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Movimento antinatural

Volta e meia recorro, aqui no blog, às histórias de futebol que meu pai contava e tanto me encantavam. Uma delas vem do tempo do amadorismo e era protagonizada por um atacante botafoguense chamado Mimi Sodré, tido como um padrão de ética nos gramados. Segundo meu pai, Mimi erguia o braço e se acusava ao juiz, sempre que tocava com a mão na bola. Eu não entendia bem aquilo: se era para se acusar, por que Mimi ajeitava a bola com a mão? Mas nunca fiz esse questionamento, porque adorava as histórias e receava que meu pai perdesse o entusiasmo com que as reproduzia.

| 11 set 2014_16h36
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Volta e meia recorro, aqui no blog, às histórias de futebol que meu pai contava e tanto me encantavam. Uma delas vem do tempo do amadorismo e era protagonizada por um atacante botafoguense chamado Mimi Sodré, tido como um padrão de ética nos gramados. Segundo meu pai, Mimi erguia o braço e se acusava ao juiz, sempre que tocava com a mão na bola. Eu não entendia bem aquilo: se era para se acusar, por que Mimi ajeitava a bola com a mão? Mas nunca fiz esse questionamento, porque adorava as histórias e receava que meu pai perdesse o entusiasmo com que as reproduzia.

Só fui compreender melhor quando li O negro no futebol brasileiro, clássico de Mario Filho. Mario explica: até a vinda ao Brasil do juiz inglês George Reader, dois anos antes da Copa de 50 – ele acabaria, inclusive, apitando a fatídica final em 16 de julho –, os juízes brasileiros paravam a jogada em qualquer lance que, com ou sem intenção, a bola batia na mão de alguém. Ou seja: o que Mimi Sodré fazia era acusar o toque da bola em sua mão, mesmo que involuntário. Foi preciso Mr. Reader vir lá do outro lado do oceano para nos ensinar que o que caracterizava a infração era a intenção, e casualidades não deveriam ser punidas. Nem um grama de exagero na história do meu pai.

Um pouco antes de começar a Copa de 2014, houve um certo zunzum a respeito de uma determinação da comissão de arbitragem da Fifa. Não conheço o texto original, mas o sentido é esse: o juiz deveria marcar toda vez que a bola batesse na mão de alguém que tivesse feito um movimento antinatural.

Alguém sabe explicar que diabo é isso?

Vamos inverter a questão. Dar uma bicicleta – algo que não fere as regras do jogo – é um movimento natural? Invadir a área adversária controlando a bola com a cabeça feito uma foca, especialidade daquele sumido ex-jogador cruzeirense Kerlon, é um movimento natural? E para não escapar ao tema da mão na bola: existe algo mais antinatural do que um zagueiro que, na hora do cruzamento, põe os braços atrás do corpo? Pra mim, o que esse zagueiro faz com o gesto esdrúxulo é dizer ao juiz: olha, professor, eu não confio no senhor. Acho que, se o cara cruzar e a bola bater sem querer na minha mão, corro o risco de o senhor entender tudo errado e marcar pênalti.

Não sei se a tal recomendação da Fifa vingou, e as próprias arbitragens da Copa não foram exatamente um sucesso. Pelo menos em tese, estavam ou deveriam estar aqui os melhores juízes do mundo, mas ocorreram desastres completos (México x Camarões), marcação de pênaltis inexistentes (Brasil x Croácia, Espanha x Holanda, Alemanha x Portugal) e outros pra lá de marotos, como os que eliminaram a Costa do Marfim na fase de grupos e o México nas oitavas. Não me lembro de outro, mas houve ao menos um pênalti marcado em um desses lances de bola na mão, a favor da Austrália no jogo com a Holanda. Eu achei que não foi pênalti, mas aqui no trabalho todo mundo achou que foi. Devo estar enganado.

A Fifa não sabe o risco que está correndo com o rigor recomendado. Jogadores de futebol, sobretudo os latinos, costumam ser maliciosos e, se a moda pega e os juízes não abrirem o olho, teremos um festival de bolas propositalmente lançadas em direção aos braços adversários. Não esqueçamos que Pelé – claro, sei que foi o Pelé, e Pelé é Pelé – inventou a jogada em que fazia tabela nas canelas de seus marcadores, e também o pênalti em que ele mesmo enroscava o braço no do zagueiro.

O pessoal da ESPN costuma brincar com os jornalistas Mauro Cezar Pereira e Arnaldo Ribeiro, atribuindo-lhes a criação de uma imaginária Liga Nacional Antipênalti. Se os dois levassem a ideia à frente, minha adesão seria certa. Arnaldo Ribeiro tem, inclusive, uma frase magnífica para o tema: “Pênalti, pra mim, é o gol do juiz”. (Isso é uma ideia parceira da tese que defendi no post publicado em 15 de outubro de 2013, com o título “Divagações sobre o pênalti”.) Fato é que há pênaltis demais. E, como parecem preocupados com o excesso de câmeras em qualquer jogo da quarta divisão e com a avidez por penalidades máximas que vitima narradores e comentaristas, os juízes têm andado com seus dedos muito nervosos, doidos para apontar a marca de cal. 

Em jogos recentes do Flamengo, a coisa tomou proporções preocupantes. Se na vitória de três a zero sobre o Coritiba eu já tinha achado o primeiro pênalti assim-assim, o segundo foi um despropósito. No último minuto do péssimo jogo de ontem à noite, na Arena Pantanal, os jogadores rubro-negros pediram pênalti numa bola que, cruzada da esquerda, tocou no defensor do Goiás, quicou e, na volta, roçou-lhe o cotovelo.

Um dos trechos da bela “Vozes da seca”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, regravada pelo Quinteto Violado na década de setenta, diz o seguinte: “Mas doutor, uma esmola / Para o homem que é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão”. Como os jogadores do Flamengo não tiveram a menor vergonha em reclamar pênalti num lance como aquele, só podem estar viciados.

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