O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega (à esquerda), e Fidel Moreno, homem forte do governo e secretário da prefeitura da capital, Manágua - Foto: Presidência da Nicarágua
O autoritarismo como negócio
Cartel de empreiteiras associado ao regime autoritário da Nicarágua recebeu pelo menos 78 milhões de dólares nos últimos seis anos graças a licitações fraudulentas
Esta reportagem é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile).
Tradução: Rubia Goldoni e Sergio Molina
Os maiores projetos de obras públicas realizados pela Prefeitura de Manágua são sistematicamente outorgados a uma rede de empreiteiras de propriedade de cinco empresários que contam com as bênçãos de Fidel Moreno, secretário de governo de Manágua e braço direito do regime do presidente Daniel Ortega e sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo. Segundo as cópias dos 183 contratos aos quais Divergentes e Dromómanos tiveram acesso, de janeiro de 2016 a fevereiro de 2022 os projetos concedidos a essa espécie de cartel da construção totalizaram 78.346.942,09 dólares. Sem importar a natureza da obra, os contratos foram viciados de duas formas: utilizando ilegalmente a figura de contratação simplificada ou mediante licitações de cartas marcadas.
Durante três meses, os autores desta reportagem entrevistaram funcionários da Prefeitura, pessoas próximas ao cartel da construção e especialistas em licitações públicas, além de outros empresários que trabalham com a Prefeitura, e revisaram os contratos firmados pela administração municipal nos últimos sete anos. A investigação mostra como Moreno vem tomando todas as decisões sobre quem executa as obras públicas da capital, em muitos casos infringindo a lei, e explica a ascensão dos empreiteiros Santiago Arturo Chávez Sequeira, César Moncada Castillo, Miguel Ramiro Rosales Malespín, Marietha Sánchez Campbell e Julio Martín Bonilla Orozco com a cobertura de uma das pessoas mais poderosas do regime orteguista.
Os contratos foram assinados pelo próprio Moreno até 2018. Todas as obras foram outorgadas à rede de empreiteiras sob a figura da contratação simplificada, embora em nenhum caso se cumprisse o requisito da situação de “emergência ou calamidade”, única hipótese em que o artigo 28 da Lei de Contratações Administrativas Municipais (801) permite firmar contratos nessa modalidade. Entre 2016 e 2018, os cinco empresários concentraram a execução de 74 projetos estimados em 26.825.125,89 dólares.
“É um processo ilegal porque simula situações de urgência para aplicar um procedimento extraordinário e assim poder contratar as empresas que eles querem, a seu bel-prazer. Não há nenhum controle sobre isso. É um atalho para a corrupção e um modelo que se repete em todos os municípios sob administração governista, onde esse procedimento é usado à exaustão”, explicou uma especialista em gestão pública com ampla experiência em desenvolvimento de projetos junto ao Estado, que, assim como todas as fontes consultadas nesta investigação, pediu o anonimato por temer a repressão sistemática do governo nicaraguense.
A documentação a que tivemos acesso confirma que, a partir do segundo semestre de 2018, o ex-dirigente da Juventude Sandinista deixou de constar como o funcionário signatário que autorizava as contratações públicas em nome da Prefeitura. Naquele ano, Moreno foi condenado à revelia pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos por corrupção, enquanto a onda de protestos contra o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo paralisava diversas obras milionárias em andamento na capital. A condenação de Moreno resultou no congelamento de suas contas bancárias, tanto na Nicarágua quanto no exterior; a proibição de bancos e organizações americanas realizarem qualquer tipo de transação com o secretário municipal de governo e o bloqueio de todas as suas propriedades dentro da jurisdição dos Estados Unidos. A partir de então, a própria prefeita de Manágua, Reyna Rueda, passou a firmar os contratos. Mas, segundo fontes da Prefeitura, até hoje Moreno continua exercendo poder absoluto sobre as obras públicas da capital.
“A mudança foi rápida. A prefeita foi informada de que ela assinaria toda a documentação relacionada às contratações da Prefeitura, mas com o esclarecimento de que tudo continuaria sob as ordens de Fidel, exatamente como antes da condenação”, afirma uma das fontes governamentais.
Segundo essas fontes, Moreno decidiu abandonar a figura da contratação simplificada para distribuir os projetos entre os cinco empresários até então favorecidos com contratos milionários de obras públicas. A partir de 2020, como consta nos contratos, as empresas começaram a participar de licitações e contratações por menor preço, mas sem rivais que pudessem ganhar a concorrência.
“De início acharam que iriam concorrer com outras empreiteiras que costumam se apresentar em licitações municipais. Mas isso não aconteceu. Na Prefeitura, ignoramos onde essas concorrências são realizadas, sendo que algumas delas deveriam ser públicas, mas nem nesses casos sabemos de nada”, indicou um funcionário da administração.
O que não mudou foi o quinteto de empresários protegidos de Moreno. Desde 2019, a rede de empreiteiras obteve 109 contratos, a 51.521.816,20 dólares.
Em meio à lista de obras outorgadas a essas empresas, segundo os contratos, além da locação de maquinário, do fornecimento de mão de obra e diversos insumos, consta a reabilitação de parques nos vários bairros de Manágua e o melhoramento viário sob o guarda-chuva do projeto-marca “Rua para o Povo”. Também a construção de importantes vias expressas, como a que liga o aeroporto internacional Augusto C. Sandino à rodovia para Sabana Grande e Larreynaga, no Distrito IV. E o loteamento e edificação de conjuntos habitacionais do programa Bismarck Martínez, localizados ao Sudeste de Manágua, um dos projetos mais destacados do governo desde 2018.
Os cinco empresários de Moreno
O empreiteiro que mais faturou dentro da rede tecida por Moreno é Santiago Chávez, proprietário das empresas Chávez y Chávez Construcciones S.A., Concretos y Más S.A. e Materiales de Construcción Santiago. “É o braço direito do Fidel [dentro do cartel]”, disse uma fonte próxima ao empresário. Na sede da sua empresa Concretos y Más, localizada à beira da rodovia para Sabana Grande, na periferia da capital, são realizadas reuniões para planejar a construção das obras outorgadas pela Prefeitura, relatou um funcionário municipal. Desde 2016, as empresas de Chávez foram as mais beneficiadas, com um total de 34.553.895,52 dólares.
Em segundo lugar está Julio César Moncada Castillo, dono da empresa Asesoría y Construcciones S.A. (Aconsa) e diretor do departamento de Engenharia Civil da Universidade Nacional de Engenharia (UNI). Sua empresa se dedica ao planejamento, supervisão e construção de obras civis, bem como estudos de traçado de obras viárias, serviços topográficos e de desenho, entre outros. Seus escritórios estão localizados no Residencial Las Delicias, ao Nordeste da cidade. Fontes da Prefeitura de Manágua afirmam que Moncada Castillo é protegido de Rodolfo Villachica, braço direito de Fidel Moreno dentro da administração municipal e diretor de projetos da instituição. Segundo uma reportagem do jornal La Prensa, Villachica é o administrador de recursos da Prefeitura. É quem está à frente dos projetos mais importantes e o que garante a entrega das obras. No período em que seu padrinho exerceu esse cargo, desde 2016, Moncada Castillo recebeu 33 contratos, que representam 20.764.573,56 dólares.
A empresa de Miguel Ramiro Rosales Malespín, diretor-generalíssimo da firma Asesoría, Diseños y Construcciones S.A., é a terceira da estrutura. Segundo os dados dos contratos oficiais com a Prefeitura, a sede dessa empreiteira está localizada perto do Club Terraza, numa das áreas mais valorizadas da capital, mas não há nenhum escritório da empresa no endereço informado nos documentos. Em visita ao local, uma mansão marcada no Google Maps como sede da Adiconsa, não encontramos nenhuma sinalização externa. O segurança da propriedade disse desconhecer o nome da firma.
Logo abaixo encontra-se Marietha Sánchez Campbell, diretora da empresa Sánchez Soluciones Constructivas S.A., localizada em Altos de Motastepe, Ciudad Sandino. Uma das obras confiadas a essa empreiteira foi a construção do Sino da Paz, um capricho da vice-presidente Rosario Murillo edificado no Centro Velho da capital. O sino não passa de uma enorme torre de concreto que tem no topo um sino dourado que toca às seis da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde.
O último empresário do grupo, ainda que com peso menor, é Julio Martín Bonilla Orozco. Ele participou do esquema por meio de quatro diferentes empresas: Crea Soluciones S.A., Comercial Anmari, Olimpus Investment S.A. e Best Cost Group S.A.
Nenhum dos empresários citados nesta reportagem atendeu às nossas reiteradas ligações aos telefones comerciais, e em alguns casos também pessoais, para apurar sua versão dos fatos.
A origem do cartel
Até 2013, os empresários do cartel da construção de Manágua trabalhavam por separado e executavam algumas encomendas menores da Prefeitura, como confirmaram duas fontes da administração municipal e um empresário que pediu anonimato. Foi nesse ano que Santiago Arturo Chávez Sequeira consolidou sua relação com Fidel Moreno, que desde 2009 já era o homem forte de Ortega e Murillo na capital. Segundo uma reportagem do jornal La Prensa, foi também nessa época que a prefeita sandinista Daysi Torres entregou a Moreno uma procuração por meio da qual compartilhava todas as funções do seu cargo, inclusive a assinatura de contratos de obras públicas.
“Fidel já conhecia Santiago da contratação de obras menores. Os dois se encontraram numa festa privada, conversaram e, poucos meses depois, a aproximação rendeu frutos. Aí foi gestada a relação que os dois mantêm até hoje”, relatou uma fonte próxima a Chávez.
Os primeiros frutos foram cinco contratos que Chávez recebeu em 2013 para reformar o Estádio Independência, todos outorgados pela Prefeitura do município de Estelí sob a figura da contratação simplificada, rompendo assim com os condicionantes da Lei 801, pois nenhum dos projetos foi executado em meio a uma catástrofe ou emergência. A reforma do estádio não era um negócio menor. É nele que joga o Real Estelí, clube que Moreno presidia na época e do qual é torcedor desde criança, pois se criou nessa localidade, no seio de uma família sandinista – seu pai, Emilio Moreno Gutiérrez, foi embaixador na Alemanha e Argélia durante os anos 1980. Embora o secretário municipal de governo tenha deixado a presidência do clube em 2018, até hoje acompanha de perto a contratação de jogadores estrangeiros que ganham milhares de dólares por campeonato, enquanto o jogador nacional médio recebe, quando muito, 15 mil córdobas (cerca de 422 dólares).
Em 2013, as empresas de Chávez ganharam 726.537,89 dólares com a reforma do Estádio Independência, segundo a documentação a que tivemos acesso. Uma fonte próxima ao empreiteiro afirma que o secretário municipal de governo de Manágua ficou tão satisfeito com a remodelação do estádio que, a partir de 2014, reservou para ele as mais vultosas obras. “Como suas empresas não tinham capacidade nem especialidade para executar todas as obras, Chávez foi incumbido de procurar outros empreiteiros que pudessem cumprir todas as etapas e especificações dos projetos.”
Além de assinar os contratos que entregava a Chávez, Moreno também se encarregou de avalizar os outros empresários subcontratados. A condição para participar do grupo foi a confidencialidade. Aos poucos foram sendo incorporados outros empresários, até que em 2016 explodiu o festim de projetos, de início outorgados ilegalmente sob a figura da contratação simplificada e depois concedidos em licitações de cartas marcadas. O cartel de empresas da Prefeitura de Manágua constrói toda e qualquer obra designada pelo secretário municipal Fidel Moreno. Embora cada uma delas tenha sua especialidade, uma fonte próxima à Prefeitura explicou que as empresas emprestam umas às outras seus equipamentos e seu pessoal para cumprir os requisitos especificados nos editais de licitação.
Impunidade e castigo
O predomínio das empresas agrupadas no cartel que se beneficiam dos contratos públicos da Prefeitura de Manágua não foi interrompido nos últimos sete anos, apesar dos atrasos e da execução deficiente das obras sob sua responsabilidade, e até mesmo das dívidas tributárias.
Em Waspán Sul, um bairro localizado no Distrito VI da capital, a construção de um viaduto outorgada à firma Chávez y Chávez, pelo montante de 143.254,64 dólares, durou quatro meses mais que o tempo estipulado no contrato. Na terceira etapa do bairro Hialeah, um casario situado a Sudeste da capital, os moradores denunciaram que as obras de melhorias viárias e pluviais executadas em 2021 pela Aconsa ficaram inacabadas e atualmente se encontram em mau estado.
“Trabalharam umas três semanas, aí foram embora e largaram tudo pela metade. Agora está cheio de lixo”, denunciou Ximena Sánchez, uma mãe de família que transita pela região de segunda a sexta para pegar seu filho na escola.
Segundo a documentação da Dirección General de Ingresos (DGI) – a agência tributária da Nicarágua – à qual tivemos acesso, Concretos y Más, uma das empresas de Santiago Chávez, não pagou os impostos e taxas devidos sobre os 112.819.743 dólares que faturou em 2021 e 2022.
“As empresas devedoras do Estado não podem atuar como empreiteiras junto a nenhum ministério ou órgão de governo. É ilegal uma empresa na condição da Concretos y Más continuar assumindo projetos contratados pela Prefeitura de Manágua”, explicou a especialista em questões de gestão pública que consultamos.
A impunidade que protege os empresários apadrinhados por Moreno contrasta com a situação dos empreiteiros que estão fora do cartel. Estes não podem denunciar as vantagens recebidas pelas firmas ligadas ao secretário municipal de governo. Se fizerem isso, correm o risco de ser definitivamente vetados como fornecedores do Estado.
Francisco, que atua há mais de dez anos como empreiteiro de obras públicas, diz saber das vantagens que beneficiam os empresários do cartel e como eles arrebatam os projetos ganhos por sua firma e que, por “motivos desconhecidos”, finalmente não são entregues a ele. “A gente acaba pedindo trabalho para esses empresários que ficam com a maior fatia. E esse é outro processo, porque eles não subcontratam qualquer um. Às vezes distribuem entre eles mesmos até os trabalhos menores dessas grandes obras”, diz.
Ignacio, um engenheiro civil, fechou sua pequena empresa em 2021 porque repetidas vezes a Prefeitura ignorou suas ofertas e, nas poucas ocasiões em que assumiu alguma obra, recebeu os pagamentos com atraso. “Não dá para competir com os empreiteiros que contam com as bênçãos de Fidel Moreno. É complicado, para não dizer impossível”, diz.
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Todas as fontes consultadas para esta reportagem pediram o anonimato ou que usássemos nomes fictícios, por temerem represálias do Estado nicaraguense.
Os autores desta reportagem procuraram a Prefeitura de Manágua para solicitar a versão oficial do secretário municipal de governo, Fidel Moreno, mas não houve retorno. Também contatamos o gabinete da prefeita, igualmente sem resposta.
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