Não é brinquedo, não
A arte de presentear crianças entre tantas demandas sociais
Ian mandou duas cartas para o Papai Noel no ano passado.
A primeira para pedir um kit de carrinhos de presente de Natal. Tinha sido claríssimo: descreveu o pacote com dez possantes da Hot Wheels, e para não restar dúvida ainda sugeriu à mãe colocar o link de uma loja que o vendia. Chega o dia, e o que ganhou foram cinco carrinhos de madeira.
Isso o garoto de cinco anos nem percebeu, mas eram todos em material sustentável, comprados numa loja que diz produzir “os brinquedos afetivos em madeira mais desejados e seguros para uma infância brincante!” Ian não disfarçou a decepção quando rasgou a embalagem de papel reciclável. Decidiu escrever reclamando para aquele que acreditava ser o responsável pela confusão.
A piauí conversou com pais, tios, avós e especialistas em infância, do pediatra ao psicólogo, para constatar o que Papai Noel talvez deduza caso leia a segunda missiva de Ian: presentear a criançada, hoje, pode ser um desafio e tanto.
São muitas as questões levadas em conta por gente antenada nas demandas contemporâneas: a discussão sobre papéis de gênero, sem automatizar a escolha de boneca para garotas e bola para garotos; sobre representatividade, descartando uma Barbie loiraça como único modelo possível para as crianças; até sobre neurodiversidade, zelando pela infância de quem é diagnosticado no espectro autista e outros transtornos de desenvolvimento.
Fora os dilemas mil com o consumismo excessivo, que cobra inclusive uma fatura ambiental. O Instituto Alana, que atua pelos direitos da infância, revelou essa matemática sinistra tomando como exemplo a LOL, marca de bonecas colecionáveis que vêm encapsuladas em várias camadas de plástico, como um cebolão lúdico. Febre na meninada, ela foi lançada no final de 2016. Dois anos depois, segundo cálculos da ONG, as vendas da LOL geraram plástico o suficiente para dar quase 24 voltas em torno da Terra.
Ao mesmo tempo, convenhamos que a criança está mais preocupada em ganhar um presente que vá gostar do que em transformar esse instante num tratado socioecológico, ou numa brecha para seus presenteadores mostrarem o quão virtuosos são.
Algo aparentemente simples e tão integrado à nossa cultura, que tem horror a chegar de mãos vazias numa festa, virou esse impasse para muita gente. Algumas dúvidas que a piauí escutou sobre o assunto: vou ser acusado de “lacrar” se der uma boneca para um menino? E se os pais não pensam como eu, mas a criança gosta? E se os pais pensam exatamente como eu, mas o moleque quer mesmo é uma capa do Batman? Pode dar boneca de pele preta para criança branca ou é apropriação? E se o aniversariante está no espectro autista?
Os brindes de festa são um capítulo à parte. Pega mal enfiar tranqueira ultraprocessada, que o pediatra Daniel Becker resume como “uma sacola de plástico cheia de açúcar, corante” e outros venenos? É coisa de mala cobrar que outros pais não forneçam essa ogiva de açúcar porque seu filho no máximo come guloseima artesanal adoçada com uva-passa?
“Muitas questões macrossociais atravessam esse momento”, diz Juliana Prates, professora de psicologia da Universidade Federal da Bahia e membro do Núcleo Ciência Pela Infância, sobre o ato de presentear uma criança.
Ela evoca Régine Sirota, socióloga francesa com foco nesses primeiros anos da vida, que viu nas festinhas infantis um ritual etnográfico rico, que inclui a troca de regalos. “Durante a infância, desejar um feliz aniversário marca-se essencialmente por um presente”, o que envolve “três obrigações: dar-receber-devolver”, explica a europeia. “Indo da compra à oferta até o agradecimento, a construção social do presente de aniversário permite apreender um certo número de princípios que regem o que está em jogo nessa situação específica do processo de socialização”, escreveu a intelectual no artigo Primeiro os amigos: os aniversários da infância, dar e receber.
As questões de gênero ainda são fortes no imaginário popular. Em Olhe as luzes, meu amor, livro sobre suas andanças por um hipermercado dentro de um shopping francês, Annie Ernaux observa brinquedos segregados em gôndolas para “meninos” e “meninas”. “Para eles, a aventura – Homem-Aranha –, o espaço, o som e a fúria – carros, aviões, tanques de guerra, robôs, sacos de pancada –, tudo disponível em tons fortes de vermelho, verde, amarelo”, narra a vencedora do Nobel de Literatura em 2022. “Para elas, o doméstico, a faxina, a sedução, as bonecas. ‘Meu minimercado’, ‘meu kit de limpeza’, ‘minha minicozinha’, ‘meu ferro de passar roupa’, ‘meu kit de cuidados com o bebê’”. Ernaux atenta para a pouco sutil “reprodução do papel social”: é tudo “igual ao da mamãe, mas em miniaturas”.
Embora essa divisão social exista, ela adquire colorações mais pálidas em círculos urbanos progressistas, alérgicos à equação “meninas vestem rosa, meninos vestem azul”, defendida em 2019 pela ultraconservadora Damares Alves, então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo Bolsonaro. Gerente da Roda Gigante Brinquedos, loja de apetrechos infantis aberta há seis anos em Perdizes, na Zona Oeste paulistana, Gabriela Lopes lembra que, no começo, era automático que seus vendedores perguntassem ao cliente: “é para menino ou menina?”. Mudaram a abordagem após um comprador estranhar a pergunta: “E tem diferença?”
Não, não tinha. “Brinquedo não tem gênero”, concorda Lopes. Mas nem todo freguês pensa igual. Fundadora da loja, Patricia Aloi lembra do dia em que pai e filho vieram escolher o que ele ganharia de Natal. “O menino gostava muito de cozinhar, ficou brincando na cozinha. O pai se recusou a comprá-la. Falou, ‘você pode escolher qualquer outra coisa, mas isso é coisa de menina’. E aí ele chorou muito, nossa, deu um dó.”
Pais assim, mais restritivos, são exceção nas lojas da região, mais afeitas à educação progressista, e com rendas familiares mais parrudas do que a média da população – os carrinhos amadeirados que Ian ganhou no Natal passado custavam o dobro dos modelos plastificados da Hot Wheels que pediu. Lopes, a gerente, vê até certo preconceito do seu público com produtos lidos como “mulherzinha” demais. “Tem uma hora que a loja começa a ficar toda rosa, porque tudo o que é meio rosa não sai.”
As expectativas progressistas dos pais, contudo, nem sempre correspondem à vontade dos filhos. Renata Nakano, idealizadora do Clube Quindim, que promove a assinatura de livros infantis que prezam pela diversidade, sacou isso em casa. “Quando estamos dentro da nossa bolha, tudo fica mais confortável. Mas quando saímos, surgem conflitos que se baseiam na fantasia que criamos de controlar tudo o que nossos filhos acessam.”
Aconteceu na sua família. Ela sempre destoou dos parentes por não comprar roupa rosa para as filhas. Mas elas sempre ganhavam da avó paterna. “Quando ela descobriu que eu não gostava, passou a se policiar porque ‘a mãe não gosta’.” Ótimo. Até a primogênita crescer e eleger a cor da discórdia como sua predileta. “Virou piada da minha sogra.”
Da parte dela, tudo certo. “Fiquei feliz em entender que a geração da minha filha não precisa rejeitar o rosa para se posicionar em relação a poder de gênero. Na minha época, ser ‘rosinha’ era pejorativo, no sentido subserviente. Que bom que minha filha não precisa lidar com esse conflito.”
Vários outros conflitos, contudo, acompanham uma troca de presentes. A falta de representatividade até já foi pior, problema que começa a ser atenuado com iniciativas como a Era Uma Vez o Mundo, marca virtual de bonecas de pele preta, idealizada em 2013 por um ex-casal, os hoje amigos Leandro Melquiades e Jaciana Melquiades. A ideia, diz ele, nasceu “a partir de uma necessidade que observamos como pessoas negras, educadores e pais”.
Os dois são pais de Matias, hoje com 13 anos. Quando estavam planejando o enxoval dele, tocaram-se da “ausência quase total de elementos que trouxessem referências de representatividade negra”, conta Leandro. “Queríamos que o quarto dele fosse um espaço de acolhimento e identidade, mas não encontramos nada que dialogasse com essa visão. Foi então que decidimos criar todo o enxoval dele por conta própria.” Viram aí, também, uma oportunidade de negócio. “Percebemos a carência de brinquedos que pudessem reforçar o protagonismo de crianças pretas”, complementa o pai.
Ele não vê pressão, entre seus consumidores negros, para dar uma boneca que reproduza a cor da pele deles. “É uma postura política e um ato de amor. Nós, por exemplo, crescemos brincando apenas com bonecas brancas que ocupavam papéis como médicas, astronautas, ou donas de carros e casas luxuosas. Já as pessoas negras, quando apareciam, estavam limitadas a papéis de prestadores de serviço. Quando um pai ou mãe escolhe uma boneca negra, está dizendo que todas as crianças podem alcançar lugares de destaque.”
E quem pode ter uma dessas?
“Recebemos muitas dúvidas sobre qual modelo seria mais adequado para presentear, especialmente quando a compra vem de famílias não negras”, ele repara. A dica é enfrentar qualquer tipo de receio. “Explicamos que dar uma boneca negra para uma criança não negra não é apropriação, e sim uma forma de educação e sensibilização. É importante que todas as crianças cresçam entendendo que a beleza não está limitada a um único padrão.”
Não só a beleza. A neurodiversidade também vem sendo considerada nessa hora. Julio Cezar, um dos sócios da loja Brinquedos para Autismo, vê “alto potencial de crescimento” nesse nicho de mercado. Um best-seller é o abafador de ruídos, para quem se incomoda com a balbúrdia sonora da cidade.
A equipe é treinada, segundo Cezar, “a atender cada cliente de forma individualizada, porque os autistas são muito seletivos, e sempre recomendamos a escolha de brinquedos com que a criança já possui afinidade”. Vale sempre perguntar aos pais do que ela gosta, e se os pais não têm essa resposta, “sugerimos que busquem conversar com a terapeuta da criança para entender as suas preferências”.
No fim das contas, o que vale mais é conhecer a criança que quer agradar. “Hoje é tudo mesmo um pouco mais confuso, mas nada que perguntar não resolva, né?”, diz a produtora Renata Motta, tia que aos poucos foi sacando o gosto das duas sobrinhas. “Cora odeia vestido e usa boné. Trago boné de viagem pra ela agora, ou livros, que ela ama. Pina gosta de maquiagem, unicórnio e glitter. Pede pra eu deixar os meus sapatos altos pra ela quando eu morrer, e queria uma camiseta do Corinthians, mas que fosse rosa. Eu achei.”
Quem procura, acha. O problema é quando acha até demais. “Na medida em que as crianças vão crescendo e sendo expostas à publicidade”, diz a psicóloga Juliana Prates, “elas passam também a desejar coisas.” Muitas coisas. “Se você coloca uma criança para assistir por uma semana ao Discovery Kids, ela vai ter mil demandas, e vai associando a ideia de felicidade à posse daqueles produtos.”
As menores tendem a ser mais imunes a esse bombardeio publicitário. Basta pensar nos bebês que, diante de um brinquedo caro ou uma garrafa PET, quase sempre dispensam o primeiro item. “Defendo uma infância mais livre do consumismo. A gente deveria presentear menos com coisas e mais com experiências”, afirma Prates.
“Não porque a gente vá abrir mão de dar qualquer tipo de presente pra criança. Isso é muito deslocado e pode gerar um trauma, a criança pode ficar muito triste se você não der nada”, reconhece Maria Mello, que coordena no Instituto Alana o programa Criança e Consumo.
Mas é preciso aprender a navegar na maré digital, que tumultuou um modelo de publicidade infantil clássico, decantado por anos, por leis e autorregulação do próprio mercado, para diminuir uma prática abusiva com um público tão suscetível. “Você tem muito mais volume de propaganda. Na tevê, havia um horário definido para exibir aquela publicidade”, afirma Mello. A internet, sem regulamentação, é mais terra de ninguém. “As leis sobre publicidade infantil que valem pro offline também valem pro online, mas as plataformas muitas vezes preferem ignorar.”
Mudou também “por causa da modulação algorítmica que as redes sociais fazem”, entregando conteúdo para nichos específicos. “Fica muito mais difícil para nós, adultos. Às vezes a gente dá um celular na mão de filhos pequenos, e eles vão começar a receber conteúdo que a gente não recebe. Dificilmente vamos conseguir monitorar.” Mello lembra que a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que os menores de 2 anos não devem ser expostos a telas, entre 2 e 5 anos, ter no máximo uma hora por dia, daí até 10 anos, um teto de duas horas diárias. Entre 11 e 18, um limite de três horas estaria de bom tamanho.
Ela também é mãe, então dá seus pulos para conciliar a teoria com a prática de ter em casa um filho de 6 anos. Já fez amigo oculto na escola com os coleguinhas se presenteando com coisas já usadas, de preferência livros, e feira de troca de brinquedos. A turminha curte bastante, diz Mello. Neste ano, o filho dela deu um robô de sucata e um desenho para seu amigo oculto, e ganhou um livro e um desenho.
Quanto mais velhos, maiores são os pratinhos para equilibrar nessa equação consumista. Aline Barbosa, influencer que no Instagram atende por Mãe Crespa, viu isso acontecer com os seus. “Sempre pergunto aos meus filhos o que gostariam de ganhar no Dia das Crianças. Os guris de 11 e 8 anos não sabiam o que pedir, falaram que não queriam nenhum brinquedo, pois já têm celular. Me senti culpada, mas mesmo assim presenteei com jogos de tabuleiro como Banco Imobiliário, para que assim possam diminuir o tempo nas telas.”
A alternativa tem dado certo, avalia Barbosa. “Fiz combinados com eles: horário para celular, horário para jogar, horário para brincar na rua.”
Daniel Becker, pediatra pop nas redes sociais, é partidário do mantra “menos presente, mais presença”. “Por que a gente precisa continuar dando coisas, objetos, para pessoas que têm tudo?” Para ilustrar seu ponto, ele sugere um exercício de memória. “Você se lembra de algum brinquedo que ganhou na infância? Talvez um ou outro, uma bicicleta e tal. Mas você lembra muito mais do passeio que deu com a sua família no parque, no dia que vocês fizeram um piquenique, que você rolou do barranco. Essa experiência é muito mais benéfica e marcante do que ganhar uma boneca, uma bola a mais.”
Não que os adultos sejam mais evoluídos diante do frenesi consumista. Mas o exemplo, afinal, tem que vir de cima. “Tenho um casal de amigos que não pôde ir no meu casamento. Eles chamaram a gente para um jantar. Achei muito legal. Em vez de dar um presente, deram o presente da presença deles.”
Valorizar mais experiências do que coisas, refletir sobre o tanto de plástico que essas quinquilharias descartáveis geram, levar em conta a diversidade das crianças. Tá, tudo isso é muito bacana. Só cuidado com a “pedagogização da brincadeira”, recomenda Prates. É aquela história de procurar um item pensando em quais habilidades cognitivas e motoras ele desenvolve. “Acho uma apropriação muito ruim, porque o brinquedo tem que servir sobretudo para o prazer da criança na interação com ele.”
Passa também por não tentar impor sua visão de mundo. “Vale a pena sempre trocar uma ideia, saber que família é essa”, afirma Nakano, do Clube Quindim.
Ela se usa de exemplo: jamais daria um pacote de lembrancinhas de aniversário cheio de bugigangas plásticas. Mas de repente sua cunhada tem outros valores, e a vida em sociedade é isso aí. Expor-se à diferença faz parte. “Posso conversar com minha filha e confiar na força do meu exemplo. Mas não posso evitar que ela tenha contato com esses valores diversos se desejo que ela conviva com as primas, ou frequente festinhas de colegas da escola. Não temos como fechar os filhos numa redoma de vidro, num jardim do Éden idealizado.”
Também não tem por que medir todos com sua régua moral. As realidades divergem. Você pode, digamos, concluir que carrinhos de madeira são mais apropriados do que um combo da Hot Wheels para a criança, porque “n” estudos já comprovaram as benesses de brinquedos educativos para o meio ambiente e para as novas gerações. Mas comprar a “marca da moda” é também um marcador de classe em muitos lares.
Pode soar presunçoso e elitista, e a família que trabalhou muito para dar o brinquedo que os filhos do patrão tinham aos montes sai frustrada. Algo na linha “logo na minha vez, não é legal ter isso”, sintetiza Prates. “Tem uma disputa de narrativas aqui, que muitas vezes desconsidera os contextos em que as crianças são criadas, e os desejos delas. Então, não adianta essa minha ideia de reciclar brinquedos, porque o sonho dela é ter uma boneca nova que vem na caixa. Porque é isso que ela nunca teve.”
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