Ao menos três assessores de Braz têm ligação com torcidas organizadas do Flamengo. “São pessoas da minha confiança”, diz o vereador Foto: Renan Olaz/Câmara Municipal do Rio de Janeiro
“Não compactuo com sacanagem”
Os escândalos e a vida parlamentar de Marcos Braz, vice-presidente de futebol do Flamengo e vice-campeão de faltas na Câmara do Rio
“Havendo número legal e invocando Deus pela grandeza da pátria e a paz entre os homens, dou por aberta a sessão.” Tânia Bastos (Republicanos) começou assim os trabalhos do dia, enumerando, em seguida, os projetos que iriam à votação. Um deles propunha criar um programa de apoio a obesos mórbidos; outro, obrigar restaurantes a ter cardápios impressos. Marcos Braz (PL), que consta entre os autores dos dois projetos, não votou a favor. Tampouco votou contra. Naquela tarde de terça-feira, 10 de outubro, o vereador tinha mais o que fazer: deu um pulo no almoço de aniversário de sua mulher, a socialite Ana Paula Barbosa, e passou o restante do dia acertando os últimos detalhes da contratação de Tite pelo Flamengo. O treinador havia sido anunciado no dia anterior.
Braz é vice-presidente de futebol do clube rubro-negro. De tão dedicado à função, faz a vereança parecer uma profissão secundária. Neste ano, acumulava até o final de outubro doze faltas na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Só perdia para Verônica Costa (PL), conhecida como Mãe Loira do Funk, que tinha se ausentado do trabalho catorze vezes. Cada falta acarreta um desconto de mil reais no salário dos vereadores, de 17,2 mil reais. O Flamengo, portanto, já custou a Braz ao menos 11 mil – uma das faltas foi abonada –, e ele diz não receber sequer um tostão pelo trabalho no clube.
Como parlamentar, Braz é discreto. Como dirigente esportivo, nem tanto. Em setembro, viu-se às voltas com a polícia por ter brigado com um torcedor que foi lhe cobrar satisfações. “Marcos Braz, sai do Flamengo!”, alega ter dito o rapaz, um jovem entregador de aplicativo. Muitos torcedores veem Braz como o típico cartola truculento, mais interessado em negociatas do que em futebol. Os dois saíram no tapa em pleno shopping, no Rio. Braz levou um corte no nariz, e o torcedor, segundo o IML, uma mordida na virilha. O episódio rendeu memes e uma denúncia do Ministério Público contra Braz por lesão corporal.
Nada que afetasse seu trabalho político. Embora seja presença inconstante, Braz é benquisto pelos colegas vereadores, que o consideram um político nato. Está em seu primeiro mandato e já conquistou o posto de segundo vice-presidente da Câmara. Pelo regimento, cabe a ele assumir o comando das sessões na ausência do presidente, Carlos Caiado (PSD), e da primeira vice-presidente, Tânia Bastos. Vez ou outra, porém, Caiado passa o comando direto para Braz. Foi o que aconteceu dias depois da pancadaria com o torcedor. Muitos vereadores viram nesse gesto um sinal de apoio ao cartola.
“Ele é um cara que fala com todo mundo, se dá bem com todos os partidos”, atesta o vereador Márcio Ribeiro (Avante). A vereadora Mônica Benício (Psol), viúva de Marielle Franco, volta e meia pede o apoio de Braz para aprovar uma lei, mesmo ele sendo do partido de Bolsonaro. “Ligo pra ele e falo: ‘Ô, meu rústico, preciso da sua ajuda!’ Aí ele responde: ‘Porra, você quer me foder?’ Mas acaba sempre me ajudando na articulação.” Com apoio do cartola, Benício aprovou, no ano passado, o Dia Municipal da Visibilidade Lésbica.
Ele se gaba. “A Marielle tentou colocar esse projeto em votação anos atrás e não conseguiu. A Mônica também não teve sucesso. Cheguei pra ela e disse que ia resolver. Ela achou difícil. Mas não tenho duas palavras, rapaz!”, conta Braz, imodesto. “Os caras acham que só eles sabem costurar? O projeto passou com um ou dois votos de sobra.”
Marcos Braz tem 52 anos, é alto, corpulento e calvo. Sobre a mesa de seu gabinete, na Câmara, três pequenas bandeiras: a do Brasil, a do Rio e, entre elas, a do Flamengo. O cartola nasceu em Nova Iguaçu, filho de uma professora e um advogado influente na Baixada Fluminense, que ocupou diferentes cargos públicos, entre eles o de diretor administrativo do INSS. Quando Braz era criança, a família se mudou para a Zona Sul do Rio de Janeiro, onde ele cresceu.
Braz enveredou cedo pelo mercado imobiliário, cuidando dos contratos de aluguel dos imóveis comerciais da família, mas tinha outras ambições. Em 1995, aos 24 anos, pediu a Cacau Medeiros, advogado conhecido da alta sociedade carioca, que lhe arrumasse um emprego no Flamengo, seu time do coração. Na época, Medeiros era vice-presidente de futebol – cargo ocupado hoje por Braz. O pedido foi atendido, e o jovem iguaçuano, que não tinha experiência no assunto, virou administrador do Fla Barra, antigo centro de treinamento do clube na Barra da Tijuca, hoje desativado.
Por muitos anos, Braz ocupou cargos desimportantes no Flamengo, mas, habilidoso, soube galgar espaço. Estava na diretoria de futebol em 2006, ano em que o Flamengo conquistou a Copa do Brasil sobre o Vasco, no Maracanã. Dois a zero, gols de Obina e Luizão. No ano seguinte, o time venceu o Campeonato Carioca em cima do Botafogo. Bons tempos para o cartola, que, no entanto, deixou o clube poucos meses depois, num desentendimento com a diretoria.
Em 2006, quando teve o primeiro gosto de sucesso no Flamengo, Braz se voltou para a política. Pôs na cabeça que queria ser candidato a vereador, flertou com o PDT, mas acabou sendo barrado. O motivo? Quem explicou foi Cidinha Campos, ex-deputada estadual pedetista, num discurso que fez em 2006, na Alerj. “Evitei, dentro do meu partido, uma candidatura recentemente. Era de Marcos Teixeira Braz. Levei para a comissão de ética do partido e eles acataram o pedido. Marcos Teixeira Braz é filho de Mário Monteiro Braz, que, na minha primeira CPI, aparecia como um ladrão de carteirinha do INSS.”
A CPI a que ela se refere é a CPI da Previdência, instalada no Congresso Nacional nos anos 1990. O pai de Marcos Braz foi citado entre os suspeitos de participar da maior fraude da história do INSS. O esquema, que envolvia advogados e servidores públicos da Baixada, era capitaneado por Jorgina de Freitas, uma ex-procuradora previdenciária que bolou um jeito de desviar dinheiro das pensões usando nomes de pessoas mortas. Ela foi condenada, fugiu do país e se entregou à polícia anos mais tarde, na Costa Rica. Segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), o prejuízo aos erário foi de ao menos 2 bilhões de reais.
“O crime não passa de pai para filho”, continuou Cidinha, “mas, aos 21 anos, esse ‘menino’ já recebia cheques vultosos da Jorgina de Freitas.” Marcos Braz, o menino em questão, nega a acusação. “As denúncias eram contra o meu pai, que foi absolvido de tudo.” O cartola alega que o escândalo foi criado por adversários, já que sua família sempre foi próxima a Simão Sessim, figurão visado de Nilópolis, deputado federal por quarenta anos consecutivos, morto em 2021. “Isso foi consequência da guerra política na Baixada.” Cidinha, hoje com 81 anos, aposentada da política, lamenta que “muita gente saiu ilesa” da CPI. “O pai dele [Marcos Braz], inclusive.”
Braz só voltou a ter um cargo no Flamengo em 2009: tornou-se vice-presidente de esportes olímpicos. Em seguida, depois de uma nova dança das cadeiras causada por uma crise na Gávea, assumiu a cobiçada vice-presidência de futebol. O que acabou se revelando uma sorte tremenda: naquele ano, numa guinada que surpreendeu a todos, o Flamengo conquistou o Campeonato Brasileiro, coisa que não acontecia havia dezessete anos. Braz, um dirigente já vivido, surfou a onda.
O Rio de Janeiro tem histórico de alçar cartolas à política. Em 1982, quando o Flamengo de Zico tinha acabado de conquistar o Mundial de Clubes, o então presidente do time, Márcio Braga, conseguiu se eleger deputado federal pelo PMDB com 57 mil votos. Em 1994, ano em que o Vasco da Gama conquistou pela primeira vez o tricampeonato carioca, Eurico Miranda, o célebre cartola de São Januário, também descolou uma vaga na Câmara dos Deputados. Sua campanha tinha um único mote: “Quero ajudar o Vasco da Gama.”
Marcos Braz poderia ter tido a mesma sorte em 2010, logo depois de o Flamengo ser campeão brasileiro, mas não se candidatou. Não era filiado a nenhum partido. Pior: devido a um conflito entre diretoria e jogadores, deixou o clube ainda naquele ano, junto com o técnico Andrade. Isso não quer dizer, porém, que tenha se afastado do Flamengo: mesmo quando não está ocupando cargo formal, Braz circula entre diretores, dá pitacos e participa das negociações com jogadores. Com sua influência, é capaz de arregimentar votos ou criar obstáculos para os colegas do clube.
Ele voltou às urnas em 2012, filiado ao PSB, mas só recebeu 2.268 votos. Quatro anos mais tarde, chegou a registrar candidatura no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas acabou nem fazendo campanha. Em vez disso, assumiu o cargo de secretário de Esportes e Lazer na gestão do prefeito Eduardo Paes, indicado pelo amigo e senador Romário (na época do PSB, hoje no Podemos).
A derrota nas urnas não abalou seu sonho. Em 2020, Braz se filiou ao PL de Jair Bolsonaro. O partido apoiou a candidatura de Paes e queria que Braz fosse seu vice-prefeito, mas a negociação empacou. A versão oficial é de que o cartola não aceitou o cargo de vice. Nos bastidores, contudo, integrantes do PL contam que foi o contrário: Paes, receoso de dividir os holofotes, vetou o nome de Braz e a conversa morreu ali. Em vez dele, quem ocupou a vaga de vice-prefeito foi Nilton Caldeira, figura pouco expressiva do PL carioca que nunca havia disputado um cargo público.
Ao cartola, restou a vereança. A maré, por sorte, era boa: fazia dois anos que Braz era vice-presidente de futebol do Flamengo. Pegou, com isso, a melhor fase do clube desde Zico: em 2019, os rubro-negros venceram o Campeonato Carioca, o Campeonato Brasileiro e a Libertadores. Por muito pouco, não conquistaram o Mundial. Emulando a figura de Eurico Miranda, Braz passou a celebrar os títulos com um charuto, o que virou sua marca registrada.
A boa temporada turbinou a popularidade do cartola. Tingindo seu material de campanha de vermelho e preto e prometendo investir no esporte carioca, Braz angariou 40.930 votos, sagrando-se o sexto vereador mais votado do Rio de Janeiro em 2020.
“Ele é um candidato barato. Como é conhecido da torcida do Flamengo, o partido nem precisa gastar dinheiro com santinho”, comenta um político filiado ao PL, que pediu para não ter o nome citado na reportagem. Outro correligionário diz – também em off, para não se indispor com o cartola – que “Marcos Braz está pro Flamengo como o bispo Inaldo Silva está pra Igreja Universal”. Silva, um pastor conhecido no Rio de Janeiro, é vereador pelo Republicanos. Está no segundo mandato. “A reeleição do Braz está diretamente relacionada ao desempenho do time em campo. Se o grupo vencer, ele fica. Se perder os títulos, dá adeus ao cargo.”
Braz não concorda. “No ano passado, fomos campeões da Libertadores e da Copa do Brasil e perdi a eleição para deputado federal.” O raciocínio é inexato: embora o Flamengo fizesse uma boa campanha, os dois títulos só foram conquistados depois da eleição. Braz teve 38 mil votos e, na campanha mais polarizada da história recente, tentou agradar direita e esquerda: seu número de campanha era 2213. “Sou independente e o partido sabe disso”, o cartola costuma dizer. Acabou ficando como segundo suplente de Alexandre Ramagem (PL), delegado da Polícia Federal que comandou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e se pôs a serviço do golpismo de Bolsonaro.
Na Câmara, Braz nunca esqueceu a rejeição que sofreu de Eduardo Paes. Nos primeiros meses de 2021, época em que o PL “ainda dava beijo na boca” do prefeito – expressão do próprio vereador –, ele causou atritos com a base governista. Primeiro, votou contra o aumento da alíquota previdenciária dos funcionários municipais, medida encampada pelo prefeito e pelo PL. Depois, votou contra o aumento da carga de trabalho da Guarda Municipal, proposta pela prefeitura. O cartola diz que não agiu por retaliação. E reclama que, por não apoiar o prefeito, não recebe regalias como outros vereadores. “Essa minha independência tem um preço, né? Não ganho nada, esquece. Passo a pão e água aqui.”
Se tem rancores, Braz, por outro lado, nunca esqueceu dos amigos. Entre os funcionários lotados em seu gabinete estão Marcelo Gonçalves, líder da torcida organizada Urubuzada; Beatriz Brandão, mulher de Felipe Amorim, presidente da torcida Fla Manguaça; e Eloa de Souza, vice-presidente de marketing da escola de samba Fla Manguaça. Há espaço ainda para Bernardo Jermann, um sócio-torcedor bem relacionado na Gávea, arroz de festa em eventos do clube. Os salários variam entre 4 mil e 9 mil reais. “São pessoas da minha confiança”, ele diz. “Meu gabinete tem os profissionais mais bem preparados da Câmara.”
Em outubro, enquanto a Câmara Municipal votava seus projetos sobre obesidade e cardápios impressos, Marcos Braz trocava afagos com o high society no restaurante La Fiorentina, na Barra da Tijuca. O aniversário de sua mulher, a produtora de eventos Ana Paula Barbosa, foi assunto em colunas sociais. A página Society Rio-SP destacou a apresentação musical de Tamara Salles, ex-participante do The Voice Brasil, e a mesa do bolo “em tons de branco, amarelo e azul”, obra do decorador de eventos Carlos Lamoglia.
Desde que tomou uma bronca de um amigo cardiologista, Braz faz dieta e exercícios físicos todo dia. Quando viaja com o clube, a geladeira do quarto é igual à dos jogadores: só tem água. “Nunca bebi e nem fumei. Como sou introspectivo, descontava a raiva na comida. Hoje, como ferro.” Nos últimos sete meses, perdeu 26 kg e, com isso, várias roupas. Para o trabalho parlamentar, lhe restaram somente um paletó e duas calças pretas que se revezam na lavanderia. “É o jeito. Não estou podendo ir ao shopping comprar roupa, né?”, ele diz, fazendo graça da pancadaria com o torcedor flamenguista num shopping, há dois meses.
Ana Paula Barbosa, sua mulher, é neta de Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Braz e ela vivem no Jardim Oceânico, uma das áreas mais valorizadas da Barra. No Instagram, posam para fotos passeando de lancha em Angra dos Reis e jantando em restaurantes de luxo. O salário de vereador não é lá uma fortuna, mas ele complementa a renda alugando imóveis que herdou da família. No ano passado, declarou ao TSE um patrimônio de 378 mil reais. Estão inclusos nesse valor uma Mercedes-Benz e, principalmente, o capital de duas companhias: a imobiliária M Braz, sediada em Nilópolis, e a DTS Serviços Integrados de Telecomunicações, empresa que, segundo a Receita Federal, presta serviços tão díspares quanto “coleta de resíduos não perigosos”, “telecomunicações por satélite” e “promoção de eventos esportivos”. Braz explica que a empresa fatura principalmente auxiliando no lançamento de satélites que distribuem sinais de telefonia, internet e tevê no Brasil.
Em três anos de mandato, o gabinete de Braz contabiliza 67 leis aprovadas e em vigor e 87 projetos apresentados à Câmara. Nem todos são de sua lavra; é comum que vereadores coassinem o projeto de colegas como sinal de apoio, como troca de favores ou só para colher os louros alheios. Mesmo assim, os números costumam ser citados por Braz como resposta quando alguém diz que ele falta muito ao trabalho. “Posso até faltar, mas sou coerente com os meus votos. De que adianta vir sempre e compactuar com sacanagem?”
Especula-se que, no ano que vem, o bolsonarista Alexandre Ramagem pode se candidatar à prefeitura do Rio, abrindo com isso uma vaga na Câmara dos Deputados. Se isso acontecer e o primeiro suplente por algum motivo não assumir o cargo, Braz terá o caminho aberto até Brasília. Ele diz não querer. “Se o convite pra assumir a vaga viesse hoje, eu não iria. Gosto muito daqui”, afirma, fazendo em seguida uma ressalva: “Agora, se for a partir de janeiro de 2025, eu topo. É quando termina o mandato do Rodolfo Landim [presidente do Flamengo], e pretendo sair do clube junto com ele.” Ou seja: se tem uma coisa que prende Marcos Braz ao Rio de Janeiro, é o Flamengo. A Câmara de Vereadores é detalhe.
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