muito amigo da família, que era muito simples, com tudo muito controladinho”, lembra Marques, que hoje tem 75 anos. “Xuxa era uma menina que tinha alma de gente, muito solidária. Minha lembrança dela é de uma garota cheia de vida e generosa. Me recordo que ela não era comilona, mas passou a levar dois sanduíches para a escola. Alda ficou contente, achando que a filha estava se alimentando melhor, mas, na verdade, descobri depois, Xuxa dava um dos sanduíches para uma amiguinha mais pobre que ela.”
Certa vez, Marques foi convidado para a casa de veraneio que os Meneghel tinham alugado na Praia de Coroa Grande, em Itaguaí, no litoral fluminense. O professor passou uma tarde lá. “Na hora do almoço, à mesa, a família demonstrou descontentamento com o hábito do patriarca de tomar uma bebidinha. Ele não era alcoólatra, bebia pouco. Mas, mesmo assim, ninguém gostava. Eu disse que eles faziam esse pedido porque amavam o pai deles, que era um homem bom.”
Marques deixou a escola, e Xuxa teve um novo professor de matemática, que a assediava constantemente, chegando a dizer que queria deixá-la de calcinha e “colocar nas coxas dela”. Não foi o fim das agressões. Na adolescência, ela foi abusada pelo namorado de sua avó, que lhe tocava as partes íntimas. E na casa de praia também foi tocada por um amigo de seu pai.
Em 1978, Xuxa voltava para casa, depois de uma aula de ginástica olímpica, quando um rapaz dentro do trem a ficou observando. Ela tinha 15 anos e estava com sua irmã Mara Rúbia. As duas ficaram incomodadas com aquilo. No mesmo dia, o rapaz (que as havia seguido sem que elas percebessem), tocou a campainha da casa de Xuxa. Disse ser contínuo da Editora Bloch, que publicava as revistas Manchete, Desfile e outras, e que seus chefes estavam à procura de modelos. Ele se ofereceu para levar uma foto de Xuxa. Dias depois, ela foi chamada para um teste, mas a oportunidade não foi bem recebida na família, exceto por sua mãe. “Ela brigou com o restante da minha família, porque alguns disseram que, se eu fosse modelo, ia virar prostituta, ou engravidar, ou me drogar”, diz Xuxa. “Minha mãe respondeu que, se eu me prostituísse ou drogasse, ela cuidaria de mim. Se eu ficasse grávida, cuidaria do meu filho. Eu me lembro de ela falar: ‘Conheço a filha que tenho, e sei que nada disso vai acontecer.’”
No dia do teste, Alda foi com Xuxa até Copacabana, onde uma Kombi da Editora Bloch aguardava a jovem para levá-la até a Barra de Tijuca para a sessão de fotos. Alda não foi autorizada a ir junto. Um produtor pediu que ela assinasse a autorização para as fotos e deixasse a menina ir sozinha. Alda resistiu, mas Xuxa tranquilizou a mãe, que acabou assinando o documento. “Eu entrei na Kombi. Minha mãe sabia que não poderia me proteger o tempo todo e que precisava confiar em mim. Mas doeu tanto!”, diz a apresentadora. “Quando voltei para casa, minha mãe contou que tinha acendido uma vela para que corresse tudo bem.”
Nos estúdios de fotos, Xuxa era chamada de “menor”: “Mandem a menor entrar!, peçam pra menor se maquiar”, falavam. Quando Alda não podia acompanhá-la, o irmão Bladimir, maior de idade, ia junto, para assinar a autorização. Pouco a pouco, Xuxa foi ascendendo na carreira de modelo. Fazia editoriais de moda para revistas e catálogos, posava e desfilava para grifes e participava de concursos de beleza. Às vezes, os fotógrafos pediam para ela fazer “cara de tesão”. Xuxa se tornou um símbolo sexual quando ainda era virgem.
Em 1980, Xuxa fez amizade com uma colega de trabalho que tinha uma história muito parecida com a sua. Luiza Brunet nasceu em Itaporã, no interior de Mato Grosso do Sul e, aos 9 anos, se mudou com a família para o bairro de Inhaúma, também na Zona Norte do Rio. “Aos 12 anos, saí de casa para trabalhar como empregada doméstica. Fui abusada na casa de meus patrões e não falei sobre isso para meus pais porque eu tinha medo da reação deles”, recorda Brunet. As duas modelos se conheceram durante um ensaio fotográfico. “Eu me lembro de ver pela primeira vez aquela garota bronzeada, descolada, divertida. Xuxa e eu ficamos amigas muito rápido.”
Elas formaram uma dupla, indicando trabalhos uma para a outra. Também iam juntas à praia. Gostavam de pegar Sol sem a parte de cima do biquíni para não ficar com a marquinha. Um dia, Xuxa e Brunet fizeram topless e adormeceram na praia. Acordaram cercadas por homens que as observavam. Brunet, um ano mais velha e mais impetuosa, botou os folgados para correr. “Somos de uma época em que já havia liberdade com o corpo, não tínhamos problema em mostrá-lo”, afirma Brunet. “Mas isso nos deixava mais vulneráveis aos assédios. Não havia essa discussão sobre o respeito ao nosso corpo no ambiente de trabalho, o que só foi ganhar força recentemente, com o movimento #MeToo.”
Restava a elas ficarem atentas aos assediadores e avisarem uma à outra sobre os cuidados a tomar com esse ou aquele homem. “Já me neguei a fazer um ensaio porque o fotógrafo era assediador. A gente chamava de tarado. Xuxa, assim como eu, sofreu abusos, e isso nos deixa mais conscientes e duras”, diz Brunet. “Já teve momentos em que ela me defendeu e em que eu a defendi. Nunca deixamos de nos posicionar quando necessário diante desses profissionais. Mas também havia represália a quem recusava as investidas. Vi muitas garotas deixarem a profissão por causa disso.”
Xuxa e Brunet logo entraram para o grupo das modelos mais requisitadas do país. Tinham acesso direto a Adolpho Bloch (1908-95), o dono da editora, e escolhiam os trabalhos fotográficos que queriam fazer. Em dezembro de 1980, elas foram convidadas a posar ao lado de Pelé para uma capa da Manchete. No ensaio, Pelé, de 40 anos, jogou charme primeiro para Brunet que, casada, deu-lhe uma invertida. Depois, cortejou Xuxa, que tinha 17. Foi o comecinho da relação dos dois. Naquele ano, ela foi capa de mais de cem revistas.
Em seu livro de memórias, Xuxa diz que foi muito traída por Pelé, mas que era apaixonada por ele. Foi a pedido do jogador que ela aceitou um trabalho que viraria um fardo em sua vida: atuar no filme Amor Estranho Amor, do diretor paulista Walter Hugo Khouri (1929-2003). Pelé conhecia os produtores do filme e convenceu Xuxa, então com 19 anos, a fazer a prostituta Tamara, que na trama tem 16 anos e seduz um adolescente de 12 anos (interpretado por Marcelo Ribeiro, da mesma idade do personagem). O filme, com Vera Fischer e Tarcísio Meira no elenco, ganhou prêmios e teve boa recepção crítica. Espertamente, os produtores botaram uma foto de Xuxa nua no cartaz, mesmo ela não sendo a principal personagem, para se valerem da fama da modelo e namorada de Pelé. O filme foi lançado em 1982.
No mesmo ano, Xuxa apareceu nua pela primeira vez na Playboy, na edição de dezembro. A chamada de capa dizia “As fotos que Pelé quase proibiu” e citava sua irmã Maruska (Mara Rúbia), que foi fotografada no mesmo editorial. Xuxa foi divulgar a revista em um programa de entrevistas na TV Bandeirantes e chamou a atenção do diretor Maurício Sherman (1931-2019). Quando ele se transferiu para a TV Manchete, do grupo de mídia de Adolpho Bloch, procurou Xuxa e a convidou para apresentar o Clube da Criança. “Falou que eu tinha a sensualidade da Marilyn Monroe, o sorriso da Doris Day e uma coisa do Peter Pan”, diz Xuxa. Ela achou, inicialmente, que não ia dar certo ter como apresentadora de programa infantil uma modelo que havia posado nua. Além disso, sua carreira estava bombando no exterior, como contratada da Ford Models. Porém, como gostava de crianças e de assumir riscos, acabou aceitando o convite.
Nas primeiras gravações, ninguém sabia como lidar com uma modelo cercada por crianças. Botaram Xuxa para ler livros infantis do escritor Pedro Bloch, primo do dono da emissora. Ela olhou para as crianças e disse: “Vocês não estão gostando, não é? Tá chato, vamos fazer outra coisa.” Os editores se desdobravam para cortar essas frases inesperadas do programa, mas Sherman deixava rolar. Dizia que o segredo de Xuxa era sua espontaneidade.
A fim de tornar o programa mais dinâmico, ela teve a ideia de levar para o palco brincadeiras simples de sua infância, como pular corda e fazer a dança das cadeiras. Quando Xuxa pediu um cenário novo, um camarim e algumas melhorias no programa, Sherman indicou que ela falasse com a secretária dele, Marlene Mattos, uma maranhense meio taciturna, mas conhecida por seu profissionalismo. A secretária ouviu as demandas de Xuxa e se comprometeu a resolvê-las. Mas não quis estreitar as relações de trabalho – o que só ocorreu mais tarde, quando a nova apresentadora disse que estava ali para aprender.
As crianças faziam uma grande zoeira durante a gravação. Para ajudar a controlá-las, a emissora contratou uma ajudante de palco, a adolescente Andréa Veiga – a primeira “paquita” da Xuxa. Paquito era o nome de um papagaio que fazia parte do programa, e a apresentadora adotou a versão feminina para suas auxiliares. Enquanto a imprensa acusava Xuxa de não ter tato com crianças, a audiência disparava. A Rede Globo logo abriu seus olhos, e convites para mudar de emissora começaram a chegar aos ouvidos de Xuxa. Mas ela resistia, por causa da amizade com Adolpho Bloch. “Minha relação com meu pai nunca foi muito boa, e eu tinha o seu Adolpho como um pai, uma família”, diz ela.
Um dia, a apresentadora fez uma lista de melhorias para seu programa na Manchete: cenário novo, pompons novos para as crianças agitarem e brinquedos diferentes das revistas em quadrinhos da Editora Bloch que estavam acostumadas a receber. A lista chegou ao dono da emissora, que disse não ter dinheiro para tanto. Foi a dica para Xuxa aceitar uma reunião com o todo-poderoso da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. “A Manchete começou a crescer de audiência no horário da Xuxa. Eu quis saber a razão e pedi ao Mário Lúcio Vaz (1933-2019) que assistisse ao programa por uma semana e me desse uma opinião”, conta Boni à piauí. “Ele disse que eu deveria ver a Xuxa porque ela era excelente. Vi e adorei o jeito como ela se relacionava com o público infantil. Não era coisa de adulto falando com criança e nem era adulto imitando criancinha. Era natural. Ela falava de igual para igual.”
Boni deu o.k. a todos os pedidos de Xuxa, mas recusou um deles: que o programa levasse o nome dela. Disse que, na Globo, o único apresentador autorizado a ter seu nome no programa era o Chacrinha. “Então, eu respondi que estava feliz na Manchete e fui embora”, recorda Xuxa. “No dia seguinte, o Boni me ligou e disse: Xuxa Xou ou Xou da Xuxa? Saí da Manchete triste. Seu Adolpho me tratava como filha. Mas ele disse: ‘Vai, minha filha, lá você vai poder crescer.’”
Depois de dois anos e meio na Manchete, ela foi para a Globo – e levou Marlene Mattos. Começava o novo episódio da história de um dos maiores fenômenos da tevê. Uma história protagonizada por mulheres.
A Globo idealizou primeiro um cenário sóbrio, em tons pastel, onde as crianças ficariam em um auditório, distantes da apresentadora. Xuxa gravou um piloto e detestou aqueles protocolos do chamado “padrão Globo de qualidade”. Lembrou do universo colorido dos gibis da Turma da Mônica e pediu ajuda para o desenhista Mauricio de Sousa. Ele enviou seu braço direito, Reinaldo Waisman, para desenhar o cenário que a Xuxa tinha em mente. “Quando eu era criança, tinha o Capitão Aza, um super-herói com uma espaçonave. Queria chegar ao estúdio dentro de uma”, diz Xuxa. “Mas queria um rosinha igual ao carro da Penélope Charmosa na Corrida Maluca. Queria um arco-íris e uma boca desenhada no chão, onde eu ia dizer: ‘Beijinho, beijinho, tchau, tchau’!” Ela também queria um Sol enorme, para desejar bom-dia quando descesse da nave, e muitos brinquedos espalhados pelo palco, como se fosse um parque. “O Reinaldo desenhava e eu pintava junto com ele as cores que tinha na minha cabeça.”
Xuxa levou o seu projeto para o Boni, e ele aprovou. O Xou da Xuxa estreou em 30 de junho de 1986. A apresentadora tinha 23 anos. Marlene Mattos, então com 36 anos, assumiu a produção executiva – no segundo ano do programa, ela se tornaria diretora-geral.
O Xou da Xuxa ocupava a metade do horário matutino e caiu no gosto da criançada. Seis meses depois, devido ao sucesso comercial e de audiência, passou a ocupar todo o horário da manhã – das oito ao meio-dia, de segunda a sábado. Tinha gincanas, números circenses e musicais, desenhos animados e sorteios de brinquedos. Tudo cheio de patrocinadores do ramo do vestuário, de brinquedos e produtos alimentícios. O número de paquitas subiu para 4, depois 6 e chegou a 8 garotas que cantavam e dançavam com Xuxa. Uma das apostas da Globo era a gravação de um LP com o nome do programa, e foi então que Xuxa encontrou uma figura paterna para substituir Adolpho Bloch: o diretor Mário Lúcio Vaz. “Ele me falou que as pessoas na Globo não botavam fé em mim e que faziam apostas de que o disco não chegaria a 100 mil cópias”, diz Xuxa. “Um dia ele me ligou e falou: ‘Não me faça perder dinheiro, estou apostando em você.’”
Lançado em julho de 1986, o álbum Xou da Xuxa chegou à marca de 2,5 milhões cópias – um marco no mercado fonográfico brasileiro. Xou da Xuxa 3, lançado em 1988, com o hit Ilariê, entrou para o Guinness Book, o livro de recordes, como o disco infantil mais vendido do mundo, com a marca de 3,2 milhões de cópias. Os sete discos da série Xou da Xuxa venderam ao todo mais de 14 milhões de cópias. “A naturalidade foi seu grande trunfo, permitindo uma comunicação imediata não só com os baixinhos, mas também com os grandinhos. E o programa tinha uma produção jamais vista em infantis. Isso ajudou, mas o segredo do fenômeno Xuxa foi ela mesmo”, diz Boni.
O sucesso da apresentadora se espalhou também para o cinema. Xuxa levou 5 milhões de pessoas para assistir ao filme Lua de Cristal, dirigido por Tizuka Yamasaki, uma das maiores bilheterias do cinema no Brasil, na década de 1990. Além de diretora do programa televisivo, Marlene Mattos se converteu em empresária e cuidava de todos os projetos de Xuxa. Parecia que as duas tinham o toque de Midas, capazes que eram de lotar estádios e cinemas, vender milhões de discos e licenciar mais de quarenta produtos.
Com o sucesso, chegaram as críticas. Uma delas era sobre o excesso de merchandising nos programas infantis, sobretudo num período de hiperinflação no país. “Xuxa anuncia uma série interminável de produtos todas as manhãs”, escreveu o jornalista Maurício Kubrusly em sua coluna na revista Contigo. Outra crítica era quanto às roupas que ela usava, consideradas inadequadas. Em entrevista ao programa Conversa com Bial, em maio de 2020, Xuxa disse que nunca foi sua intenção sexualizar as crianças e que vestia o que era tendência na época, já que também trabalhava como modelo.
A terceira crítica era sobre Xuxa e suas paquitas, todas no padrão brancas-louras-olhos-claros num país mestiço. Foi justamente isso que o jornal The New York Times evocou em uma reportagem de 1990: “O ídolo do Brasil é uma loura e algumas pessoas perguntam por quê” No artigo, o jornalista James Brooke dizia que a imagem de Xuxa e das paquitas não correspondia à de um país que na época tinha 43% de pardos e negros entre a população de 140 milhões de habitantes (hoje os brasileiros são 214 milhões e 54% se identificam como negros). E citou uma reflexão do artista e ativista negro Abdias Nascimento: “[Isso] Faz com que as pessoas se desprezem por não terem o mesmo modelo de beleza. Você tem garotinhas negras que só querem bonecas louras.”
Fã de Xuxa, a cearense Maria Julianna Formiga Moura Sinval sonhava na infância em conhecer a apresentadora e ter os produtos com a marca dela, o que seus pais não podiam comprar. Também colecionava fotos dela que saíam na imprensa. Anos depois, formada em jornalismo, escolheu Xuxa como tema de seu trabalho de mestrado em comunicação e semiótica na PUC-SP. No estudo O ‘X’ da Questão: O Fenômeno Xuxa e a Construção das Crianças com o ‘X’, Sinval quis entender o que, na imagem da apresentadora, tanto fascinava o público. Chegou à conclusão de que a imagem dela era como um suporte que atraía um público de diferentes faixas de idade, gênero e contexto social. “A Xuxa atraía o olhar da criança, obviamente, mas também da mãe que admirava sua beleza e do pai, cujo desejo era despertado por aquela imagem que era também um símbolo sexual”, diz Sinval. Ela recorre a um conceito para explicar todo esse processo: “iconofagia”, ou seja, imagens que nos devoram.
Os fãs da Xuxa acompanhavam cada passo da apresentadora em aeroportos, hotéis e entrada e saída das gravações. Em 1989, com 15 anos, Vanessa Alves costumava ficar horas no telefone, tentando conseguir uma senha de entrada no programa Xou da Xuxa. Ela se recorda da primeira vez que entrou no cenário mítico. A voz de Marlene Mattos ecoou no estúdio avisando às crianças de que havia paramédicos a postos, e elas poderiam recorrer às paquitas caso quisessem ir ao banheiro. “Lembro do cheiro de veludo do uniforme das paquitas e do perfume Azzaro masculino que a Xuxa usava. Quando a nave espacial descia, ela passava e deixava aquele perfume”, diz Alves. Ao final das gravações, ela se aglomerava com outras meninas na saída do estúdio para ganhar um sorriso, um aceno de Xuxa. Sua presença constante no programa chamou a atenção de Mattos, que lhe deu passe livre para as gravações. Em casa, Alves gravava no videocassete os programas e anotava criteriosamente a roupa da apresentadora e outros detalhes. Por causa de sua prodigiosa memória sobre o programa, acabou sendo contratada, nos anos 1990, para cuidar do acervo de imagens da Xuxa Produções.
Xuxa foi ficando grande demais para o Brasil e até para a Globo. Marlene Mattos, então, abriu caminho para fora do país. Começou com a distribuição de um disco gravado em espanhol. Depois, Xuxa foi convidada a trabalhar na Argentina. Gravava, em espanhol, uma série de programas de uma vez. Os episódios eram exibidos um por dia e distribuídos para dezessete países da América Latina, onde ela repetiu o sucesso do Brasil. Xuxa passava 15 dias na Argentina gravando os programas e outros 15 dias gravando o programa no Brasil. Também gravou um programa na Espanha, exibido no horário nobre.
Com um programa diário no Brasil, e todas essas tarefas no exterior, além da agenda de shows, Xuxa ganhava muito dinheiro. Mas se sentia exausta. “Depois de um tempo de parceria de trabalho, Marlene foi dizendo: ‘Eu faço isso, isso e isso.’ Eu trabalhava demais, ficava cansada para me envolver em cada detalhe da minha carreira e do programa”, diz Xuxa. “Quando vi, ela estava tomando conta da minha vida no geral. A ponto de eu não saber nem o que eu estava assinando. Ela falava: ‘Assina aqui, que isso é um livro.’ Eu dizia: ‘Tá bom’, e assinava sem ler. Confiava e pronto. Não tinha cabeça para ficar lendo papéis com linguagem de advogado. Com isso eu me estrepei muito. Dei autoridade e espaço para ela.”
Xuxa chegou a sofrer uma tentativa de sequestro em 1991. Os criminosos planejavam sequestrá-la na saída do Teatro Fênix, no Rio, mas tiveram seus planos frustrados por dois policiais militares. Também por causa disso, a apresentadora pensou em se mudar para o exterior e levou adiante seu projeto de investir na carreira internacional. O Xou da Xuxa acabou em dezembro de 1992. O formato, muito copiado, havia se desgastado, e os compromissos internacionais da apresentadora a impediam de gravar um programa diário na Globo, com a qual ela ainda mantinha um contrato.
Houve grande comoção entre os fãs com a despedida da atração infantil, cuja última gravação foi marcada por um episódio dramático. Marlene Mattos colocou no palco o pai de Xuxa, Luiz Floriano, sem que a filha soubesse antecipadamente. Fazia cinco anos que os dois não se falavam. Deu-se ali uma das cenas mais constrangedoras da tevê brasileira. Ao ver o pai, a apresentadora chorou, e ele se aproximou para abraçá-la. Mas Xuxa, muito abalada, recusou o carinho. Ela havia cortado relações com Luiz Floriano depois que um caso extraconjugal dele levou a sua mãe a se separar dele. Ao Jornal do Brasil, Mattos disse na época: “Um dia, ela vai me agradecer.” Seis anos depois, em 1998, Xuxa recebeu o pai em seu programa infantil, deu-lhe um abraço e, de mãos dadas com Luiz Floriano, relembrou o episódio: “Naquele momento eu pensei: ‘Não, eles não trouxeram o pai. A Marlene não pode ter feito isso, ela sabia o quanto eu estava doída pela história’.”
Sem o compromisso de uma atração diária na Globo, Xuxa e Mattos decidiram encarar o mercado norte-americano em 1993. Foi acertada a gravação de um programa em Los Angeles. A apresentadora tinha dois meses para aprimorar o seu inglês, que ela vinha estudando junto com espanhol. Nos Estados Unidos, passava o dia todo acompanhada de duas professoras norte-americanas, que se revezavam ao seu lado.
O programa se chamaria Xuxa, uma pronúncia difícil para os norte-americanos, e seria exibido pelo Family Channel, canal fundado pelo pastor conservador e empresário Pat Robertson. Ao entrar no estúdio para gravar o programa-piloto, Xuxa foi falar com o dono do canal e disse que tinha posado nua para revistas masculinas, feito um filme que não era considerado “para a família” e que no Brasil, apesar de ser apresentadora infantil, era vista como um símbolo sexual. “Despejei tudo e perguntei se eles ainda teriam interesse em trabalhar comigo”, diz Xuxa. “Surpreendentemente, ele falou: ‘Esse é o seu passado. Eu acabei de ver o seu presente. Você entrou e antes de qualquer coisa cumprimentou as crianças. É com essa profissional que a gente quer trabalhar.” Nos Estados Unidos, onde a tevê estava muito mais adiantada a respeito da diversidade racial, foi imposta à equipe brasileira uma paquita negra, a única: Natasha Pierce.
Em 1993, Xuxa foi convidada para o Good Morning America, um talk show. No camarim, sua cabeça começou a doer e seu braço parecia travado. Naturalista, ela evitava tomar remédios, mas a dor era tamanha que pediu uma medicação à sua equipe. “Eu não ia conseguir raciocinar e falar em outra língua com aquela dor.” Os apresentadores do programa anunciaram sua presença. Vendo tudo do camarim, Xuxa começou a babar e desmaiou. Chamaram uma ambulância e a levaram para o hospital. Ela foi diagnosticada com um problema na coluna e crise de estresse. A apresentadora gravou nos Estados Unidos, em inglês, 65 episódios do programa Xuxa, que teve uma audiência apenas razoável. Terminada a temporada, retornou ao Brasil, encerrando a incursão na tevê norte-americana.
Xuxa passou a concentrar sua atenção no Brasil e na América Latina. Tinha um programa infantil na Globo nas manhãs de sábado, o Xuxa Park. E ganhou outro, para jovens, o Planeta Xuxa, no sábado à tarde. Também dirigido por Mattos, esta atração chegou a atingir a média de 30 pontos de audiência e mostrou uma apresentadora mais madura e capaz de falar para pessoas de todas as idades. O sucesso levou o programa para o domingo, fazendo de Xuxa a única mulher a participar da sangrenta disputa por audiência no dia mais competitivo da televisão.
As coisas iam muito bem na carreira, mas na vida pessoal, não. A autoridade de Mattos sobre a vida da apresentadora só aumentava. “No início da minha parceria de trabalho com Marlene, eu dava ideias para o programa e ela executava. Depois de um tempo, ela centralizou as decisões. Passou a impor o que queria”, diz Xuxa. “Como eu trabalhava demais, com todos os programas para gravar, não tinha tempo para me envolver. Fui deixando. Quando vi, ela estava tomando conta também da minha vida. Eu não podia sair do meu quarto no hotel, se eu abrisse a porta, tinha um segurança lá fora. Me senti muito sozinha e presa.”
Xuxa diz que foi o excesso de controle que levou ao fim a sua relação com o piloto Ayrton Senna. “Quando ele chegou na minha vida, eu me apaixonei. Mas tive que escolher entre ele e o meu trabalho. Escolhi o trabalho, achando que nos reencontraríamos mais para a frente.” A apresentadora chegou a ouvir Mattos dizer que se o namorado entrasse por uma porta, ela sairia por outra. “Ela dizia isso porque, se eu me apaixonasse, me distanciaria do trabalho. Virei uma marionete. Mas deixo bem claro que não fui forçada a permitir isso. E não foi de uma hora para outra. Muita gente me pergunta como deixei isso acontecer, mas foi acontecendo. Eu sou uma pessoa que confia muito nos outros.” Xuxa e Senna ficaram juntos um ano e meio, entre 1988 e 1989. Por mais dois anos tiveram encontros esporádicos, até ele engatar um relacionamento com a então modelo Adriane Galisteu.
Quando se aproximava dos 35 anos, Xuxa quis realizar o sonho de ser mãe. Ela estava namorando o modelo Luciano Szafir, que disse que só teria um filho se os dois se casassem. Mas Xuxa não queria casar, porque nunca gostou da pressão produzida por um relacionamento sacramentado pela lei. Chegou a ir aos Estados Unidos para conhecer melhor o método de fertilização in vitro, para o caso de fazer uma inseminação com esperma de um doador anônimo. Também fez exames, que constataram que ela estava saudável para ter um filho, pelo método natural ou não.
Mattos então decidiu fazer uma reunião para avaliar o impacto de uma gravidez na carreira da apresentadora. “Se dependesse do resultado dessa reunião, eu não teria engravidado, porque chegaram à conclusão de que, se eu engravidasse, poderia ficar feia e dar mais atenção à criança do que ao meu trabalho.”
Xuxa bateu o pé. Em dezembro de 1997, apareceu de mãos dadas com Szafir no Domingão do Faustão e anunciou, ao vivo, que estava grávida: “A partir de ontem, quando recebi a notícia, não sou mais uma pessoa sozinha. Aconteça o que acontecer, eu vou ter sempre uma pessoa que vai ser minha.” Szafir havia, finalmente, concordado em ser pai sem se casar. Mattos foi convidada para ser a madrinha da criança.
Tudo em torno da gravidez se tornava assunto nacional. O então ministro José Serra, da pasta da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso, resolveu criticar a apresentadora, no Jornal Nacional, quando a filha de Xuxa já havia nascido, em 1998. “A pautação da produção independente estimula meninas de 12, 13 anos a terem filhos. Fico imaginando essa experiência de produção independente da Xuxa com a Sasha, quantas mães adolescentes precoces terá estimulado no Brasil?”, disse Serra. Xuxa respondeu por telefone na mesma edição do telejornal. “Acho sua declaração, ministro José Serra, injusta e demagógica. Mau exemplo é o que vejo todo dia no noticiário: aumento de preços de remédios, plano de saúde que não respeita o cidadão e hospitais sem médicos”, disse ela. “Eu não me casei, mas tenho condições de criar e educar minha filha, o que não acontece com a maioria do nosso povo. Sabe por quê? Porque eles são vítimas de políticos que preferem dar entrevistas de impacto ao invés de tomar decisões que melhorem a vida das pessoas. Ministro, acabei de ser convidada para fazer a campanha de vacinação, o senhor sabia? Estou à disposição.”
A chegada de Sasha Meneghel, em 28 de julho de 1998, foi anunciada com uma reportagem de dez minutos no Jornal Nacional. A menina mudaria tudo na vida de Xuxa, a começar pela reconciliação que ela buscou com o pai, para que Sasha pudesse crescer na companhia do avô.
Em suas viagens aos Estados Unidos, Xuxa notou que havia uma infinidade de produtos audiovisuais educativos para crianças em idade pré-escolar. “Voltávamos com a mala cheia de vídeos para a Sasha. Xuxa assistia com a filha e percebia como ela se desenvolvia com aqueles vídeos”, diz Vanessa Alves, que costumava acompanhar a apresentadora nas viagens. Xuxa pensou em fazer produtos similares para as crianças brasileiras e chamou Alves para ajudá-la. Perto da chegada do ano 2000, as duas começaram a pesquisar conteúdo audiovisual pré-escolar em todo o mundo, ensinando o alfabeto, os números e as cores para crianças muito pequenas. Mattos, porém, tinha outros planos: pretendia deixar de trabalhar para crianças e conduzir a carreira de Xuxa na direção do público adulto. Nos intervalos da agenda definida pela diretora, a apresentadora se reunia com Alves para elaborar o projeto, que se chamaria Xuxa Só para Baixinhos.
Em sua gravadora, a Som Livre, a apresentadora não encontrou apoio ao projeto logo de início. “Mas Xuxa disse para continuarmos e que bancaria do próprio bolso. Mandou contratar professores e pedagogos para analisar cada detalhe do material”, lembra Alves. Por fim, a Som Livre lançou o projeto audiovisual Xuxa Só para Baixinhos, com grande sucesso: vendeu 500 mil cópias do CD com vídeo, 250 mil cópias da versão em DVD, foi indicado seis vezes ao Prêmio Grammy Latino e venceu duas.
Quando Fausto Silva entregou a Xuxa um disco de platina duplo pelas vendagens do projeto, ela o passou para as mãos de Vanessa Alves – que também estava no palco do programa, com o traje da personagem Ratinha Rosa –, indicando que a funcionária também era responsável pelo sucesso. Uma nova dupla havia surgido. Mas Alves conta que Marlene Mattos logo quis diminuir a participação dela no projeto. “Começaram a se meter nas decisões das músicas. Marlene dizia: ‘Manda pra mim que eu vou escolher e você manda para Xuxa depois.’ Mas a Xuxa falava: ‘Vamos fazer isso juntas.’”
A apresentadora decidiu voltar para as manhãs diárias da Globo, mas agora com um programa de conteúdo educacional. Mattos se recusou a seguir por esse caminho. Elas não estavam afinadas nos objetivos profissionais, mas havia outro motivo para a discórdia. “Eu não queria que a minha filha me visse nessa condição de marionete, sendo mandada o tempo todo”, diz Xuxa. “Ela levantava a voz comigo sem parar. Ela nunca fez, mas se levantasse a voz para a Sasha como fazia comigo, eu voaria pra cima dela. Vi que não dava mais. Minha paixão por trabalhar pra criança era nítida. Marlene deixou claro que não queria. Eu falei: ‘Então, estou no lugar errado e com a pessoa errada.’ Dei um basta.” Era julho de 2002. Pouco antes da ruptura definitiva, Mattos demitiu Alves. Mas Xuxa a recontratou em seguida.
Rompida a parceria profissional e a amizade de vinte anos, Xuxa e Marlene ficaram outros vinte anos sem se falar. Em setembro do ano passado, as duas se reencontraram nas filmagens de um documentário sobre Xuxa dirigido por Pedro Bial, para a Globoplay. O reencontro foi tenso. Xuxa disse que chegou à gravação dizendo que não se desculparia por nada. “Nesse documentário teve um momento que eu falei para ela: ‘Você sempre me dizia que eu era o corpo e você, a cabeça.’ E ela respondeu que era eu que costumava dizer isso. Eu disse: ‘Sim, mas era você que me dizia isso. Me fazia pensar assim’”, conta a apresentadora. “A mentira para ela é muito fácil. O que eu estou falando, tenho prova. E se falar para ela ‘Você falou isso’, ela vai dizer: ‘Essa é a tua verdade.’”
Em 2018, Xuxa afirmou em uma entrevista que poderia ter um patrimônio ainda maior, se não tivesse sido roubada por pessoas que trabalhavam com ela. Mattos registrou um boletim de ocorrência, mas o Ministério Público arquivou o caso em 2021. Na época, Mattos declarou à revista Veja: “Eu não pegava em dinheiro, eu assinava contratos e cheques e, às vezes, dependendo do valor, ela assinava junto.[…] Agora é com a Justiça. Xuxa que prove que eu a roubei. Sempre fui discreta e vou continuar sendo.” A piauí procurou Marlene Mattos, hoje com 73 anos, para uma entrevista, mas ela não respondeu. Segundo uma estimativa do UOL, baseada em levantamento da revista Forbes, o patrimônio da Xuxa, hoje, seria de cerca de 1,3 bilhão de reais, resultado de ganhos como artista, em investimentos e franquias.
Assim que oficializou o rompimento com Mattos, Xuxa disse a Alves que queria ir ao cinema. “Lembro que eu perguntei: ‘Mas assim, sem seguranças?’ Ela queria sair sem dar satisfação, sem ter alguém anotando a hora em que saía. A partir daí, a Xuxa começou a viver mais a vida de fato.”
O novo projeto para a Globo, chamado Xuxa no Mundo da Imaginação, durou apenas dois anos. Xuxa testou outros formatos infantis até 2005, sem êxito, e voltou a fazer programas para a família, que não tiveram a repercussão de antes. Em 2014, saiu da Globo, contra a sua vontade, e no ano seguinte assinou com a Record TV. A audiência do programa, porém, não ficou muito acima da média da emissora. Em janeiro de 2021, ela decidiu não renovar seu contrato com a Record.
Uma das primeiras vezes em que Xuxa usou as redes sociais foi para fazer uma postagem no Twitter, em 2009. Vanessa Alves a convenceu a se aproximar do universo das redes, que ganhava força. A apresentadora estava nas filmagens de Xuxa e o Mistério de Feiurinha, em que atuava com a filha, e pediu para Sasha escrever algumas palavras em seu perfil. A menina, com 11 anos, cometeu um erro ortográfico, e Xuxa se deparou com o pior das redes sociais, recebendo centenas de ataques. Xuxa se despediu do Twitter com a seguinte mensagem: “Fui, vcs não merecem falar comigo nem com meu anjo”.
Novas críticas vieram depois de uma declaração polêmica dela numa live promovida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2021. Ela é vegana desde 2018 e posta com frequência no Instagram conteúdos que expõem os maus-tratos cometidos contra animais. Na live, disse que era contra testes da indústria farmacêutica em animais. Mas foi além: defendeu que presidiários fossem usados nesses testes, no lugar dos animais. “Existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas e estão aí pagando seus erros para sempre em prisões, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”, disse ela, na live. A fala foi duramente atacada por ativistas dos direitos humanos e outras pessoas. No dia seguinte, Xuxa gravou um vídeo se desculpando. “Estou aqui pedindo desculpas para todos vocês. Não usei as palavras certas”, afirmou. “Me veio primeiro à cabeça uma pessoa que estupra uma criança, que fica anos na cadeia e que poderia pensar em ajudar outras pessoas de alguma maneira. É errado? É errado. Me expressei mal? Me expressei mal.” E completou: “Eu errei, me julgaram certo.”
Depois que Jair Bolsonaro foi eleito, Xuxa, que durante sua carreira sempre evitou posicionamentos políticos, passou a se manifestar nas redes contra o então presidente. Criticou a postura antivacina dele, a decisão de zerar a taxação sobre importação de armas e o ataque feito por Bolsonaro à deputada Maria do Rosário (PT-RS), ao afirmar que ela não merecia sequer ser estuprada. Xuxa o chamou de machista, preconceituoso e ignorante. Chegou a dizer aos seus próprios seguidores: “Se você apoia Bolsonaro, deixe de me seguir.”
Durante o governo Bolsonaro, ela lançou um livro infantil com temática queer, intitulado Maya: Bebê Arco-Íris (Globo Livros). Maya é o nome da filha de Vanessa Alves e sua mulher, Fabianne Geledan. Xuxa é madrinha da criança e resolveu contar no livro a história de uma menina-anjo que escolhe vir à Terra para ser criada por duas mães. “Xuxa nos apoiou o tempo todo, e disse: ‘A Maya veio para a família certa, para a madrinha certa’. Ela sabe que não seria fácil para a gente porque vivemos num país conservador”, diz Alves.
O livro provocou a sanha de bolsonaristas, evangélicos e conservadores. A deputada Carla Zambelli (PL-SP) escreveu em uma rede social: “O alvo dessa teia de destruição de valores humanos não é mais você. Essa mira está apontada para a mente das nossas crianças!” Em um de seus programas “mundo cão”, o apresentador Sikêra Júnior, próximo da família de Bolsonaro, disse: “Ela vai lançar agora um livro LGBT para criança. Cuidado com o teu filho! Cuidado com a tua filha!”
Perto da eleição de 2022, Xuxa decidiu que não iria apoiar nenhum candidato, mas se colocaria contra Bolsonaro. “Eu tinha que me posicionar contra por causa de todas as falas dele sobre estupro contra Maria do Rosário, que se tivesse um filho gay preferia que nascesse morto, que a filha nasceu de uma fraquejada, e tudo o que ele diz sobre negros e indígenas.” Ainda no primeiro turno, ela fez o L com os dedos em suas redes sociais, vestida de vermelho. Na foto, acrescentou a legenda: “Primeiro turno. Amor, respeito, democracia.” Em meados de outubro, Bolsonaro disse em um podcast que, passando de motocicleta por umas meninas adolescentes, “pintou um clima” e ele voltou, sugerindo que as garotas estavam se prostituindo. Xuxa foi dormir angustiada, e acordou se sentindo ainda pior. Quis gravar um vídeo e consultou Tatiana Maranhão, sua amiga, assessora de imprensa e ex-paquita, e o namorado, Junno Andrade. “A Tati disse que, se aquilo me faria sentir melhor, era para eu fazer, mas pediu para eu tomar cuidado, porque as pessoas poderiam ser cruéis nos comentários.”
Xuxa entrou em seu estúdio na casa da Barra da Tijuca, ligou a câmera e disse:
Estou aqui como apresentadora, como filha, como mulher e, principalmente, como mãe. […] Por volta de 4 anos de idade, eu sofri meu primeiro abuso. […] Com uns 13 anos de idade, um velho me encurralou numa parede. […] Quando fiz 40 e poucos anos, resolvi falar para ajudar outras mulheres, crianças, adolescentes, que também sofreram abuso e se calaram. […] Sempre me senti culpada por ser grande, por chamar atenção, por ser bonitinha aos olhos dos velhos, dos homens que se aproximavam de mim. E a nossa cultura, ao invés de colocar o dedo na cara desses velhos, culpa as meninas por elas estarem naquele lugar, daquele jeito. […] Nenhuma criança de 13 anos se prostitui, isso é exploração sexual de crianças. […] Estou aqui engasgada, enojada e com raiva que ninguém esteja fazendo nada. […] Você pode me julgar por ter feito um filme de ficção, mas a gente não pode berrar que isto está errado? […] Estou aqui pedindo para você que é mulher, que é mãe, você que é avó, não deixe isso passar em branco. […] Não vote neste homem e não deixe isto por menos.
Quando Lula apareceu vestindo o boné com a sigla CPX, da comunidade Complexo do Alemão, bolsonaristas espalharam falsamente que ele estava exibindo o símbolo de uma facção criminosa. Xuxa procurou o ativista e comunicador Rene Silva, que atua no Complexo do Alemão. “Ela disse que queria comprar um boné do CPX. Mandamos um mototaxista aqui da favela entregar”, conta Silva. Pouco tempo depois, a apresentadora fez uma publicação nos stories usando o boné, falou sobre a informação falsa transmitida por Bolsonaro e divulgou a venda da peça, que seria revertida em cestas básicas para a comunidade. “Ela fez isso sem que eu pedisse. Repercutiu muito ela ter usado o boné e ajudado a desmentir Bolsonaro. Ela se mostrou bem revoltada”, diz Silva. Numa das conversas com ele, a apresentadora contou que gosta muito de funk e pediu para ir num baile da comunidade. “Mas não como Xuxa: como Maria da Graça”, disse ela.
A vitória de Lula foi comemorada por Xuxa em um vídeo gravado na sala de sua casa. Ela apareceu vestindo um chemise longo vermelho, dançando e cantarolando: Tá na hora do Jair/já ir embora… Xuxa tinha 11,6 milhões de seguidores no Instagram. Ao final da campanha presidencial, havia perdido 800 mil. Hoje recuperou, e tem 12,4 milhões de seguidores. Também perdeu amigas, como a ex-paquita e comadre Andréa Faria, que fez um vídeo que desagradou a apresentadora. No vídeo, Faria apareceu com o marido pedindo às empresas que os patrocinassem no Dia dos Namorados, dizendo que era um casal “heterossexual, tradicional e cristão”. As duas romperam a amizade e, depois disso, Faria e o marido escancararam sua adesão ao bolsonarismo, exibindo fotos com o ex-presidente e a deputada Carla Zambelli. A ex-paquita chegou a dizer num podcast que achava que o rompimento era temporário e que Xuxa havia emprestado um apartamento para ela e sua família morarem, e também pagou a escola de suas filhas durante a pandemia. A apresentadora diz que se entrega muito às amizades, mas que, quando decide se afastar de alguém é para sempre. “A pessoa sai da minha vida e eu vou para o outro lado. E, tenha certeza, essa pessoa não existe mais para mim.”
No início de fevereiro, Xuxa foi convidada para ser a primeira embaixadora da campanha de vacinação do governo e se reuniu com a ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, e a primeira-dama, Rosângela Silva, a Janja. Na ocasião, a apresentadora se colocou à disposição para uma campanha contra o abuso sexual de crianças.
Xuxa tinha 49 anos quando decidiu revelar o segredo que a martirizava desde a infância – e resolveu fazer isso em um quadro do Fantástico, chamado “O que vi da vida”. Tomou essa decisão depois de uma amiga de Sasha falar de incômodos parecidos com os que ela enfrentou na infância. A gravação do depoimento ocorreu no dia 17 de maio de 2012, quinta-feira. Um dia depois, Xuxa reuniu a mãe, que já havia sido diagnosticada com o mal de Parkinson e estava numa cadeira de rodas, e os irmãos para contar o que iria ao ar no domingo: a revelação de que ela foi abusada por vários homens na infância e na adolescência. Depois, Xuxa ficou a sós com Alda. “Minha mãe me disse: ‘Onde eu estava que eu não vi isso?’ Respondi que ela estava cuidando dos seus quatro filhos, da casa, de todo mundo. Ela não podia ficar 24 horas comigo.”
Poucas pessoas famosas no Brasil já tiveram a vida tão devassada pela opinião pública quanto Xuxa, mas ela diz que só leva em conta a visão de duas pessoas: sua mãe e sua filha. A apresentadora sempre teve muito medo de decepcioná-las. Por isso, quando Sasha cresceu, Xuxa chamou a filha para conversar. “Eu disse que, antes que algum amiguinho viesse falar sobre as fotos nuas que eu fiz, ela precisava saber por mim. Mostrei as fotos e a reação foi a mais curiosa possível. Ela falou: ‘Teu corpo mudou, né?’ E eu disse: ‘Estou te mostrando, mas não é para criticar, não’”, recorda Xuxa, rindo.
Hoje, a apresentadora fala abertamente sobre as fotos que fez nua e sobre Amor Estranho Amor. Até recomenda que as pessoas assistam ao filme, porque é também uma história de abuso sexual contra menores. Olhando pelo retrovisor, Xuxa se arrepende de ter gastado tanto dinheiro para impedir a exibição do filme. “Meu escritório pagava uma fortuna para o filme não circular. Marlene e meu advogado na época, Luiz Cláudio Lopes Moreira, acharam que era melhor pagar e que isso me protegeria. Hoje penso que devia ter encarado. Não é um filme pornô, como as pessoas falam”, diz Xuxa. “A história é muito maior, é sobre uma menina de 16 anos que foi vendida para um prostíbulo e dada de presente a um político. Mais atual, impossível.”
Outro encontro que ela teve durante o documentário da Globoplay foi com Marcelo Ribeiro, o ator que, quando menino, contracenou com ela no filme. A decisão de proibir a fita prejudicou a carreira dele. “O filme foi renegado por mim e minha equipe, então as pessoas não queriam mais contratá-lo”, afirma Xuxa. “Foi uma decisão errada para ele e para mim.”
Sasha é modelo e formada em design de moda pela Escola de Design Parsons da Universidade New School, em Nova York. Em maio de 2021, aos 22 anos, ela se casou com o empresário e músico João Figueiredo. O casal mora em São Paulo. “Hoje, a Sasha é evangélica, está casada com um rapaz evangélico muito legal. Não bebe, não fuma, é apaixonado pela minha filha. Quando ele está por aqui, está sempre cantando, tocando violão. Minha filha está numa fase muito boa.” Xuxa considera a filha mais bem informada do que ela quando tinha a mesma idade. “Eu era muito boba, uma idiota. Meu mundinho era minha mãe e meus bichos.”
Quando tinha 26 anos, Xuxa consultou a quiróloga Regina Shakti que leu em sua mão que ela teria uma filha aos 35 anos. Quando fez 49 anos, chamou Shakti para ler sua mão diante das câmeras, no programa que tinha na Globo. “Você vai ter um casamento depois dos 50 anos”, disse a sensitiva. Xuxa coçou a mão. “Não me fala isso que me dá bolha”, respondeu. “Não é um casamento normal. É um casamento que te preenche, que te soma”, completou Shakti.
Pouco tempo depois, Xuxa engatou o namoro com Junno Andrade, cantor e compositor que participou do programa TV Xuxa no final de 2012. “Falei para ele que eu era uma pessoa difícil. Sou ariana. Me meto em tudo e sei o que quero.” No fim do ano passado, os dois completaram dez anos juntos. “Junno tem filhos. Já experimentou muita coisa e está seguro do que ele quer”, diz ela. “Eu me apaixonei loucamente pelo pai atencioso que ele é. Se a filha dele ligar vinte vezes, ele atende as vinte. Nunca tive um pai assim. O homem que quero perto de mim, se for bom pai para a filha dele e bom padrasto para a minha, vai ser um ótimo marido.”
Andrade chegou na vida de Xuxa em um período difícil para ela, com as mortes consecutivas do pai, do irmão mais velho e da mãe, o momento mais doloroso. “Se não fosse o Ju, eu estaria bem ferrada. Ele segura muito a minha onda. É um cara alegre, poeta, piadista. Mas, quando alguém fala alguma coisa contra mim, ele fica bravo.”
A partir dos 45 anos, ela começou a perceber o colágeno esvair de seu rosto. Também teve queda de cabelo e notou que os fios ficavam mais e mais ralos. “Me assustei. Pensei: vou ser uma velhinha careca e, por ser branca demais, vou despencar. Não queria nem me olhar no espelho”, diz. “Mas Deus me deu um cara que, no momento da minha vida em que eu me achava feia, ele dizia que eu estava com a perna boa, com a bunda boa. Quando raspei o cabelo, em 2019, ele falou: ‘Minha carequinha.’ Tudo estava bom para ele.” Ela raspou o cabelo num gesto de libertação, quando os fios ralinhos estavam caindo, uma tendência genética em sua família, com o envelhecimento.
Xuxa não está aposentada. Neste ano, a maioria dos seus novos projetos irá para o streaming. Além do documentário dirigido por Pedro Bial, a Globoplay produzirá uma série ficcional sobre a vida de Xuxa, chamada Rainha. Em abril, ela estreia no Prime Video o show Caravana das Drags, um concurso entre drag queens – Xuxa se tornou um ícone gay para sua geração de fãs. Também vai protagonizar uma série infantil na Disney Plus com temática ambientalista e em defesa dos povos originários. E voltará ao cinema no longa Uma Fada Veio Me Visitar, baseado em um livro de Thalita Rebouças.
Em começo de fevereiro, quando conversou com a piauí, Xuxa estava planejando passar o aniversário, no dia 27 de março, em um cruzeiro exclusivo, no qual previa fazer um show para fãs, familiares e amigos. Ela disse que na hora dos parabéns fechará os olhos e pedirá saúde e proteção para sua filha.
Em março, o Grupo Globo não poupou homenagens aos 60 anos de Xuxa. O Xou da Xuxa começou a ser reprisado no Canal Viva – e a apresentadora sabe que pode ser cancelada nas redes sociais por causa do programa. “Mas eram outros tempos”, ela justifica. No programa Altas Horas, apresentado por Serginho Groisman, o aniversário de Xuxa foi comemorado por artistas da nova geração, como a cantora e drag queen Gloria Groove, que revisitaram os antigos sucessos musicais dela. Também foi convidada ao programa Saia Justa, do GNT, onde a cantora Larissa Luz, uma mulher negra, disse à apresentadora: “Quando era pequena, queria ser loira. Eu era sua fã e queria ser paquita da Xuxa. E olhava as paquitas e não me via.” Xuxa respondeu que o programa nos Estados Unidos teve uma paquita negra porque lá a diretora não impediu que isso ocorresse, dando a entender que Mattos teria evitado selecionar garotas negras para o programa no Brasil. Em seguida, disse: “Naquela época, não havia Barbie negra. Na realidade, a gente ofereceu o que as pessoas queriam consumir.” Porém, Larissa Luz demonstrou que existia, sim, um desejo da parte de meninas negras de se reconhecerem no programa por meio de garotas negras. Ao final do debate, a apresentadora Bela Gil, também uma mulher negra, concluiu a discussão, dizendo: “A questão volta para o dinheiro. Por que não tinha paquita negra? Porque paquita loira vende mais.”
Na pandemia, Xuxa pensou seriamente em prestar vestibular para veterinária. A ideia lhe veio à cabeça quando levou Kiko, um shih-tzu, que não estava bem, ao veterinário. Fizeram uma ultrassonografia e identificaram um câncer no cãozinho, que veio a morrer um tempo depois. “Se eu fosse veterinária e precisasse abrir um bichinho para ver o que ele tem, eu ia sofrer no início, mas depois ia me bater aquele sentimento de querer salvar o bicho”, diz Xuxa. “Eu levo jeito para veterinária.”
Outra vez, ela carregou para sua casa de praia em Angra dos Reis uma cadela com bicheira que encontrou abandonada na região. “Lá em casa todo mundo ficou aflito, ninguém queria ver. A cadelinha estava com o osso da cabeça exposto. Botei remédio, tirei as larvas da ferida. Depois levei no veterinário, que deu uma injeção. Não tinha certeza de que ela ia sobreviver, mas botei o nome dela de Esperança. Viveu comigo por muito tempo”, conta. “Me lembro de eu não ter nojo. Só queria salvar aquela vidinha.”
Xuxa chegou a ter 53 cães em seu sítio em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio. “Quero ser uma velhinha de sítio, criando galinha solta e acolhendo bicho abandonado”, diz, sobre seus planos de aposentadoria. Ela chegou a pensar em comprar um sítio na Toscana, na Itália, para morar com Andrade, que ela chama às vezes de “meu velho”. Depois, soube que Bolsonaro cogitava pedir cidadania italiana e aposentou a ideia.
Outro plano para a velhice é não ser uma preocupação para Sasha. “Sei que minha filha tem bom coração, mas não quero dar trabalho para ela. Eu e meu velho prometemos que a gente vai envelhecer juntos, como o casal do filme Diário de uma Paixão, que morre junto, de mãos dadas, para um não ver o outro morrer. A gente quer se amar até o final.”
A apresentadora tem se reaproximado mais dos amigos do passado, exceto os bolsonaristas. “Quando ela se tornou a Rainha dos Baixinhos, era mais difícil ter acesso. Ela era muito cuidada e eu tinha meus compromissos, fomos nos descolando”, diz Luiza Brunet. “Mas nós nos reencontramos, como mulheres maduras, e com o mesmo carinho que tínhamos uma pela outra.” A atriz e modelo passou um Carnaval com Xuxa, na casa de praia da apresentadora em Angra dos Reis. “Em alguns momentos senti a vontade de ficar um pouco sozinha, e uma não invadiu o espaço da outra. Achei isso maravilhoso. Esse tipo de amizade é muito importante.”
Clóvis Marques, o professor do subúrbio que ainda mora no subúrbio, conta que também esteve na casa de Xuxa, sete anos atrás. Como ele é diabético, a ex-aluna preparou um sanduíche vegano. “Ela é a mesma pessoa carinhosa que conheci pequenininha. Ainda tem aquela alegria de garota suburbana.”
Na casa da Barra da Tijuca, há um banco grande de madeira no jardim. Os amigos dizem que, à noite, Xuxa e Junno Andrade costumam se sentar ali. Com a cadelinha Doralice, ela recosta no colo do namorado, enquanto ele dedilha o violão. Os dois passam muitos momentos assim, naquele banco de madeira. Aos 60 anos, Xuxa está em paz.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_199 com o título “Ela está em paz”.
*Errata: Versão anterior da reportagem afirmava que a pintura de uma mulher indígena que decora a sala de estar de Xuxa era obra do grafiteiro Eduardo Kobra. Na verdade, é da artista plástica Rose Samara. A informação foi corrigida.
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