FOTO: JOÃO WAINER_2007
Zezão sai do esgoto
"É nos lugares nojentos que a arte aponta", diz o grafiteiro que trocou as galerias subterrâneas pelas galerias de arte no Brasil, Inglaterra e Estados Unidos
Cassiano Elek Machado | Edição 12, Setembro 2007
Goiabas podres deslizam mais devagar que embalagens de salgadinho Fofura, sabor churrasco. Os invólucros de petiscos, assim como os do sabonete Lux Luxo, perdem fácil para as garrafonas de refrigerante, como aquela de guaraná Kuat que vem escorregando pelas águas marrom-cinza-esverdeadas, se esgueirando entre panos quase desfeitos, retalhos de papelão, pedaços de plástico e outros objetos pastosos não-identificáveis. Numa quinta-feira qualquer de março, o córrego fétido empurra seus detritos podres na regata habitual que conduz ao rio Tietê, a 20 metros dali.
Zezão não está interessado. Ele já viu a correnteza levar sofás, dezenas de cachorros mortos, um vibrador, orelhões e o cadáver de um cavalo. “Arrasta os pés”, grita ele, para suplantar o ronco dos caminhões que passam na marginal, lá em cima, com palavras como Minuano, Riopardense ou Lusitana escritas nas suas carrocerias metálicas. Ele aponta meu par de galochas pretas, já marinadas de esgoto, e grita mais alto, com a voz grave e sotaque paulistano: “Arrasta os pés”. Zezão aprendeu por conta própria. Numa das suas primeiras visitas às galerias do Tietê, ele não arrastou os pés. Caminhou normalmente e descobriu que pregos enferrujados pelas águas do esgoto são inimigos piores do que baratas, ratos ou o cheiro do ralo. Ele não tinha nem galochas. Amarrava sacos plásticos de supermercado, quantos conseguisse, sobre as botinas de motoboy. “Dropava” em bueiros, em estações de tratamentos de esgoto, descia pirambeiras abandonadas, enfiava o corpo, sem proteção, nos dejetos. Águas passadas.
Do capô dianteiro de seu Fusca creme, safra 1969, ele tira sua pièce de résistance, um traje de borracha verde-escuro. Com essa roupa de homem-rã da imundície, que começa sobre as galochas e vai até o umbigo, Zezão já chafurdou boa parte da rede de esgotos de São Paulo. Hoje é dia de córrego Carandiru.
A ponte Cruzeiro do Sul, sobre nossas cabeças, faz o corta-luz na manhã de sol ardido. Debaixo dela, dois cantores de ópera parecem assistir à cena. Observam, estáticos, Zezão descer a cachoeirinha de esgoto e enfiar as botas plásticas dentro da água lodosa, deixando pegadas enlameadas no limo marrom. O barítono Paulo Szot e a mezzo soprano Luciana Bueno nem se mexem, cristalizados que estão com seus sorrisos de “novos galãs da ópera” na capa do exemplar carcomido de uma Veja São Paulo de setembro de 2001.
Zezão tira o menor rolinho de espuma, o de 4 centímetros de largura, da sacola que leva atravessada no peito, e o mergulha na tinta azul- clarinha. Na parede interna da galeria de esgoto, pinta um pequeno círculo. Do meio dele faz sair um traço horizontal para a esquerda e, com agilidade, pinta ao redor uns arabescos. Uma das pernas encaracoladas do desenho, a mais magricela, segue como um pega-rapaz em direção às águas opacas e malcheirosas do córrego Carandiru. “Por esse esgoto correu o sangue dos detentos, por isso gosto de voltar aqui”, diz, em tom reflexivo, enquanto agita, como se fosse um chocalho, uma latinha de tinta. É sempre assim. Com o rolinho, ele faz desenhos sinuosos com o azul-claro. Com o spray azul-escuro, faz o contorno.
Dessa vez, ele parece insatisfeito. A Giverny de nosso Monet está como de costume – com seus fedores, suas não-cores, com a mesma água gosmenta arrastando pacotes de Fofura e outros dejetos por baixo da ponte. Mas a tinta não presta. “Está dando rejeição”, comenta, meneando a cabeça. Zezão aperta o botãozinho do tubo de Colorgin e o azul-escuro custa a aderir à parede de concreto armado. Por essas e outras ele prefere usar spray importado. Sua marca predileta é a Montana, fabricada na Espanha e na Alemanha.
Com o meio-dia por perto, o cheiro adstringente do spray e o aroma nauseante do córrego Carandiru ganham companhia. Encravado no estádio da Portuguesa de Desportos, do outro lado do Tietê, o restaurante Fogo dos Pampas começa a produzir brumas de maminha, picanha e alcatra. Sob os olhares curiosos de um mendigo, que toma banho nu em um fiapo d’água ao fundo do Carandiru, e de um travesti, que lava uma muda de panos vermelhos mais adiante, Zezão caminha, sempre arrastando os pés, para a parte mais escura, debaixo da ponte. Ele saca de novo o tubo de spray, e picha, em letras de quase 1 metro de altura, a palavra “VICIO”, em maiúsculas e sem acento. Ao lado, menorzinho, escreve: “Hoje e sempre”.
Charbelly Estrella é doutoranda em história da cultura na PUC do Rio. Ao microfone, ela desvendava os mistérios insondáveis da arte de rua: “O grafite inscreve um uso peculiar. Veja a publicidade. O outdoor te olha, te captura e aí você olha para aquilo, e ele te segue. O grafite é um curto-circuito sígnico. Há que chegar perto. O grafite não faz essa convocação. Ele pressupõe que há uma aproximação mesmo na distância.”
O auditório da Caixa Cultural, no centro do Rio, é tão limpo que o cheiro lembra um carro novo. As paredes têm forro de pano escuro, as poltronas são equipadas com mesinhas dobráveis para anotações, o ar-condicionado, bem afinado, não faz as sessenta pessoas na platéia sentirem falta de casacos. Charbelly dividia o palco com Sérgio Franco, mestrando na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, de Daniela Labra, que se define como “curadora independente e produtora cultural, interessada por arte interdisciplinar, não-objetual e ligada à pesquisa institucional”, e de Zezão. O debate se chamava “Grafite e a Cidade”.
Daniela Labra apresentou os componentes da mesa. “O Zezão tem um histórico superlegal, porque ele trabalha nos undergrounds da cidade de São Paulo, nos esgotos mesmo”, disse ela, enquanto o grafiteiro mexia num notebook Mac. “Só estudei até a 7ª série, mas muito nego formado pela Faap não tem os bois que eu tenho”, ele disse. Zezão já teve um bocado de “bois”. Deu palestras em universidades como a USP e em museus como o MAM. Já escutou em várias ocasiões frases como “no século XIX a multidão passou a se erodir, começou a aflorar a dimensão individual, psicológica, interior das pessoas”, que seria dita naquela tarde. Zezão não tratou, como seus companheiros de mesa, do grafite como contra-racionalidade ou curto-circuitos sígnicos na cartografia urbana. Ele tomou um gole de água mineral, coçou a cabeça, eternamente protegida por um boné, e contou um pouco da sua história.
“Como qualquer aluno adolescente, com 15 anos eu escrevia o nome na carteira e no banheiro da escola”, ele disse. “Naquela época, eu usava canetão, não era pichador nato, de fosquiar as paredes e escalar prédios.” Zezão andava de skate, era punk de cabelo moicano e tascava a caneta Pilot de bico quadrado nas paredes que cruzassem seu caminho.
Era uma caneta do mesmo tipo que um garoto chamado Demetrius usava em Nova York, no início dos anos 70. O adolescente assinava “Taki 183”. O nome era um diminutivo de Demetraki, como seus pais, gregos, o chamavam. O número era o da rua em que morava, em Washington Heights, no cocuruto de Manhattan. Ele não foi o primeiro. No final dos anos 60, Julio 204 tinha aparecido em alguns muros. E havia também um JOE 182. Mas o greguinho levava vantagem. Trabalhava como contínuo e, assim, esgrimia seu canetão Magic Marker por toda a cidade. Às tantas, ele saiu no New York Times, que o coroou “rei do grafite”. A reportagem a seu respeito saiu no dia 21 de julho de 1971, e é uma das balizas da história do grafite.
Zezão nasceu quatro meses depois, na zona norte paulistana. Nenhum muro de São Paulo sabe, mas na carteira de identidade ele é José Augusto Amaro Capela. Só virou Zezão com o grafite, duas décadas mais tarde. E foi isso que lhe perguntou Daniela Labra: “Conta para a gente, Zezão, como foi que você começou no grafite”. Ele se ajeitou por trás da mesa da Caixa Cultural, tomou outra talagada de água mineral e falou sobre seu joelho.
Ele ainda estava nos seus 15 anos e, embora fosse contínuo e rabiscasse paredes como Demetraki, ainda levaria tempo para seguir o greguinho até o New York Times. (Só em 7 de março passado o jornal publicou um artigo que fala de Zezão.) Ele contou no debate que, em 1995, quando seu apelido era Tiguês, machucou feio os joelhos. Teve de parar com o skate e com os rolês com o TDVG Bike, um bando de colegas do bairro com quem andava de bicicleta. Aí, um amigo, o Binho, decretou a sentença: “Meu, vamos começar a grafitar”. Ele topou. Começou a rabiscar no quintal do próprio Binho, que se tornou conhecido no grafite paulistano com seus desenhos de baratas. O estilo de Zezão era outro. “Como nunca fui bom desenhista, seguia o movimento da cultura hip hop e fazia aquele grafite mais tradicionalzão, nova-iorquino, de letra, letras gordonas, style.” Em contraposição a Binho, a outro grafiteiro chamado Tinho, e a uma hiperinflação de outros inhos, do alto de seu 1,72 metro Zé virou ão, Zezão.
Ele passou anos apanhando das letras. “Às vezes, eu ia fazer uma letra que era muito entrançada, e eu acabava o trabalho com dor de cabeça”, ele disse. “Precisava de muita técnica pra conseguir chegar ao resultado que eu queria. Era para ser lazer, era para ser terapia e acabava virando problema.” Sabe-se lá por que, a platéia da Caixa Cultural cai na gargalhada.
Dois artistas de Nova York vieram aliviar a dor de cabeça de Zezão. Em sua estréia como diretor de cinema, o pintor Julian Schnabel filmou a vida do artista Jean-Michel Basquiat (1960-1988), que começou grafitando nas ruas, passou para as telas e hoje tem trabalhos expostos nos principais museus de arte contemporânea. Zezão assistiu ao filme em 1998 e, como afirmou, teve “o estalo”. “Daí por diante, comecei a experimentar, a mesclar uns trecos de abstração, a deixar a tinta escorrer, a escrever umas paradas.”
A fachada da casa, pintada de verde-água, não tem pichações nem grafites. Apesar do nome grandiloqüente – avenida Marechal Eurico Gaspar Dutra -, a rua é estreita e pacata, mesmo com a vizinhança movimentada, por conta da fábrica de conhaques Presidente e da escola de samba X9. Zezão divide a casa com a mulher, a sogra, dez cachorros e não sabe quantos gatos: “Só sei que vai um pacote de 18 quilos de ração a cada dez dias”. Vanessa, a mulher de Zezão, é ativista de uma associação protetora de animais. Mantém um site com fotos de bichanos sem donos. Eventualmente, dá guarida para um coelho, um galo ou um jabuti.
Dentro da casa, Zezão não pintou nada nem pendurou desenhos seus nas paredes. “Enjoaria”, diz. Em compensação, ele guarda num dos cômodos uma porção de mementos das suas andanças por São Paulo – Placas de rua, alguns “proibido estacionar”, que achou em lixões, mapas de metrô, adesivos de “perigo – não suba – cerca elétrica”. Com especial deferência, ele mostra um quadro, emoldurado com esmero, com uma imitação de um diploma de “vândalo-mor”. “É como se eu fosse formado em vandalismo”, ele fala. O artigo 65 da lei número 9605 do Código Civil Brasileiro, aliás, reza que “pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano” são atos passíveis de detenção, de três meses a um ano.
Zezão vem pichando, grafitando e conspurcando, por diversos meios, todos os tipos de edificações e monumentos urbanos. Ele mesmo é quem diz. A palavra “transgressão”, por exemplo, Zezão diz onde quer que seja convidado a falar sobre grafite e pichação. Para ele, a palavra se aplica tanto ao grafite (os desenhos) quanto à pichação (os escritos de rua): “Não sou um cara que fala que a pichação é uma coisa e que o grafite é outra. Sempre associei as duas coisas a uma coisa só, que é a transgressão. Se não tem transgressão não é grafite”.
A palestra no Rio fez parte do projeto Fabulosas Desordens, iniciado com a exposição de trabalhos de catorze grafiteiros brasileiros, inclusive Zezão, e outros da Espanha, dos Estados Unidos, Alemanha e França. Quem pagou a conta foi a Caixa Econômica Federal. Zezão continuou: “A essência da parada era mesmo pôr o nome ali mesmo e… foda-se…. desculpe o termo, mas é… ‘Ah, eu quero pintar aqui. De quem é, eu não sei, mas eu quero pintar aqui’. Tipo tô a fim. ‘Tem autorização?’, ‘não tenho…’. E boa”.
O período de 1999 a 2003 foi o seu doutorado como conspurcador. Antes, Zezão havia sido contínuo, balconista e, por vários anos, motorista de furgão. Transportava laticínios, segundo ele das 4 da manhã às 7 da noite. Aí resolveu virar motoboy. “Foi o ruim pelo pior”, avaliou. Como motoboy, se abasteceu de raiva contra o preconceito. Entrava no banco, as portas travavam; parava no sinal, os motoristas ao lado fechavam janelas e apertavam os pininhos das portas; e ele ali, carregando peças de caminhão na mochila. “A pichação foi a minha manifestação contra o sistema”, explicou. “Entrei de cabeça no vandalismo. Fui pichar trem e metrô. Não tava muito preocupado com muralzinho coloridinho, o foco era mesmo transgressão.” Zezão não era Zezão nas paredes da cidade. Nunca foi. Às vezes, escrevia nos muros Come Lixo, um de seus apelidos. Na maior parte dos rolês, assinava VICIO.
Boleta é um sujeito de poucas palavras e muita tinta. Desde os 12 anos, saía de bicicleta pela Vila Ema, na Zona Leste paulistana, pintando paredes. Um ano depois, conheceu outro pichador, o Padre. Eles criaram uma das principais gangues de pichação da São Paulo dos anos 90, a VICIO. No auge, mais de três dezenas de pessoas participaram do grupo. Nas aventuras para escrever a palavra de cinco letras em lugares de difícil acesso, Boleta estima ter sido pego umas 80 vezes. Numa delas, o policial colocou duas balas no tambor do revólver, levou o cano até a sua têmpora, e ele ouviu “tec” – e nada. O acaso também fez com que nunca tivesse sido levado para delegacias, bode que Zezão já experimentou três vezes. Na última, quando foi pego espalhando tinta em paredes do bairro paulistano do Pacaembu, em 2003, Zezão ficou seis horas numa cela. Estava escrevendo um VICIO bem grandão.
É isso que ele picha desde 1998, quando conheceu Boleta e “rolou a mesma ideologia”. Eles tinham em comum o apreço por fábricas abandonadas e rolês de bicicleta. Além disso, o contínuo José Amaro e o metalúrgico Daniel Medeiros também dividiam a vida dura do proletariado. E eram fissurados por latas de spray.
Como em outras gangues, os pichadores da VICIO escrevem ao lado do nome algumas letrinhas que identificam o autor de cada hieróglifo. Zezão usava como identidade três siglas, que já vinha espalhando pela cidade: PIF, FDS e DST. A primeira abrevia Pintores Infratores Ferroviários, de uma antiga turma de pichadores de trens, a segunda quer dizer foda-se e a terceira é diminutivo de destrói. Muitas vezes ele pichava, e ainda picha, uma fusão das três siglas: escreve o VICIO e, ao lado, um PIFDST menorzinho. Já Boleta tem incluído em seus VICIOs as iniciais de Téo e Mariana, seus dois filhos.
O terceiro rebento de Boleta é menos convencional. Chama-se Ttsss…, e é o título de um livro sobre a pichação de São Paulo. Lançado no ano passado, ele é composto, em grande parte, por reproduções de uma agenda encontrada por Boleta na rua, em 1989, que tinha numa de suas primeiras páginas a assinatura de um pichador, o Chacinas. Boleta usou a agenda para guardar assinaturas dos seus camaradas de spray. Fez isso, com zelo de filatelista, até 1998. Além da reprodução da agenda e de fotografias de pichações feitas por João Wainer, Ttsss… inclui um pichograma, uma lista com diversas caligrafias de cada letra do alfabeto.
Ferreira Gullar cruza todos os dias com uma porção dessas tipografias nos arredores de seu apartamento, em Copacabana, no Rio. Poeta e crítico de arte, ele traça as seguintes fronteiras das chamadas inscrições urbanas: “Pichar as fachadas de garatujas, ‘assinaturas’, nada tem a ver com arte, nem me parece ser essa a intenção dos pichadores. Mas há também coisas muito bonitas e expressivas, que requerem talento para serem feitas. São como painéis ou murais. Isso é arte”.
Outros críticos e comentaristas vão além. Para eles, também as garatujas podem ser arte. “A pichação paulistana é obra gráfica da melhor qualidade, é genuína: você não encontra esses alfabetos em lugar algum pelo mundo. Quando lançamos Ttsss…, os gringos piraram. Vendemos até para a Bielo-rússia.”, diz a artista gráfica Pinky Wainer, uma das sócias da Editora do Bispo, que publicou o livro. “Essa tipografia foi criada sem uma intenção, o que é uma coisa rara.”
Boleta tem algumas hipóteses para a origem da caligrafia de rua paulistana. Ele acredita que houve a influência das tipografias góticas usadas em capas de discos de heavy metal, gênero popular entre os primeiros pichadores. O aspecto longilíneo das letras de rua de São Paulo, com ângulos agudos, diferente do estilo mais engruvinhado das pichações cariocas, por exemplo, pede explicações. “A verticalidade da cidade é um motivo”, teoriza Boleta.
Embora ele e Zezão também sejam reconhecidos como pichadores, foi como grafiteiros que eles passaram pela alfândega pela primeira vez, no início do ano. Os dois fizeram uma exposição na terra de Taki 183, que se chamou A Survey of Brazilian Street Art, e ganhou resenha elogiosa do New York Times. Ela ficou em cartaz, entre fevereiro e março passados, na Jonathan Levine Gallery, no Village, o bairro boêmio de Nova York. Além de Zezão e Boleta, que dividiram um quarto num hotel a poucos metros do Empire State, a mostra teve trabalhos de outros seis grafiteiros, incluindo figuras conhecidas do metiê, caso de Speto, Titi Freak e Onesto. Boleta expôs pinturas sobre telas, e também sobre uma tábua de passar roupa e uma de cortar carnes. Vendeu treze trabalhos. “Zeh-zah-o”, como o catálogo da mostra explica a pronúncia de seu nome, levou menos obras que Boleta e vendeu quatro delas.
Na exposição, assim como na coletiva da qual participou na Caixa, Zezão mostrou suas duas principais linguagens no grafite. A mais conhecida delas ele batizou de “flops“. São os tais arabescos que ele faz com um rolinho de espuma e spray. Embora existam alguns raros flops vermelhos, Zezão acabou por padronizar o mesmo tom de azul para esse tipo de desenhos. Ele não chega ao rigor de um artista como Yves Klein, que até patenteou o seu azul, o IKB (International Klein Blue), feito com o pigmento azul-ultramarino PB29. O AZ, o Azul Zezão, mais claro que o de Klein, é feito “no olho”, misturando tinta látex azul-clara convencional com branco.
Um pouco desse azul ele chegou a esparramar pelas ruas de Nova York. Em seu fotolog, Zezão registra, por exemplo, o flop que fez em torno de um bueiro no Bronx, num dia gélido. Ele comenta: “pela primeira vez na minha vida vi o látex começar a congelar e virar raspadinha”.
Em outro rolê, deixou num portão metálico no Village um exemplo de sua outra linguagem artística, que ele chama de psicodélica. Nessas pinturas, ele usa até quinze cores diferentes: são as também chamadas fumacinhas, sempre feitas com spray. “Quer saber de onde surgiu esse style?”, ele pergunta. “Muitas vezes, eu não tinha grana para comprar tinta, e aí pedia o resto das latas dos colegas. Como só tinha um pouquinho de cada cor, eu ia amontoando fumacinhas diferentes.”
Uma dessas peças psicodélicas está impressa na contracapa do livro Graffitti Brasil, lançado por uma das principais editoras de livros de arte da Inglaterra, a Thames & Hudson. O diretor de arte e ensaísta Tristan Manco, que fez o livro em parceria com o artista Caleb Neelon e com a dupla de fotógrafos brasileiros Lost Art, é admirador do grafiteiro. “Dos artistas apresentados no livro, um dos que mais chama atenção, no mundo todo, é Zezão, um artista no sentido mais profundo do termo”, disse Manco, num e-mail enviado de Bristol, no Reino Unido, onde mora. “Ele criou uma linguagem muito particular e rica, e demonstra um grande domínio das relações espaciais.” Para explicar os flops de Zezão, o autor inglês evoca desde a criação inconsciente do Expressionismo Abstrato americano até o ornamentalismo da Art Nouveau, passando pelas megainstalações do búlgaro Christo.
Patrícia Cornils tem uma explicação mais simples para os flops.
Para ela, é uma questão de pele: Patrícia tem um flop encaracolado que vai do pescoço até o cotovelo esquerdo.
Tampere é a capital da região de Pirkanmaa, na Finlândia. Numa tarde de março passado, baratas paulistanas, moradoras dos córregos Tiburtino e Tatuapé, deram o ar da sua graça num cinema no centro da cidade. Fizeram o papel de coadjuvantes, pois Zezão, o astro do filme, aparecia na tela com o corpo mergulhado no líquido de tom achocolatado, arrastando as galochas e o macacão verde-escuro num trecho dos 37 700 quilômetros de esgotos de São Paulo. Junto a ele, também enfiada em uma roupa de homem-rã, com o rosto coberto por uma máscara cirúrgica, Patrícia Cornils carregava um aparelho detector de gases.
Antes de começar a freqüentar esgotos, Patrícia podia ser vista na Bolsa de Valores de São Paulo, ou em edifícios espelhados e assépticos das avenidas Paulista e Berrini. Durante quase uma década, ela escreveu sobre telecomunicações, inclusive no jornal Valor. Admiradora dos traços de Zezão, há dois anos ela decidiu perpetuar um flop dele na omoplata esquerda. Zezão fez o desenho sobre o ombro de Patrícia, e um amigo, o grafiteiro Chivitz, fez a tatuagem. Foi assim, grafitada, que a jornalista decidiu escrever um roteiro e filmar um rolê pelo submundo paulistano, que foi concretizado no curta-metragem O Desafio de Zezão, rodado em abril do ano passado.
Zezóloga de longa data, Patrícia chama atenção para um detalhe da obra do seu documentado. Embora os flops azul-clarinhos pareçam desenhos abstratos, eles são feitos a partir de letras. “Ele começou a retorcer com tanta intensidade as letras que elas, aos poucos, viraram desenhos abstratos.” Baixo Ribeiro concorda. Tatuado, com dois alargadores como os usados por índios enfiados nos lóbulos, o ex-estilista de street wear tem cabedal para falar sobre grafite. Da dezena de galerias paulistanas que comercializam grafite e pichação, a Choque Cultural, de Baixo Ribeiro, é a principal. A galeria, que fica numa simpática casa de dois andares no bairro de Pinheiros, começou imprimindo gravuras de Boleta e de Herbert Baglione, um dos grafiteiros brasileiros de maior projeção no cenário internacional. Zezão foi o terceiro artista a chegar à Choque Cultural, e se tornou o seu talismã.
Baixo tem na ponta da língua as características que, acredita, fazem de Zezão “um caso especialíssimo”. “Zezão trabalha no contexto do site specific, de criar obras pensadas para um espaço determinado. Ele tem um envolvimento performático com seu trabalho. Ele faz uma arte abstrata, que é ao mesmo tempo caligráfica. Ele valoriza a intuição e por isso Basquiat lhe foi tão importante. Sua escolha estética está ligada a uma opção existencial.”
O último ponto dos mandamentos de Baixo está ligado a uma questão central, que Zezão tem de responder onde quer que vá: por que faz suas pinturas em esgotos, onde ninguém pode vê-las?
O restaurante se chama Tenda das Esfihas, mas o prato de Zezão amontoa um Everest de arroz e feijão. Ele estava com o figurino habitual, que faz com que pareça ter menos que seus 35 anos. Bermudão comprido, que deixa de fora só as canelas tatuadas (“referências tribalísticas do Maori”, explica). Outras tatuagens escapam da camiseta preta, desbotada e sem manga. Na cabeça, tem óculos preto Ray-Ban, de patrulheiro rodoviário, e um boné.
Zezão come devagar. Ele aponta para um muro. Ali ficava o Carandiru. Zezão conheceu a Casa de Detenção por dentro. Já estava desativada quando ele foi convidado a deixar alguns flops no Pavilhão 2. Guarda lembranças ruins da experiência. “Muito louco se deparar com aquela energia negativa que o local oferecia. Bad trip mesmo.” Energias negativas e positivas, good e bad vibes, rolês e rolinhos, bom astral e bad trips fazem parte do seu vocabulário básico. E é a termos como esses que ele recorre para explicar por que decidiu entrar pelo cano. A história começa em 1999. Ele vivia um período de bad vibes. Problemas pessoais e profissionais, doença na família, salário de 600 reais, encrencas para todo o lado. Até no ramo do spray. O grafiteiro já tinha assistido ao filme sobre Basquiat e andava fazendo experiências incompreendidas pelos comparsas, que lhe diziam: “Aí, Zezão, estou te estranhado. Isso aí que tu tá fazendo não é grafite, não”. Por fim, tinha a polícia, sempre à caça de conspurcadores.
Um dia, caminhava pelo bairro do Brás e resolveu pular o muro de uma fábrica abandonada. Era lá, naquele mesmo lugar, que um italiano havia começado a história decisiva da sua vida profissional. Com financiamento de “600 contos de réis” e salvaguarda do London and Brazilian Bank, Francesco Matarazzo inaugurara ali, em 1900, o Moinho Matarazzo, sua primeira fábrica e a célula-máter de seu império industrial.
Dos moinhos só ficou o joio. “Era um pico negativo, só tinha craqueiro nóia, estuprador, travesti”, relembrou. “Mas lá não tinha ninguém enchendo o meu saco. Não tinha polícia, grafiteiro, ninguém buzinando. Ficava sossegado, pintando as paredes destruídas.” Aos poucos, gostou do sossego decadente, da sujeira, da destruição. Rimava com seu estado de espírito. Em outro rolê, na avenida Inajar de Souza, na Vila Nova Cachoeirinha, viu um buraco e resolveu entrar. Caminhou até onde conseguiu e chegou a um esgoto. Ele deu mais uma garfada no arroz e feijão e sentenciou: “É nos lugares nojentos que a arte aponta”. Foi então que Zezão submergiu.
A pichação e o grafite usam uma expressão da televisão para definir um de seus objetivos: os desenhos e pichações devem “dar Ibope”. Desenhos gigantes, em vias de muito trânsito, escritos em lugares altos, ou muito vigiados “dão Ibope”. Desenhar para ratos e baratas era, no início, dava traço de audiência.
“Tinha uma época que eu não estava mais na rua. Estava offline total. Aí me perguntavam: Zezão, você não pinta mais? E eu dizia: aí que você se engana. Estou pintando mais que você, mas você é que não vê. Neguinho dizia: ah, duvido. Aí neguinho ia em casa, via as fotos e não acreditava”, diz o grafiteiro, em outro documentário feito sobre ele, o média-metragem Traço do Invisível, de Laura Faerman e Marília Scharlach. Nele, Zezão é elogiado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. E aparece pintando tanto no subterrâneo, numa imensa galeria em frente ao Estádio do Pacaembu, quanto num dos maiores edifícios abandonados de São Paulo, o São Vito, onde o grafiteiro entrou com a ajuda de um guindaste e de uma barra de ferro.
Traço do Invisível, de 52 minutos de duração, deverá ser exibido, em dezembro, pela TV Cultura. No mesmo mês, Zezão participará de uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, com curadoria de Fábio Magalhães, ex-diretor do MASP. A mostra, que seguirá para o Museu de Arte Moderna do Rio, e depois para Argentina, Chile e México, terá trabalhos de artistas italianos e outros brasileiros. Entre eles, a dupla de irmãos paulistanos Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos, e bem conhecidos, mundo afora, como Osgêmeos.
No início de novembro ele fará sua estréia no Reino Unido, na galeria O Contemporary, em Brighton, onde se podem comprar também gravuras de Andy Warhol, David Hockney e do artista contemporâneo mais valorizado do momento, Damien Hirst.
Uma parte do que ele mostrará aos ingleses foi mostrada, entre julho e agosto, na galeria Choque Cultural. A exposição se chamava Cidade Limpa, que vem a ser o mesmo nome da campanha de limpeza de São Paulo promovida pelo prefeito Gilberto Kassab, o inimigo número 1 dos grafiteiros e pichadores. Zezão transformou o porão da galeria num depósito de lixo. Ele esparramou pelo chão jornais amassados, sacolas plásticas, latas de cerveja, um saco de ração Delícias da Granja, e uma latinha queimada e furada, como se tivesse sido usada para fumar crack. Nas paredes, forradas de camadas de papéis descascadas, estavam mais de trinta obras. “Quis mostrar como meus desenhos ficam em diversos suportes”, disse o grafiteiro e pichador, que passou a usar palavras como suporte, monocromático e díptico. Ele expôs flops sobre placas de ferro enferrujadas, tampas de bueiro, sacos de lixo e lonas de caminhão.
Ele mesmo oferece o roteiro do seu percurso: “Já fui muito radical. Criticava isso de misturar nossa arte com a publicidade. Aí pensei: sou explorado, ganho uma miséria como motoboy, e começaram a me procurar para uns jobs de propaganda. Se meu trabalho tem aceitação, por que vou ter ideologia a ponto de me negar a fazer o que gosto para ser motoboy, que eu não gostava?”
No seu website, o Arte Subterrânea, o próprio Zezão exibe pinturas que ele fez para campanhas publicitárias da Skol, da Siemens, da Nike, da Nescau, do McDonald’s e outras empresas. Numa delas, a de lançamento de um carro da Volkswagen, participou de um evento na Daslu com o ator José Wilker. Ganhou 12 mil reais de uma tacada só, o equivalente a vinte meses como motoboy. Seus ganhos vêm dos trabalhos publicitários e, cada vez mais, das galerias. “Nessa última mostra, o Zé vendeu quase tudo o que estava exposto”, diz Baixo Ribeiro. “Como ele está se internacionalizando, os preços estão subindo. Atualmente custam de mil a 4 mil reais, mas aposto que dobrarão de preço bem rápido”.
O período de bonança não lhe trouxe só tranqüilidade. Ele diz que já tinha sido discriminado por fazer pichação, pinturas abstratas e pintar às escondidas em esgotos e ruínas urbanas. Agora, acha, sofre discriminação por aparecer demais.
Para essas bad vibes ele tem antídoto. Pega a bike, dá um rolê para algum lugar bem ermo e espalha flops pelas paredes. Zezão tem ficado só na superfície. É que roubaram seu fusqueta, com a roupa de borracha junto. Ele diz que sente saudades do esgoto.
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