Nelson Cavaquinho, Luz Negra
“A luz negra de um destino cruel/ Ilumina o teatro sem cor/Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor”, canta Nelson Cavaquinho. O sentimento trágico que advém de saber que somos regidos por uma força cega, superior a nós, caprichosa, que decide nossa felicidade ou infortúnio, a impossibilidade de reagir diante do que nos acontece, seja o bem ou o mal, o sentimento de desproteção, o temor, o desencanto e o desespero que isto acarreta, esta luz negra que ilumina o lado sombrio da vida é o espectro sonoro de muitas das canções que Nelson Cavaquinho canta. Em Luz Negra, foi em vão que o poeta passou o tempo procurando alguém para compartilhar suas aflições: sua vida já está se esvaindo e ele continua preso a um inexorável destino infeliz e solitário. O mundo para ele se apresenta como um teatro sem cor e ele representa para o mundo o triste papel de um palhaço do amor. Pois é, a canção popular além de ser um deleite, uma fruição estética, também é um convite a filosofar, a pensar na vida, é um ensinamento sobre as coisas que estão no mundo…
Luz Negra, Nelson Cavaquinho, Amâncio Cardoso, com Nelson Cavaquinho
Programa Ensaio, TV Cultura, São Paulo, Fernando Faro
Palhaço, Oswaldo Martins, Nelson Cavaquinho, Washington, com Nelson Cavaquinho
Há uma grandeza no sofrimento cantado por Nelson Cavaquinho que o aproxima da tragédia grega e também da filosofia estóica. Esta grandeza está associada à noção de destino. O tecido criado pela tragédia grega está embebido na noção de um destino inexorável que se abate sobre os personagens sem que eles nada possam fazer para mudar sua sorte e o destino é comandado pela vontade caprichosa dos deuses. Os seres humanos não têm como evitar o infortúnio. No teatro de Sófocles, por exemplo, o rosto inevitável do destino é a impossibilidade de evitar a dor e é aí que está o trágico. Como ensina Werner Jaeger em O homem trágico de Sófocles, Paidéia, Sófocles revela em naturezas nobres “o caráter iniludível do destino que os deuses impõem aos homens.” A dor constitui uma parte essencial do ser de seus personagens e o homem e seu destino se fundem numa unidade indissolúvel. Por exemplo, em Ájax , Sófocles trata da fragilidade da condição humana e da brevidade da vida e a condição humana é esta – o homem é um joguete nas mãos dos deuses e do destino: “Medito ao mesmo tempo sobre a minha sorte/ E sobre a deste herói, pois vejo claramente/ Que somos sombras ou efêmeros fantasmas/ Vivendo a nossa vida como os deuses querem”. E é esta noção de destino e de sofrimento inevitável que ecoa nas canções de Cavaquinho, criando, num instante, um diálogo entre séculos.
Luz Negra, com Nara Leão
Rugas, Nelson Silva, Ary Monteiro, Garcéx, com Nelson Cavaquinho, programa Ensaio da TV Cultura de São Paulo, Fernando Faro
“Se eu for pensar muito na vida, morro cedo amor/ Meu peito é forte, nele tenho acumulado tanta dor/ As rugas fizeram residência no meu rosto/ Não choro pra ninguém me ver sofrer de desgosto/ Eu que sempre soube esconder a minha mágoa/ Nunca ninguém me viu com os olhos rasos d’água/ Finjo-me alegre pro meu pranto ninguém ver/ Feliz aquele que sabe sofrer”. Nesta canção, a confissão e constatação de que a vida é sofrimento e as rugas, as marcas do desgosto da existência. Então, se viver é sofrer, se não há jeito de evitar a dor, melhor é não pensar, pois o pensamento só aumentaria ainda mais a tristeza, seria um pensamento torturante. Fingir alegria parece ser o único meio que o sambista encontra para não expor a própria dor: há um pudor, uma vergonha em se sentir infeliz e, ao mesmo tempo uma infinita franqueza que o faz confessar o seu fracasso. Neste cenário, a única felicidade ainda possível é aprender a sofrer, é resignar-se à dor. Daí a máxima moral de sentido estóico: Feliz aquele que sabe sofrer. Se o destino está inscrito na natureza, se ele faz parte do homem, não há nada a fazer senão aceitar, resignar-se. Olgária Matos no ensaio Theatrum Mundi: filosofia e canção aponta para a existência de uma filosofia moral nas canções populares brasileiras, filosofia que se constitui como medicina da alma, como orientação para uma vida feliz: “ A filosofia orienta os homens em meio ao emaranhado de enganos, prazeres equivocados, falsos juízos, em que estamos enleados, no mundo e na vida”. Aqui lembro da canção de Cartola, canção conselheira, O mundo é um moinho. Neste samba de Nelson Cavaquinho há um ensinamento, um conselho: já que o sofrimento é inevitável, feliz é aquele que aprende a aceitá-lo.
“Quando eu piso em folhas secas/ Caídas de uma mangueira/ Penso na minha escola/ E nos poetas da minha Estação Primeira/ Não sei quantas vezes/ Subi o morro cantando/ Sempre o sol me queimando/ E assim vou me acabando/ Quando o tempo me avisar/ Que eu não posso mais cantar/ Sei que vou sentir saudade/ Ao lado do meu violão, da minha mocidade”. Velhice, a passagem inexorável do tempo, a brevidade e a fragilidade da existência, outro tema recorrente na obra do sambista. Nelson Cavaquinho nos fala, com sua voz arrastada, embriagada, o mesmo que há séculos atrás nos falou Sófocles, que “o tempo onipotente apaga tudo/ que ocorre neste mundo” ( Sófocles)
Folhas secas, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, com Nelson Cavaquinho
Degraus da vida, Nelson Cavaquinho, César Brasil, Antonio Braga, com Nelson Cavaquinho
Abandono: angústia, não saber se foi abandonado ou não por seu amor. Outro motivo de suas canções. O tempo agônico goteja, escorre. Impossível detê-lo. Impossível saber o que ele nos reserva no próximo instante . O tempo é uma ameaça: não verei mais o meu amor? Nunca mais? Ou como o corvo de Edgar Alan Paul, never more?
Eu e as flores, Nelson Cavaquinho, Jair do Cavaquinho, com Nelson Cavaquinho
Nelson Cavaquinho, o “Baudelaire do samba”, cantou a morte e a deterioração da matéria de maneira crua e chocante: “Quando eu passo/ Perto das flores/ Quase elas dizem assim/ Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”. Há aqui uma verdadeira inversão do sentido de um dos mais tradicionais símbolos do romantismo: a flor, símbolo de pureza, delicadeza, brevidade, afeto. As “flores do mal” que Nelson canta, em sua parceria com Jair do Cavaquinho, é o negativo deste símbolo: mórbidas e resistentes são mensageiras sinistras, mensageiras da morte. Diante da duração da existência humana, a vida da flor é muito breve. Mas neste samba o que é breve e passageiro é o homem; a flor permanece, ela dura e zomba da fugacidade da vida humana. O homem passa, a flor, símbolo, fica e enfeita seu túmulo. Sobre isso falei em meu pequeno ensaio Poetas e sambistas (revistausp, 91).
São muitas as canções em que Nelson tematiza a morte. Depois da vida diz assim: “Passei a mocidade esperando dar-te um beijo/ Eu sei que agora é tarde, mas matei o meu desejo,/ É pena que os lábios gelados como os teus/ Não sintam o calor que eu conservei no lábios meus/ Em seu funeral estás tão fria, amor/ Ai! de mim! E dos beijos meus!/ Eu te esperei minha querida/ Mas só te beijei depois da vida”. Este samba foi gravado também por Paulinho da Viola. Acho difícil pensar em outro samba mais mórbido.
Sobre o sambista, escreveu Nuno Ramos: “Seu violão preparado, percussivo, com notas que batem mais do que ecoam; sua voz absurda, espécie de anti-João Gilberto em seu fôlego mínimo, que se orgulha de dizer que está acabando a cada verso, ou meio-verso; seus temas recorrentes, suas rimas recorrentes e, principalmente, suas melodias alpinistas, subindo e descendo passo a passo à nossa frente, formam um conjunto impressionante de tristeza, dilaceração e morte.”
Nelson Cavaquinho com sua voz rouca e arrastada, seu violão arranhado e percussivo, com sua lúcida embriaguez dolorosa e seu olhar trágico e profundo sobre a existência é a mais perfeita e comovente expressão da nossa frágil, humana condição.
Clique aqui para ouvir A flor e o espinho, com Eliete Negreiros
Juízo Final, Nelson Cavaquinho, Eleio Soares, com Nelson Cavaquinho
Filme Nelson Cavaquinho, direção Leon Hirszman
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