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    Agentes da Polícia Nacional da Nicarágua, que atua na repressão a opositores do governo Foto: Divergentes

aqui mando eu

Na Nicarágua, até oito anos de prisão por um tuíte

Mais de 40 opositores do regime de Daniel Ortega sofrem com julgamentos sumários

Wilfredo Miranda Aburto | 14 fev 2022_12h27
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Este conteúdo é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados aqui

A esta altura de fevereiro, enquanto se sucedem os julgamentos sumários de 47 presos políticos na Nicarágua, Samantha Jirón, a mais jovem deles, de 22 anos, está há mais de dois meses no presídio La Esperanza obcecada com seu celular. Ela sabe que quando chegar sua vez de ser julgada, numa data que as autoridades vêm adiando sem motivo, as mensagens que enviou do seu telefone serão usadas pela promotoria: na Nicarágua manifestar opinião contrária ao governo de Daniel Ortega nas redes sociais é um crime penalizado com até oito anos de prisão.

A mãe de Sam, como todo mundo a chama, me fala da aflição da filha, e não custo a imaginá-la. Em setembro do ano passado, ela me enviou várias mensagens urgentes. Tinha sido avisada de que estavam preparando sua captura por causa da sua ligação com a equipe de comunicação de Félix Maradiaga e por pedir sua libertação nas redes sociais. Maradiaga estava preso, assim como outros seis pré-candidatos à Presidência opostos ao regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo. Tratava-se de uma caçada sem precedentes, baseada num coquetel de leis repressivas e arbitrárias: a Lei de Agentes Estrangeiros, que criminaliza o acesso a financiamento internacional; a Lei do Povo, usada contra supostos “traidores da pátria”; a Lei de “Soberania”, que castiga a “conspiração e menoscabo da integridade nacional”, e a Lei dos Cibercrimes, contra a “difusão de notícias falsas por meio das tecnologias de informação e comunicação”.

“O que você me aconselha? Vou de novo para a Costa Rica?”, a moça me perguntava. “Agora mesmo estou pulando de casa em casa entre Masaya e Manágua.”

Sam me consultava porque eu já havia sido ameaçado pela promotoria com a Lei dos Cibercrimes. Queria entender o alcance prático dessa normativa. Não pude me aprofundar em detalhes porque, como expliquei a ela, meu caso se resumia a uma ameaça. “Mas meu conselho é que você saia do país. Se ficar na Nicarágua, sempre vai correr o risco de ser presa”, respondi.

Sam e eu nos conhecemos em meados de 2019 em San José, capital da Costa Rica. Os dois estávamos entre os mais de 130 mil nicaraguenses que se exilaram em 2018, fugindo da perseguição que a Polícia e o Poder Judiciário empreenderam depois dos protestos maciços contra o regime orteguista. De nosso primeiro encontro na sede da Fundação Arias para a Paz e o Progresso Humano, que ela frequentava como estagiária, recordo uma adolescente de sorriso perene, olhos vivazes e um entusiasmo contagiante. Naquela tarde eu estava coordenando uma oficina com exilados sobre o tema “como combater notícias falsas nas redes sociais”, e Sam participava do bate-papo com entusiasmo porque várias de suas publicações haviam sido usadas por simpatizantes sandinistas para desinformar.

Sam resolveu voltar à Nicarágua em 2020. A exemplo de outros exilados, acreditava que as eleições gerais do ano passado eram uma chance para se organizar politicamente e impulsionar uma mudança no país. Mesmo depois do regresso, ela continuou a publicar nas redes sociais, que eram o principal canal do seu ativismo. O governo havia empreendido uma brutal repressão com policiais e paramilitares, proibindo manifestações e confiscando redações. O Facebook e o Twitter eram vistos como o último reduto da liberdade.

Mas a Lei dos Cibercrimes, aprovada no final de outubro de 2020, também os amordaçou. Na nossa última conversa, aquela esperança e o entusiasmo contagiante de Sam tinham se transformado em medo.

Em 9 de novembro de 2021, apenas dois dias depois que Ortega e Murillo se blindaram no poder numa eleição sem oposição, um grupo de policiais armados e à paisana apanhou Sam perto do hotel Holiday Inn, numa das ruas mais movimentadas da cidade. Segundo as pessoas que a acompanhavam, os homens interceptaram o carro em que se encontravam e a fizeram descer aos empurrões. Ela gritava, e seus olhos vivazes se encheram de lágrimas. Ainda tentou entregar o celular a um dos amigos, intuindo que era a primeira coisa que iriam procurar. Não conseguiu. Poucos dias depois, o rastro de Sam desapareceu das redes sociais. Se a gente procura por ela no Facebook, se depara com o aviso: “Não há publicações disponíveis.”

 

O julgamento dos presos políticos é um recado gritante de Ortega e Murillo numa Nicarágua silenciada por eles. Todos os detidos foram julgados no presídio de El Chipote, quando, segundo o artigo 121 do Código de Processo Penal, as audiências devem ser celebradas num tribunal. Nas sessões, até mesmo os advogados de defesa permanecem incomunicáveis, enquanto um contingente desproporcional de policiais reforça a segurança da prisão. Todos os familiares com que falei, que têm acesso restrito ao local, afirmam que os julgamentos são realizados em total isolamento para evitar o vazamento de fotografias que mostrariam os acusados devastados pela tortura, com um evidente desgaste físico: durante a reclusão, muitos deles perderam mais de 30 kg por causa da má alimentação.

Em 3 de fevereiro, foram condenados nessas condições a mítica comandante guerrilheira Dora María Tellez e o líder universitário Lesther Alemán, conhecido por ter desafiado Ortega cara a cara durante os grandes protestos de 2018, pedindo sua saída do poder. Os dois foram trasladados à audiência sem saber que iam a julgamento e foram sentenciados apenas por compartilhar tuítes e vídeos de declarações já difundidas pela mídia.

Ao longo destas semanas, continuam a passar pelo banco dos réus as vítimas da última onda autoritária deflagrada por Ortega e Murillo às vésperas das eleições, primeiro contra políticos da oposição, ativistas, formadores de opinião e meios de comunicação, depois contra a população em geral. A Lei dos Cibercrimes funcionou como o último elo da cadeia de silenciamento: fez com que uma simples frase fosse motivo para prender e prova para condenar.

A ex-promotora María Oviedo foi acusada por declarações feitas no programa Esta Semana, do jornalista Carlos Fernando Chamorro, ele mesmo declarado foragido da Justiça pela promotoria depois de ter se exilado pela segunda vez na Costa Rica. Na entrevista, Oviedo criticou a Lei dos Cibercrimes e exigiu a libertação dos presos políticos.

Nidia Barbosa, de 66 anos, teve tempo de fugir do país depois de uma primeira intimação policial devido a publicações no Facebook. Mas considerou que, na sua idade, o exílio não era uma opção viável. Na véspera da eleição, em 6 de novembro, sua casa foi invadida e revistada. Os policiais a detiveram e ela ficou desaparecida por vinte dias, até que reapareceu num fórum de Masaya, uma das cidades que concentraram os protestos de 2018.

No caso do ativista ambiental Amarú Ruiz, o primeiro acusado pela Lei dos Cibercrimes, a denúncia por difundir “notícias falsas” foi feita quando ele já estava exilado na Costa Rica. “Ordenaram minha prisão sabendo muito bem que estou fora da Nicarágua”, diz Ruiz em San José. “Então, o que eles pretendem? Simples: tentam deslegitimar a grita que eu e outros ativistas estamos fazendo em foros internacionais, onde expomos esse governo negligente e etnocida. O outro objetivo é meter medo nas pessoas que colaboram conosco nos territórios, reunindo informações e colhendo denúncias.”

Assim, onze pessoas foram detidas no ano passado com base na Lei dos Cibercrimes. Quatro já foram condenadas. No caso do opositor Douglas Cerros Lanzas, sua sentença se baseou no fato de ele ter supostamente enviado a um grupo de WhatsApp chamado “Alianças nos Territórios”: “Eu me pergunto quem vai contar os votos. Vão ser roubadas. É esperar as sanções”, diz a mensagem, referindo-se às eleições e às sanções que a comunidade internacional impôs ao regime em resposta ao fechamento de espaços democráticos e às violações dos direitos humanos.

Outro julgamento em curso com provas inconsistentes é o de Santos Camilo Bellorín Lira, um agricultor originário da comunidade rural de Guasuyuca, no município de Pueblo Nuevo, próximo à fronteira noroeste do país. Bellorín também é acusado pela Lei dos Cibercrimes, embora, segundo sua família, ele nunca tenha frequentado as redes sociais “nem as entenda”.

Bellorín Lima é um dos camponeses que formam o núcleo duro da oposição histórica ao sandinismo, mas seu nome nunca havia aparecido na mídia até 6 de novembro, quando as autoridades o enquadraram como “agitador digital”. As provas que a promotoria apresentou para acusá-lo foram capturas de tela de um perfil no Twitter sem tuítes, que, segundo os promotores, provocou “alarme, medo e angústia na população do município de Pueblo Nuevo”. Também atribuem ao agricultor uma mensagem que supostamente teria sido difundida no Twitter em 30 de outubro: “Eleições falsas promovidas pelo ditador Ortega e sua turma de bajuladores, mas mesmo eles estão com os dias contados, e o que conta é a Lei Renascer [lei norte-americana que implica sanções ao governo].”

Para Ortega e Murillo, cibercrime é todo delito que ocorre — segundo seu critério — quando um nicaraguense, com ou sem redes sociais, se manifesta contra eles.

 

Apagão de informação

A exemplo de Sam, eu também resolvi voltar à Nicarágua. Mas as ameaças da promotora Heidy Ramírez, com sua promessa de me condenar a oito anos de prisão por “mentiroso” nos termos da Lei dos Cibercrimes, e uma campanha orquestrada por uma publicação afim ao governo que me acusou de lavagem de dinheiro me empurraram para a Costa Rica pela segunda vez, em junho de 2021. Mais de trinta colegas seguiram o mesmo caminho.

Outros, como o cronista esportivo Miguel Mendoza, acusado por causa de dez tuítes, ou o jornalista e ex-candidato à Presidência Miguel Mora, estão na prisão de El Chipote, descrita pelos familiares dos presos como um lugar de condições deploráveis onde se pratica a tortura sistemática. Dias antes de ser detido, Mora resumiu a situação do país como um “apagão de informação”.

O jornalista e ex-candidato à Presidência Miguel Mora, hoje preso — Foto: Divergentes

 

A Lei dos Cibercrimes instaurou tamanho medo que o silêncio se tornou uma condição indispensável para permanecer no país.

Se devo apontar uma data em que nós, jornalistas, começamos a nos autocensurar, é junho do ano passado. Nesse mês, as autoridades abriram um processo por suposta lavagem de dinheiro contra a Fundação Violeta Barrios de Chamorro, uma ONG que há mais de 25 anos vem trabalhando na capacitação técnica e digital de jornalistas. Mais de sessenta colegas foram intimados pela promotoria.

As redações se desbarataram, e para poder contar algo os jornalistas deixaram de assinar suas matérias. “Parei de assinar porque vi muitos colegas sendo enquadrados, e eu não quis virar mais um alvo do regime. O jornalismo é hoje uma profissão de alto risco. Se para continuar informando eu tiver que ocultar minha identidade, farei isso”, diz um colega que continua na Nicarágua, incógnito.

A Lei dos Cibercrimes, aprovada poucas semanas depois do vazamento de estatísticas do Ministério de Saúde que revelaram a falsidade dos números oficiais de contágios e mortes por Covid, fechou todos os espaços. Antes dela, reportar um país sem acesso à informação pública e onde os jornalistas são inimigos declarados do Estado era complicado, mas restava a brecha dos vazamentos através de funcionários descontentes com o autoritarismo. Agora qualquer vazamento de informação pública está sujeito a uma pena de prisão entre cinco e nove anos. “Duvido que isso acabe com os vazamentos, que sempre existiram historicamente. Tapar esse buraco é quase impossível. Também duvido que o jornalismo contrário ao governo recue. O silenciamento de um povo é um esforço fadado ao fracasso. Nossa história remota e recente o confirma”, afirmou o especialista em meios de comunicação Guillermo Rothschuh.

Mas a tarefa tornou-se praticamente inviável. Um velho ditado diz que um jornalista vale o que valem suas fontes. Na Nicarágua, os especialistas eleitorais, advogados, defensores de direitos humanos, políticos da oposição, líderes da sociedade civil, médicos e todos aqueles que compartilhavam críticas e pontos de vista divergentes pararam de opinar. O caso do cientista político José Antonio Peraza é um exemplo temido. Peraza alertou para a falta de garantias nas eleições de novembro de 2021 no único programa matutino que resta na tevê aberta. Pouco depois, foi capturado pela polícia.

Peraza, cientista político, está preso – Foto: Divergentes

 

“Toda a ação é para infundir terror e sufocar a liberdade de expressão e a sociedade em geral. O que fazem é intimidar para censurar e para que os informantes se autocensurem. Isso afeta o jornalismo independente, que também tem visto os analistas baixarem o tom”, diz Gonzalo Carrión, membro do coletivo Nicaragua Nunca +, exilado na Costa Rica desde 2019. Se estivesse na Nicarágua, ele também se calaria.

Para mim, o mais difícil é dirigir a redação de Divergentes estando no exílio. E acho que posso dizer isso em nome de outros colegas que lidam com a mesma situação: estar atrás de um computador e dar orientações aos repórteres que continuam no país temendo que um deles vire e fale “esse aí só me manda para a rua porque está seguro fora da Nicarágua”. Nunca aconteceu comigo, mas não consigo parar de pensar nisso. Tenho a sorte de contar com o apoio da família, mas é muito estressante saber que, quando publico um artigo, uma viatura policial logo se instala na porta da casa dos meus pais e lá fica durante horas, com as luzes de alerta ligadas.

O desgaste emocional é outra forma de induzir ao silêncio, mas tenho a firme convicção de que fazer jornalismo é não ceder. O jornalismo independente continua publicando como pode e onde pode, como fizemos com esta história.

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