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Notturno – um feito cinematográfico admirável

Documentário de Gianfranco Rosi narra cotidiano de moradores das fronteiras de quatro países

Eduardo Escorel | 17 mar 2021_09h11
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Notturno (2020) engrandece o cinema. A beleza das imagens e o requinte da trilha sonora oferecem acesso privilegiado a instantes das vidas de mulheres e homens anônimos, jovens e velhos, sobreviventes de guerras civis, ditaduras, invasões e ações do grupo extremista Estado Islâmico, além de integrantes de forças militares estrangeiras. Quem tiver disposição de acolher e capacidade de apreciar o olhar melancólico, e a cadência lenta desse documentário de Gianfranco Rosi, será recompensado. Gravado durante três anos nas fronteiras entre Iraque, Curdistão, Síria e Líbano, Notturno permite testemunhar variadas circunstâncias pessoais que estão na origem da crise dos refugiados – tema de Fogo no Mar (2016), filme anterior de Rosi, comentado aqui em 2016 e questão central do nosso tempo que ele disse considerar “talvez depois do Holocausto a maior tragédia que já vimos na Europa”.

“Senti que seu filme é uma espécie de haiku cinematográfico. Não há respostas fáceis, não há discursos, não há agenda… seu filme causou enorme impacto emocional em mim…” Começa assim a conversa online de Alejandro González Iñárritu com Rosi, disponível junto com Notturno na plataforma de streaming MUBI. No final desse encontro virtual, o diretor de Babel e 21 Gramas disse ainda: “Acredito que seu filme continuará vivo porque não é baseado em uma ideia e se transforma à medida que o tempo passa. O alcance das coisas que você pôs lá… elas terão significados diferentes em épocas diferentes, e seu filme permanecerá vivo. É tamanha realização, Gianfranco, que você deve estar muito, muito orgulhoso, e eu espero que muitas pessoas possam assistir ao filme porque ele é um feito imenso, esteticamente, artisticamente, poeticamente e cinematograficamente. E, ao mesmo tempo, é poderoso, é humano, e eu acho que difunde muito conhecimento e sabedoria. Sabedoria porque ninguém está dizendo ao espectador o que deve sentir, o que deve pensar. Creio que quem tiver um grama de cérebro entenderá quão estúpidos nós todos somos. E como estamos próximos uns dos outros, e isso é muito difícil fazer, como você sabe.”

Rosi parece radiante ao ouvir os elogios de Iñárritu. Devem ter servido para atenuar em parte a provável decepção causada pelo fato de Notturno ter ficado fora da premiação oficial ao estrear no 77º Festival de Veneza, em setembro de 2020. O filme recebeu apenas prêmios atribuídos por júris independentes: o de Melhor Filme Italiano, conferido pelo Arca CinemaGiovani, cujo lema é “Espírito do tempo: um olhar para o presente”; prêmio de crítica social Sorriso Diverso, atribuído também ao Melhor Filme Italiano pela Associação Estudantil “Università Cerca Lavoro”, de Roma; e o prêmio Cinema para Unicef. No mês seguinte, Notturno participou da 44ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, sem causar alarde.

Se o valor de Notturno não tem sido devidamente reconhecido, parece ser mais por suas qualidades e devido ao gosto convencional da maioria, do que por eventuais deficiências que possa ter. Trata-se de um filme excepcional que exige, porém, disposição proativa da parte do espectador para que consiga superar sua habitual passividade.

Mesmo sendo gravado por uma equipe de duas pessoas, nenhuma das quais fala a língua da maioria dos personagens, o documentário supera essa difícil barreira. Rosi, que além de dirigir faz a fotografia e o som, tanto documenta sem interferir quanto recria situações dramáticas e cotidianas – soldados se exercitam à primeira luz do dia. Entram em quadro da esquerda para a direita a cada passagem pela câmera, mantida rigorosamente fixa. O arfar ritmado do grupo irrompe, corta o silêncio, decresce e se repete cada vez que outro grupo entra em quadro; mulheres percorrem antiga prisão, no Curdistão, onde maridos, filhos e irmãos estiveram presos e morreram. Elas choram e entoam lamentos enquanto apalpam as paredes. Uma carpideira mostra a fotografia de um homem morto; o caçador solitário, espingarda às costas, chega de motocicleta. Vai até onde começa uma área alagada, instala-se em um pequeno barco a remo e segue, rio acima, até seu posto de tocaia, onde fica deitado no barco, em silêncio, à espera dos patos. Entrevistos no horizonte distante há poços de petróleo e se ouve ao longe ruído ocasional de tiros.

Foto: Divulgação

 

“O desafio sempre foi encontrar”, Rosi diz a Iñárritu, “algo tão íntimo, e tão profundamente íntimo, que fosse a síntese da vida… e o desafio era não dar uma resposta e não fazer perguntas… e nesse filme eu me aproximei de alguma coisa que é a fronteira… A fronteira, onde filmei, é uma espécie de exemplo de identidade cancelada… e a única maneira de fazer esse filme é abraçar as pessoas que encontrei inteiramente ao acaso… E essas fronteiras, que costumam ser um lugar que divide, foram para mim um lugar de encontros, e foi assim que comecei. Eu fui sem nenhum conhecimento, sem roteiro, sem nada para demonstrar. Eu queria encontrar pessoas. O encontro era, de algum modo, a origem do meu trabalho… Eu espero que, no final, se o espectador tiver a paciência de atravessar o silêncio… Filmar o silêncio foi também um grande desafio para mim…”

A câmera de Rosi está quase sempre no tripé e imóvel. Há poucas panorâmicas e travellings. A lente delimita espaços amplos e raros closes. O estilo visual quase nunca é descritivo. Pelo contrário, o filme resulta da justaposição de planos fixos, imagens variadas de lugares desconexos que formam um grandioso painel. Dado sua duração, talvez fosse mais preciso dizer, agregando a ideia de Iñárritu, que Notturno é uma coletânea de haikus.

Outras duas sequências merecem destaque – a representação do imaginário infantil da barbárie terrorista feita através dos desenhos de crianças; e os ensaios teatrais no hospital psiquiátrico, com internos idosos como atores, vistos depois decorando seus textos.

Foto: Divulgação

 

“Não é por acaso”, diz Rosi a Iñárritu, “que termino o filme no rosto de Ali, um dos dois personagens que não dizem uma única palavra, mas de algum modo dizem tudo com sua expressão… Eu acho que, se o público tiver a paciência de confiar… Cinema depende de confiança, você confia em um encontro, você confia no diretor, você confia no produtor, você confia nas pessoas que conheceu. É tudo sobre confiança. Se tiver confiança de passar de uma história para outra, no final você recebe a resposta. E a resposta, tenho certeza, é a que cada um espera desse filme. Cada um tem uma resposta diferente, e esse é o desafio para mim de fazer filmes…”

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Boatman (1993), Tanti Futuri Possibili. Con Renato Nicolini (2012) e Sacro GRA (2013), todos de Gianfranco Rosi, estão disponíveis no MUBI. Sacro GRA é o primeiro documentário a ter recebido o Leão de Ouro no Festival de Veneza.

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Dia 21 de março, domingo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa de Oliveira e este colunista conversam com Val Gomes e Toni Venturi, codiretores de Dentro da Minha Pele, no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Lançado em agosto de 2020, e disponível no Globoplay, o documentário procura revelar “o racismo estrutural que está impregnado nas relações familiares, nos ambientes de trabalho e faz parte da subjetividade das pessoas negras e brancas” – 9 pessoas comuns, com diferentes tons de pele negra, apresentam seu cotidiano na cidade de São Paulo e compartilham situações de racismo; e seis pensadores refletem sobre o racismo no Brasil. O acesso à conversa com Val Gomes e Toni Venturi, no próximo domingo, 21 de março, pode ser feito através do link https://youtu.be/9OCRjtx4PpI .

A conversa com Angela Zoé, diretora O Samba é Primo do Jazz, que chegou a ser anunciada aqui na coluna, teve que ser cancelada por motivo de força maior.

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