Pipa Vieira - Foto: Renata Seade/Acervo pessoal de Pipa Vieira
“A meta é ficar vivo”
Sem trabalho nem renda com o fim do auxílio emergencial, músico relata meses em que passou a morar de favor e enfrenta dificuldade até para comer
Acultura foi um dos setores mais afetados pela pandemia. Com o cancelamento de eventos, peças teatrais, shows e o fechamento de museus, trabalhadores fixos e temporários do setor ficaram sem alternativas. De acordo com a Firjan, essa área representa cerca de 2,61% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. No samba não foi diferente. Entre as 250 rodas de samba oficiais, segundo a Secretaria Municipal de Cultura, e outras tantas extraoficiais da cidade do Rio, está o “Pagode do Pipa”, organizado por Felipe Vieira, o Pipa Vieira, um carioca de 40 anos que aprendeu percussão sozinho aos 12, influenciado por uma família em que pai, irmão, tios e tias tocavam. Desde criança ele se apresenta em público, primeiro acompanhando as festas de família, do candomblé, e depois com amigos, em bares da cidade. Sem renda fixa, o músico tem vivido dias complicados durante a pandemia. Conseguiu receber quatro meses de auxílio emergencial, mas, com o cancelamento de shows, contas como aluguel, internet e a pensão de dois filhos estão em atraso. Pipa foi despejado do lugar onde morava e, desde então, já morou de favor em quatro endereços diferentes. O músico decidiu vender seu notebook para conseguir dinheiro e tem contado com a ajuda de amigos.
(Em depoimento a Amanda Pinheiro)
Em janeiro de 2020, eu fazia parte de oito coletivos que compunham a minha agenda musical no cenário do samba no Rio de Janeiro. A gente tinha apresentação de quarta até segunda-feira. Minha renda ficava entre 3,5 mil e 6 mil reais por mês. Morava em Santa Teresa, numa casa coletiva, e conseguia receber meus filhos toda semana. Eu tinha espaços para guardar e fazer a manutenção dos meus instrumentos e equipamentos, realizava ensaios, saraus, aulas, reuniões, encontros políticos e culturais. Meu último evento foi um show no dia 8 de março de 2020, na feira da Glória.
Quando foi decretado o primeiro fechamento, em março de 2020, vi tudo isso cair por terra. Desde então todos os eventos foram cancelados, e os que estão tendo liberação estão sendo vistos quase como crime.
Fiquei sem dinheiro para nada, nem pro aluguel. A proprietária pediu o imóvel e tivemos que nos retirar da casa. Desde então, comecei uma saga morando de favor na casa de amigos e em casas que alugam vagas e quartos. Só nesse tempo, já tive quatro endereços diferentes, sem conseguir dinheiro para arcar com aluguel, minhas contas básicas, principalmente alcançar algum nível de paz. Não consigo me concentrar para simplesmente ler um livro. Além dessas preocupações, também preciso cuidar da minha saúde. Conheço pessoas que tiveram Covid, tenho amigos da periferia e de favelas que tiveram três vezes. Um dos meus filhos também pegou, e eu, em novembro, fui infectado. Foi horrível, porque perdi olfato, paladar e tive otite, mas consegui me recuperar.
Nesses meses de pandemia, fui convidado a participar de algumas gravações remuneradas de estúdio, tentei emplacar aulas de percussão online, mas não tive sucesso. Eu também faço parte do elenco de apoio da novela Nos Tempos do Imperador, que precisou parar novamente as gravações. Não tive nenhum projeto aprovado na Lei Aldir Blanc. Agora, durante a pandemia, realizei três edições do Pagode do Pipa, no Leme, mas na terceira edição teve esse novo decreto do toque de recolher e do cancelamento dos eventos que, ainda que com capacidade reduzida, estavam rolando.
Não lembro de ter vivido nada parecido com esse momento. Recebi quatro parcelas do auxílio emergencial (julho, agosto, setembro e outubro). Com esse dinheiro, consegui comprar alguns alimentos, carne, peixe, fazer uma feira, pagar a conta do telefone, e recebi ajuda de amigos e cesta básica. Também paguei alguns aluguéis e ajudei meus filhos. Porém, parei de receber o auxílio, e a situação voltou a ficar complicada. Tenho seis filhos, de 5 a 24 anos. Os dois mais novos deixaram o Rio de Janeiro na semana passada. Foram para Minas Gerais com a mãe, que trabalha com artes visuais, e também foi afetada financeiramente durante a pandemia. Ela foi pressionada a aderir ao plano de demissão voluntária na empresa onde trabalhava e não teve mais condições de pagar aluguel aqui no Rio. Agora, estão em uma casinha pequena da família dela. Infelizmente não tenho conseguido ajudar todos eles como eu gostaria.
Cheguei a pensar em mudar de ramo diversas vezes. Tive sensações horríveis. Procurei me alicerçar espiritualmente e tentei reverter de alguma forma esse sofrimento, então decidi ajudar quem estava mais necessitado do que eu. Realizei em conjunto algumas ações solidárias contra a fome e a miséria no Morro do Turano, comunidade em que fui criado, e em duas ocupações quilombolas no Centro da cidade. Também consegui uma doação para o terreiro que frequento.
Diante das dificuldades, resolvi colocar meu computador à venda. Amigos criaram uma vaquinha online para eu pagar alguns meses de aluguel e me alimentar. Recebi uma corrente de amor e positividade muito forte. Apesar disso tudo, não tenho conseguido pagar as contas. Meu aluguel, a “pensão” de dois filhos, que não é exatamente uma pensão, mas um valor que dou para ajudar, internet, manutenção de instrumentos, está tudo atrasado. Nem dinheiro de passagem eu tenho quando preciso me locomover para resolver alguma coisa fora de casa. O meu telefone foi cortado por atraso no pagamento da conta há dois meses. Se não fosse a vaquinha que os amigos criaram, não sei o que seria desse e dos próximos dias.
Não faço compras de mês no supermercado há uns cinco meses, principalmente agora com os preços tão altos. Deixei de comer várias coisas como carne, frios, laticínios, iogurte e derivados, até mesmo supérfluos. Este mês, recebi cesta básica e vou poder completar com frango, peixe, ovos e legumes. Mas isso tudo eu faço quando tenho onde cozinhar, porque, dependendo da casa, só consigo comer na rua. Por exemplo, um prato feito hoje mais barato na região da Lapa, com um pedaço de alguma carne, está 9,99 reais, sem bebida, e tem dias que não tenho condição de pagar nem isso. Às vezes não consigo comer direito e como um pão francês com um café, e engano bebendo muita água. É o que tem dado para segurar aos trancos e barrancos.
Com a criação dessa vaquinha, além da ajuda de amigos e familiares, também tenho recebido mensagens carinhosas de várias pessoas, são como pílulas de autoestima. Tenho feito ligações de vídeo para orações às 18 horas com minha família, componho sambas por ligações de WhatsApp, faço apresentações em lives. Caso eu consiga receber novamente o auxílio, minha vida financeira vai ser “tapar o sol com a peneira”, sobreviver no inferno. Pretendo continuar ajudando meus filhos com o pouco que consigo e investir em moradia e alimentação, que é o básico para sobreviver neste cenário devastador.
Semana passada cheguei ao meu limite psicológico e financeiro. Confesso que chorei muito! Em todas as etapas eu chorei de dor, tristeza e alegria. Mas me adaptar a todas essas situações é o grande aprendizado que carrego comigo. Como lutei boxe por muito tempo, criei um personagem que usa na cabeça aquele capacete de proteção, porque estamos há um ano levando pancada de todos os lados, mas resistindo bravamente. No meio disso tudo, pus uma meta que até hoje estou conseguindo atingir: me manter vivo. A meta é ficar vivo.
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