minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Bolsonaristas cercando uma viatura da polícia legislativa em frente ao Congresso Foto: José Luiz Tavares/Futura Press/Folhapress

depoimento

“Nos sentimos abandonados”

Policial legislativo relata momentos de pânico e tensão durante a invasão bolsonarista ao Congresso

M.R.O. | 12 jan 2023_13h25
A+ A- A

No último domingo, 8 de janeiro, uma turba de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília. O Congresso foi tomado por volta das três da tarde. Não havia policiais legislativos suficientes para conter a multidão, e alguns agentes que estavam de férias foram até lá ajudar os colegas. Um deles, lotado na Câmara, relatou à piauí o que viu. Por não ter autorização para falar em nome da polícia e temer uma punição de seus superiores, ele pediu que sua identidade fosse preservada. As iniciais que assinam este relato são fictícias.

Em depoimento a Luigi Mazza.

 

Eu sabia que haveria manifestação no domingo. Temos recebido alerta de protesto todo fim de semana desde o primeiro turno da eleição. É uma coisa corriqueira para nós. Dessa vez, como das outras, não parecia ser nada muito sério. Eu estava de férias, em casa.

De manhã, naquele dia, recebi uma mensagem do meu pai. “Você está trabalhando hoje?” Respondi que não. “Parece que vai ter confusão”, ele falou. Meu pai participa de grupos de WhatsApp bolsonaristas, então estava por dentro dos acontecimentos. Conferi as conversas que tenho com outros policiais, mas tudo parecia tranquilo. Às dez da manhã, as câmeras de segurança mostravam umas sete pessoas de verde e amarelo em frente ao Congresso. Até comentei com um amigo: “Esse movimento tá perdendo força.”

Mais tarde, na hora do almoço, meu pai veio novamente me alertar. Fiquei com uma pulga atrás da orelha. Por via das dúvidas, mandei mensagem para uma amiga que também é policial legislativa e estava de plantão naquele domingo. Perguntei se estava tudo tranquilo por lá. Ela, que é muito dramática, respondeu: “Vem pra cá me ajudar, senão vou morrer.” Ela não estava falando sério, claro. Mas passou um tempo e vi a notícia de que os manifestantes haviam invadido a Cúpula do Congresso. Em seguida, um colega me ligou para perguntar se eu estava a par. Nós mandamos mensagens para os policiais que estavam lá, mas ninguém respondia. Nessas horas o pessoal só se comunica por rádio. Escrevi de novo para aquela minha amiga, que dessa vez me disse: “Morremos.”

Combinei então de ir ao Congresso junto com meu colega, que também estava de folga. Eu estava muito preocupado. Ele me deu carona e chegamos lá por volta das quatro da tarde. O Congresso já tinha sido invadido. Chegavam manifestantes por todos os lados.

Não havia como entrar pela Esplanada dos Ministérios, então estacionamos no Anexo 4 da Câmara. Fui andando até uma salinha onde ficam meus pertences, e ali me equipei com gás de pimenta, taser [arma de eletrochoque], escudo, proteção para as pernas, colete à prova de balas e uma tonfa [tipo de cassetete]. Eu já estava com minha arma de fogo. Finalmente acessei o rádio e me inteirei do que estava acontecendo. Era uma gritaria generalizada. Uma das primeiras coisas que ouvi foi: “Traz o extintor de incêndio porque estão tentando botar fogo no prédio.” Alguém também pediu que desligassem a energia elétrica, porque os sprinklers haviam sido acionados mais cedo e, como estava tudo encharcado, começaram a ocorrer curto-circuitos nas tomadas. Os bolsonaristas, além disso, se apoderaram das mangueiras. Era um completo caos.

Usando um acesso privativo, eu e meu colega chegamos ao plenário da Câmara. O Salão Verde, que fica logo em frente, estava tomado pelos manifestantes. Tinha gente saindo até do teto – literalmente. Algumas pessoas que estavam na Cúpula, acima de nós, conseguiram remover as grades de proteção e descer até o Salão Verde por meio do jardim de inverno [onde fica o mosaico azul e branco de Athos Bulcão]. Tinha gente entrando também pelos salões na parte da frente do Palácio. A porta de vidro do plenário, ao lado da estátua de Ulysses Guimarães, estava estilhaçada. Havia em torno de oito policiais guardando essa entrada, e por isso os manifestantes não conseguiram entrar no plenário – diferentemente do que aconteceu no Senado. O cheiro de gás era insuportável.

Cheguei no plenário procurando meus colegas. Assim que entrei, bati o olho em uma das minhas amigas. Perguntei se estava bem, e ela só acenou com a cabeça. Estava catatônica. Tive que me segurar para não chorar nesse momento. Perguntei aos colegas se alguém estava ferido. Me disseram que não, o que me tranquilizou um pouco.

Fui, então, até a entrada dos fundos do plenário, que é mais discreta, de acesso exclusivo de parlamentares e assessores. Ela estava pouco guarnecida, e havia três manifestantes do lado de fora tentando entrar. Um deles perguntou para nós: “Vocês têm escada para sair daí?” Ignoramos. Ele começou a falar mais alto, gritando: “Vocês têm escada?” Eu disse que não, que estava tudo fechado. Ele disse em seguida: “Estou perguntando isso porque não quero que vocês morram se a gente entrar aí e queimar o prédio.” Depois de um tempo ele desistiu e foi embora dali. Era um senhorzinho de 60 anos ou mais.

 

Passados alguns minutos nesse caos, chegou o choque da Polícia Militar. Uns quinze ou vinte policiais entraram pelos fundos do plenário e foram até a porta. Ouvi um deles avisando pelo rádio: “Vamos esvaziar a Câmara.” A PM formou uma linha, nós formamos outra logo atrás. Começaram a disparar muitos tiros de munição não letal e granada de efeito moral. Marchamos pelo Salão Verde, empurrando os manifestantes com os nossos escudos em direção ao Salão Negro e à chapelaria, que dão de frente para a Esplanada.

O ar estava saturado de gás de pimenta e das bombas. Eu vestia uma máscara N95 que não serviu de nada. Comecei a tossir uns dez segundos depois dos primeiros tiros. Meu olho lacrimejava muito e eu não enxergava. Só consegui achar o caminho porque um colega pôs as mãos nas minhas costas e foi me guiando. Explosões, barulhos de tiro, gente gritando. A maioria dos manifestantes que vi eram homens com idade entre 40 e 60 anos. No Salão Verde devia haver duzentas pessoas naquele momento. Tudo estava quebrado.

Conseguimos empurrar os manifestantes para fora do Salão Verde. Eles desceram pelo Salão Negro em direção à varanda do Congresso, e no caminho quebraram mais vidraças. Nesse momento, encontrei outra amiga – aquela das mensagens dramáticas. Ela parou do meu lado por alguns segundos, perguntou o que eu estava fazendo ali e me falou: “Não vamos chorar agora, né?” Respondi: “Não vamos.” Não nos olhamos mais depois disso.

Eu não sinto medo quando estou na adrenalina. O que senti nessa hora foi muita tristeza e um sentimento de abandono. Tristeza porque gosto demais daquele prédio, da história e do valor que ele tem. Gostava do Congresso mesmo antes de começar a trabalhar ali. Eu não tinha visto, até então, o tamanho da depredação. Foi ali que me dei conta. E abandono porque os reforços demoraram muito a chegar. Onde eles estavam, que não nos ajudando? Quando chegaram, tudo se resolveu rapidamente. Expulsamos os manifestantes do Salão Verde em direção ao gramado do Congresso. Se tudo isso levou dois minutos, foi muito.

Formamos uma linha de proteção na varanda. A Cúpula e a rampa do Congresso, acima de nós, continuavam tomadas pelos bolsonaristas. Alguns deles arrancavam pedaços do piso da rampa e arremessavam em nós. Um manifestante supostamente bonzinho nos entregou um guarda-chuva e disse: “Escondam, porque o pessoal pode usar como arma contra vocês.” Pensei: “Cara, você invadindo o Congresso. Não sei por que acha que está ajudando.”

Em dado momento, chegou a notícia de que havia sido decretada intervenção federal na segurança de Brasília. Alguns bolsonaristas, pensando se tratar de outra coisa, comemoraram. Nessa hora um helicóptero passava dando rasantes em cima do Congresso e jogando granadas de efeito moral para dispersar a multidão. Uma cena impressionante.

Já eram sete da noite quando vimos a cavalaria da PM liberando as vias ao lado do Congresso. Só nesse momento pude ver a Força Nacional. “Finalmente eles apareceram”, nós comentamos. Eles desceram o gramado e expulsaram todo mundo, usando cães e tiros. Pudemos, enfim, relaxar um pouco. Nesse momento encontrei vários colegas que não tinha visto. Me deparei com minha amiga novamente. A gente se abraçou e chorou.

 

Alguns colegas estão passando por estresse pós-traumático, a ponto de não conseguir ir para o trabalho, ou chegar lá e ter crise de choro ou vomitar. As duas amigas que encontrei naquele dia estão mal até agora. Sei de amigos que pediram afastamento temporário do serviço. Alguns estão com dificuldade para dormir. Ainda ouvem barulhos e flashes. Outros ainda estão começando a processar o que viveram. Uma das amigas que encontrei naquele dia estava na Cúpula do Congresso quando os manifestantes invadiram o Palácio. Um deles carregava uma corrente enorme, que começou a girar no ar como se fosse bater nela. Por sorte ela conseguiu escapar.

A amiga que encontrei no plenário da Câmara me contou que teve um lapso durante a invasão. Ela lembra de ver a viatura da polícia cair no espelho d’água em frente ao Congresso. Depois disso, só lembra de estar no Salão Verde, em frente à vitrine onde ficam os presentes recebidos de delegações estrangeiras. Ela ficou plantada durante uma hora e meia ali, segurando uma granada de efeito moral e ameaçando detoná-la caso alguém se aproximasse. Alguns velhinhos puseram uns pontaletes em torno dela e pediram que ninguém a machucasse. Se não fosse mulher, é provável que tivesse apanhado.

Um colega que estava na Cúpula foi cercado e espancado por três pessoas. Só se salvou porque chegou a turma do “deixa disso”, dizendo: “Eles são policiais, são bolsonaristas também, deixa eles saírem.” Ele ficou bem. Outro policial da Câmara também foi cercado pelos manifestantes e se safou por pouco. Eles tentavam empurrar os policiais para fora da Cúpula. Ninguém ficou gravemente ferido. O dano foi principalmente patrimonial e psicológico.

Havia apenas vinte policiais da Câmara escalados para trabalhar naquele domingo. Mas muita gente, como eu, largou as férias ou a folga para ir até lá ajudar. No fim do dia éramos cerca de oitenta. De todo modo, é muito pouco. No feriado de Quinze de Novembro, por exemplo, houve manifestação e foram convocados mais de oitenta policiais para o plantão. O problema dessa vez aconteceu, em parte, porque houve um acúmulo de férias não tiradas na pandemia. Essas férias vencem agora em janeiro, então logo depois da posse presidencial um monte de colegas entrou de férias. Faltou gente.

Mas está claro que também houve negligência. Não faltavam informes dizendo que essa manifestação poderia dar problema. Tudo o que vimos acontecer poderia ter sido evitado.

 

Nossa polícia promoveu, no ano passado, alguns treinamentos pensando na hipótese de a Câmara ser invadida. Sabiam que poderia haver troca de governo, e tínhamos o exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos. Assistimos, entre outras coisas, a um documentário da HBO [Four Hours at the Capitol] que reúne depoimentos de policiais e servidores que presenciaram a invasão ao Capitólio em 2021. Fizemos uma mesa redonda e discutimos como lidar com isso, caso acontecesse na Câmara. Quando assisti ao documentário, lembro de ter pensado: “Como é que os policiais conseguiram perder tantas barreiras, a ponto de o prédio ser tomado tão facilmente pelos manifestantes?” Paguei minha língua.

Vários policiais do Capitólio cometeram suicídio depois da invasão. Então nossos diretores agora estão preocupados em oferecer atendimento psicológico às equipes. De domingo para cá, eu quis chorar várias vezes. Sinto uma coisa presa na garganta, principalmente quando vejo as imagens daquele dia. Me considero uma pessoa aberta aos sentimentos, mas fico preocupado com os colegas que não gostam de olhar para a própria sombra.

No domingo, deixei a Câmara por volta das nove da noite. Os diretores e funcionários da área administrativa já estavam lá, analisando o estrago. Agora estamos tentando, em colaboração com a Polícia Federal, identificar cada pessoa que invadiu o prédio. O Congresso tem câmeras por todos os lados. Imagem, então, não falta. Os crimes que aconteceram lá dentro são de nossa competência, e vamos tentar responsabilizar os criminosos.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí