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questões da imprensa

O aviso de Civita

Um depoimento de quem viveu a Abril de alto a baixo, do auge da editora à crise que o publisher anteviu e não pôde evitar

Claudia Giudice | 21 dez 2018_15h10
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“Agosto, mês do cachorro louco.” Esse foi meu primeiro pensamento quando há quatro meses recebi por WhatsApp as 148 páginas da relação de credores do Grupo Abril. A empresa em que trabalhei por 23 anos tinha demitido 804 funcionários, encerrado a operação de onze revistas, seus respectivos sites e um portal, e acabara de pedir recuperação judicial por causa de uma dívida de 1,6 bilhão de reais. Meu segundo pensamento foi em Roberto Civita. O que meu patrão, falecido em maio de 2013, diria sobre o pedido de recuperação judicial? O que ele, que sempre fez questão de pagar salários rigorosamente em dia, pensaria sobre o plano de recuperação judicial que a nova direção propôs aos demitidos, a maioria com muitos anos de serviços prestados à casa? Será que ele colocaria a mão no bolso para arcar com os 90 milhões de reais da dívida trabalhista? Será que aprovaria a venda da editora pelo simbólico valor de 100 mil reais, e mais sua dívida bilionária, ao advogado e empresário carioca Fábio Carvalho, de 41 anos, um especialista na compra e venda de empresas em dificuldades? Leonino de 9 de agosto, Civita praguejaria contra o destino que o tirou de cena precocemente? Reclamaria dos filhos, que nunca compartilharam com ele a paixão por revistas? Xingaria os executivos salvadores da pátria que ele mesmo contratou? Lamentaria as escolhas nos investimentos em tecnologia e e-commerce? Ou apenas repetiria, resignado, o bordão “eu avisei, mas ninguém me deu ouvidos”?

Sim, Roberto Civita, o rei das bancas no Brasil, avisou. No tradicional almoço de Natal da empresa, do glorioso ano de 2010, quando a editora arrecadou 1 bilhão de reais de receita de publicidade on e off-line e vendeu mais de 190 milhões de exemplares de revistas, Civita pegou pesado. Eu havia sido promovida ao cargo de diretora superintendente de um grupo de mais de vinte marcas e estava eufórica. No lugar de lustrar nossos egos, ele deu parabéns protocolares e mandou uma voadora no pescoço dos executivos presentes. “Façam brindes. Aproveitem este almoço e esse momento. Ele nunca mais se repetirá. O negócio ficará muito difícil nos próximos anos. Temos que correr para mudar a história da Abril.” A fala visionária não era um insight. Ela se baseava no conhecimento dele sobre o mercado de mídia norte-americano, mais maduro e avançado do que o nosso. Roberto Civita sabia que as coisas não estavam fáceis para os parceiros de lá, que enfrentavam a crise econômica e os primeiros efeitos da mudança do modelo de negócio de comunicação impressa. “Temos que migrar para o digital”, repetia ele, um apaixonado por papel couché pintado de tinta.

O tempo parece curto demais para explicar o que aconteceu com a árvore verde e com o país onde ela cresceu. Vale olhar pelo retrovisor da história. Em 2010, a economia brasileira crescia 7,5% ao ano. A taxa de desemprego era de 6,7%. Lula, atualmente preso, era o cara na opinião de Barack Obama. Veja, inimiga do ex-presidente, vendia 1,2 milhão de exemplares por semana e tinha o CPM (o custo de publicidade por mil exemplares) mais caro da imprensa brasileira. Sou suspeita para julgar. Fazia parte do time e cometi erros. O maior foi me calar quando não devia. Mas, até hoje, acho que a estratégia fazia sentido. O caminho para migrar para o digital era sustentar o negócio tradicional e investir em tecnologia e novas plataformas. Naquela época, o feijão com arroz da empresa era farto – os gastos e desperdícios também. Os visitantes que chegavam ao Novo Edifício Abril davam de cara com o busto do fundador, Victor Civita, a missão da empresa e um enorme banner com o logotipo de 54 marcas. Elas eram líderes em 21 dos 25 segmentos em que atuavam, falando com 27 milhões de brasileiros das classes A, B e C. O papo já era on e off-line. A Abril tinha 47 sites e portais e 41 milhões de internautas, que naquela época ainda digitavam URLs. Acredite se puder, ganhava-se dinheiro com mobile, por meio de canais de SMS e MMS. Uma pilha de aplicativos foi lançada quando o negócio virou moda. Vendia-se patrocínio. Veja foi a primeira e maior revista brasileira no iPad (ainda é). A Abril faturou ao criar eventos, como Prêmio Claudia, a Feira Guia do Estudante e os Camarotes da Contigo!. Também apostou na direção certa ao licenciar produtos de marcas como Capricho, que foi bem-sucedida na transição do papel para o digital. Nas recém-nascidas redes sociais, as marcas Veja, Contigo! e Capricho eram soberanas.

Meteorologistas adoram explicar catástrofes com o termo “tempestade perfeita”. Os jornalistas também. Para muitos envolvidos, os ingredientes da atual tormenta estão na história e na composição do grupo. Todo mundo sabia que a crise do modelo de negócio era inexorável. Todo mundo sabia que os herdeiros entendiam a atividade como um fardo chato e pesado. Todos estavam acostumados a viver com dívidas. “Roberto Civita sempre apostou em novidades. Investiu em tevê a cabo, lançou foguete com satélite e trouxe a MTV para o Brasil. Era doido por revistas, mas adorava inovação”, lembrou o jornalista Alfredo Ogawa, ex-executivo do grupo, que em seus últimos anos na empresa trabalhou com Roberto Civita na área de serviços editoriais. “Esta não é a primeira crise nem precisava ter se transformado na pior. O que mudou é que não existe mais a mesma resiliência de seguir tentando.”

A composição atual do grupo ajuda a explicar, na opinião de alguns executivos, o verbo da dívida. A parte mais famosa é a Abril Comunicações, que mantém a editora e dezesseis marcas sobreviventes no on e off-line. Soma 120 milhões de visitantes únicos por mês, de acordo com o Google Analytics. Ela passa por uma crise? Certamente, mas nunca é o lastro que afunda o barco. Encolheu, fatura e lucra menos, mas, sozinha e menor, tem condições de seguir no azul. Depois, tem a gráfica, a maior da América Latina. Ela mora na Marginal Tietê, em São Paulo, e já viveu tempos gloriosos. Os negócios menos conhecidos hospedam o perigo. A Dipar, que já se chamou Dinap, é a empresa de distribuição de publicações. Ela vive uma dupla crise. Primeiro, porque existem menos publicações, em quantidade e volume, para distribuir. Segundo, porque funciona a partir de um modelo de negócio obsoleto e protecionista. Qual é? Os editores, as publicações, entregam seus produtos sob consignação. O risco é total deles. Os distribuidores e os pontos de venda ficam com a maior parte da receita e nunca, jamais perdem dinheiro se o produto encalha. Se não vender, azar do editor, incompetente. Quem bancava essa conta era a Abril. Recolhia o encalhe, armazenava e colocava na banca novamente. Isso fazia sentido quando os lucros eram gigantes. Mas, sob o ponto de vista de negócio, nenhum. Como uma empresa que tem o monopólio do setor pode perder dinheiro? O buraco foi abrindo e, nos últimos anos, a Dipar não pagava nem seus editores, nem a Abril. Ou seja, a venda em banca de suas próprias revistas não pingava no caixa. Isso levou à perda de parceiros importantes, como a Panini, que criou seu próprio modelo de distribuição para vender as figurinhas da Copa da Rússia e de outros álbuns. Isso também ajudou a transformar as bancas de revistas em ponto de venda de quase tudo, menos de revistas.

Finalmente, existe a Total Express, distribuidora de encomendas, comprada em 2011. Ela era uma promessa. A Abril, líder no mercado de revistas, no mundo gráfico, no mercado de distribuição de publicações, queria mandar também no e-commerce. Faltou perguntar se valia a pena. Em 2011, a empresa se livrou da dívida da TVA – operadora de tevê a cabo que fundou em 1991 – e comprou a Total Express por algumas centenas de milhões de reais. Trocou seis por meia dúzia? O negócio do e-commerce só deve entrar no lucro este ano e a concorrência com os Correios, falido e estatal, é desleal.

Quando a recuperação judicial começou, a revista Veja dedicou uma página ao assunto. A reportagem justificou as dificuldades apenas pela crise do modelo de negócio de comunicação impressa, um fenômeno global. O publicitário paulistano Daniel Chalfon, ex-presidente do Grupo de Mídia, não aceita a desculpa. Cliente da Abril por mais de 24 anos, quando foi VP de mídia de grandes agências, conheceu a empresa de fora para dentro. “É fácil falar que o digital é o inimigo da Abril. Discordo. A empresa sempre foi a melhor na produção de conteúdo e hoje existem várias empresas de mídia vendendo conteúdo de qualidade com sucesso, como o Financial Times e o New York Times. Na minha opinião, o maior erro foi de gestão. O grupo teve uma sucessão de gestores pseudossalvadores da pátria, que ficaram milionários pensando apenas no seu próprio bolso”, disse Chalfon. “A Abril mandou os jornalistas embora e deixou de fazer conteúdo de qualidade, para sustentar esses caras.”

O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e o Comitê dos Jornalistas Demitidos da Abril fazem coro à fala de Chalfon. “Parte da crise é global e impactou a imprensa do mundo inteiro. Outra parte deve-se ao fato de a Abril ter perdido o contato com a pluralidade de opiniões e se afastado da diversidade que caracteriza a população brasileira. Além disso, uma gestão sem interesse no editorial sucateou as redações, não soube investir em produtos digitais e comprometeu a qualidade de suas publicações sob o pretexto de ‘cortar custos’. Além disso, deu ouvidos apenas a executivos e consultorias, sem levar em consideração os profissionais da reportagem e o público”, descreve um documento divulgado dias depois da recuperação judicial, compartilhado milhares de vezes nas redes sociais.

Depois da morte de Roberto Civita, o grupo teve quatro CEOs. Ex-presidente do conselho de administração do banco Santander, Fábio Barbosa foi contratado por Civita em agosto de 2011 e partiu em março de 2015. O herdeiro e primogênito Giancarlo Civita assumiu o posto por um ano. Em março de 2016, o publicitário Walter Longo retornou ao grupo na intenção de modernizar a empresa e talvez vendê-la. O mandato durou 21 meses. Assumiu em seu lugar o advogado Arnaldo Tibyriçá, vice-presidente jurídico da empresa por mais de quinze anos. Acompanhado da consultoria Legasi, sua passagem como CEO durou quatro meses. Não aguentou o tranco. Giancarlo assumiu, então, a posição. Ali, junto com a Legasi, desenhava-se um enxugamento grande da empresa, especialmente nas áreas de apoio que eram desproporcionais ao negócio principal: produção de conteúdo.

 

A dança das cadeiras não parou. Desde julho, a editora esteve, mais uma vez, sob nova direção. Os herdeiros e irmãos, Giancarlo, Roberta e Victor Civita Neto, trocaram a Legasi, que não era especializada em recuperação judicial, pela Alvarez & Marsal. A consultoria também chegou para assumir a gestão. Trataram do assunto de modo silencioso e discreto. Assim que o contrato foi assinado, Giancarlo e Victor, presidente do conselho editorial, reuniram os executivos graduados em uma sala para dar a notícia. Foi um comunicado rápido como quem furta. Agradeceram, saíram e deram a ordem de limpar seus escritórios até as 16 horas daquela tarde. Hashtag: adeus Abril. Nas entrelinhas, revelaram que não queriam mais perder nem colocar dinheiro no negócio. Aos amigos, confessaram que adorariam se livrar do que sobrou. Nesta quinta-feira, 20 de dezembro, realizaram o desejo.

O pedido e o plano de recuperação judicial são obra do especialista em agronegócio Marcos Haaland, sócio da Alvarez. Ele se tornou presidente da Abril em agosto, mas não aparece no expediente da Veja e de nenhuma outra publicação. Entende de jornalismo tanto quanto um mecânico, de decoração. Estilo calado e respeitoso, colocou o executivo Maurício Pela para cuidar das áreas principais da empresa, que chamou de mercado (publicidade, editorial e assinaturas). No primeiro dia, Pela fazia as perguntas de sempre: qual a diferença entre um diretor de redação, um editor e um repórter? Por que o primeiro ganha tanto? No dia seguinte, já se portava como se tivesse a experiência de um Gay Talese. Os novos consultores aproveitaram o plano desenhado pela Legasi e acrescentaram nomes, na linha massacre da serra elétrica, para fechar o número. Demitiram 804 funcionários, eliminando quase todos os executivos que administravam o negócio editorial. Na semana seguinte, Haaland deu um golpe ninja. Transformou os ex-funcionários em credores da recuperação judicial. As dívidas trabalhistas somavam 90 milhões de reais, e a Abril propôs quitá-las integralmente – até o teto de 238,5 mil reais (250 salários mínimos) por funcionário – em doze parcelas a partir da aprovação do plano da recuperação judicial. Para os funcionários com mais dinheiro a receber, a proposta é a mesma feita aos bancos credores: um desconto de 92% sobre a dívida principal e o pagamento do saldo em dezoito anos. Ou seja, os empregados mais antigos, com mais de 250 salários a receber, são os mais prejudicados.

Os ex-funcionários e os sindicatos, em especial o dos jornalistas, protestam desde então. Manifestações, advogados e uma campanha batizada de “Abril com Fome” pedem o pagamento de direitos trabalhistas básicos. Em novembro, em duas assembleias, recusaram a proposta do plano e decidiram brigar na Justiça pelo pagamento integral da dívida. “A nossa família de trabalhadores está dizendo para a sociedade que os Civita e quaisquer novos donos da Abril não podem fugir à responsabilidade de pagar quem construiu o império que foi a editora”, disse Patricia Zaidan, ex-redatora chefe da revista Claudia e líder da campanha. No último dia 19, um dia antes da venda da empresa, Haaland recebeu Zaidan e outras três ex-funcionárias para uma conversa. Foi solidário em relação à pauta dos ex-funcionários e fez um mea-culpa ao assumir que foi difícil a decisão de não pagar as verbas rescisórias no momento das demissões. “Foi a última alternativa possível. Naquele momento, não tínhamos perspectiva nem de honrar a folha de pagamento. Foi uma tentativa de preservar a companhia”, disse Haaland, sem tratar da venda e de futuros aportes, conforme as jornalistas divulgaram na página dos ex-funcionários.

A ex-principal executiva editorial da empresa, Alecsandra Zapparoli, foi um dos profissionais que não suportaram o karatê kid da recuperação judicial. Depois de trabalhar por quase vinte anos na empresa, ela jogou a toalha. Não por temer a recuperação, mas pela maneira como as coisas foram conduzidas. Com três filhas em idade escolar, a jornalista tirou férias em julho. Lá, foi surpreendida pela notícia de que tinha chefe novo com um telefonema dos dois acionistas. O novo chefe não assinava os sobrenomes Civita, nem Haaland. Era um dos “doze homens e um segredo” da consultoria. Trabalhei com a Alecsandra em 2002. Somos amigas nas redes sociais. Quando soube do acontecido pelo Facebook senti meu estômago queimar por ela. Como assim? Custava ao presidente-herdeiro incluí-la no processo de mudança?

Com o comando esvaziado depois de quatro anos comendo grama, a bile negra misturou-se ao sangue e Zapparoli disse adeus. Com um post no Facebook, ilustrado por um vídeo no qual dava murros em um professor de boxe, ela escreveu: “Há pouco mais de um mês precisei literalmente começar a lutar para extravasar. Muito tempo resiliente num contexto que era um convite à desistência. Não tem luta fácil. Nunca. E perdendo ou ganhando, a verdade é que eu adoro lutar.” Zapparoli sabia que a empresa estava se preparando para pedir recuperação judicial. Sabia do desejo dos herdeiros de sair andando para sempre. Mesmo assim, junto com alguns executivos tentou de tudo para que isso não acontecesse. Os acionistas e o novo presidente garantiram que esta seria a última opção. Não era verdade. As cartas estavam jogadas. Zapparoli também virou credora e não sabe quando verá a cor do dinheiro ao qual, por lei, tem direito.

Dias depois da recuperação judicial, Marcos Haaland se apresentou aos funcionários sobreviventes. O foco era justificar a decisão radical e repetir o mantra da necessidade de um novo desenho para a empresa. “Não é segredo para ninguém que faz alguns anos que a Abril está enfrentando problemas. Era uma bola de neve, cada vez maior. Tivemos que tomar medidas que estão causando muitas dores, mas que são necessárias. Quero deixar bem claro que a recuperação não é calote, não é declaração de falência, nem é um sinal de que a empresa é inviável. A recuperação é uma forma de proteger o grupo judicialmente”, afirmou o executivo. Quando cedeu a palavra para perguntas, Haaland foi metralhado por funcionários e colaboradores preocupados em saber se receberão os salários em dia. Desde então, o clima na empresa é de salve-se quem puder.

Os últimos parágrafos da crônica anunciada por Roberto Civita formam uma equação simples. Gestão ruim + negócios em crise + gastos exagerados + falta de confiança nos herdeiros = falta de dinheiro. Dias antes do pedido de recuperação judicial, os bancos fecharam a torneira do crédito. O caixa secou e a decisão de pedir a recuperação judicial tornou-se irreversível. Com ela, os herdeiros viram uma oportunidade de se verem livres do negócio e de sua dívida. Recuperação judicial é ruim para a empresa, que confessa: devo, não nego e pago quando acabar o processo. Pior para os credores que estão na boca do povo. A lista é pública. A lista é despudorada. Revela o salário, o CPF, o endereço, o CEP de todos os que não foram pagos pela Abril. Entre eles estavam os demitidos e também os funcionários sobreviventes. No primeiro clichê de agosto estavam pequenos e grandes prestadores de serviço. Empresas micro e gigantes do Brasil e da Finlândia. Bancos reunidos sob o guarda-chuva da corretora Planner, que atua como agente fiduciária e era credora de 1 bilhão de reais da dívida. No rol inicial, para meu espanto, estavam também os três herdeiros do grupo Abril. Giancarlo Francesco, Roberta Anamaria e Victor Neto, que foram citados doze vezes e tinham a receber em torno de 200 milhões de reais.

Como é? É. A jogada é lícita. “Os administradores de uma empresa podem fazer mútuos, isto é, emprestar dinheiro, como pessoa física, para a própria companhia. Quando esse empréstimo é feito, não se aumenta o capital social da empresa, mas cria-se uma dívida”, explicou a advogada Marina Coelho Araújo, sócia do escritório de advocacia CAZ Sociedade de Advogados, especializado em Direito Penal Econômico. Na prática, isso significa que se, porventura, tudo acabar bem, o trio pode receber seu dinheiro de volta.

 

Trabalhei na Abril uma vida. Por isso, repito que tenho o meu quinhão de responsabilidade e culpa nesta crise. Só saí porque fui dispensada. Sofri para burro, porque achava que podia fazer a diferença, porque amava e confiava no futuro da empresa. Esse amor não era exclusividade minha. Era coletivo. Para escrever este texto, entrevistei muita gente. Dois deles jovens talentos, filhos da Abril, que saíram da empresa para brilhar no mundo digital. Marina partiu em 2014 para crescer em uma companhia de rede social. Não pode falar on the record por regra da atual empresa. Respeito. Conversamos por mais de uma hora. Ela conta que no dia seguinte à recuperação judicial, os colegas de trabalho paravam na frente da mesa dela e perguntavam se estava tudo bem. “Eles me deram pêsames. Pode parecer estranho, mas só fui contratada há quatro anos por esta empresa digital porque trabalhava na Abril. Lá aprendi tudo sobre compromisso, negócio, empreendedorismo. Aprendi o valor da qualidade. Aprendi que um país precisa de democracia e imprensa livre.”

O publicitário Alessandro Sassaroli, chefe da área de games do YouTube na América Latina, tem história semelhante. Também foi contratado porque vinha da Abril e compartilha do orgulho de Marina. Cinco anos depois, segue usando a experiência para criar estratégias digitais. Por que saiu? “A esbórnia corporativa, o excesso de gastos e as escolhas erradas nos investimentos digitais começaram a me incomodar. Decidi que não podia fazer 40 anos lá dentro. Não temia a falência, mas não queria deixar de crescer como profissional.” Quando fala em erros na estratégia digital, Sassaroli se refere a um investimento parrudo feito em uma plataforma de venda de produtos digitais. Batizado de Iba, ele pretendia concorrer com a Apple Store e com a Amazon. Funcionou, mas não conseguiu bater os gigantes. Custou 300 milhões de reais e hoje tem pouca valia. O mesmo excesso prejudicou o projeto Alexandria. Tratava-se de um programa de publishing luxuoso, customizado para a empresa, que custou 100 milhões de reais. Funcionava bem, mas era caro, muito caro, para um mercado em crise. Em 2016, pouco antes de ser desligado, tinha um custo de manutenção anual de 16 milhões de reais. O WordPress, seu substituto, custou 8 milhões.

São 100 milhões de reais aqui, outros 300 milhões ali. Não é difícil somar dois mais dois e chegar à equação da tempestade, ou do coquetel, como prefere o jornalista Denis Russo Burgierman, ex-diretor de redação da Superinteressante, uma das marcas inovadoras do grupo. “A empresa foi vítima de um coquetel de crises simultâneas: da mídia, da economia, da sucessão na família. Tenho para mim que a maior foi de confiança. A editora esqueceu de que precisava falar com todo mundo. Embarcou na canoa furada de ter um projeto político e usar suas capas para fazer campanha de ataque a reputações. A ironia é que, quando percebeu e tentou mudar de rumo, foi vítima de suas próprias criações. A direita irracional, cultivada pela Veja, passou a acusá-la de petismo, e abandonou-a também”, disse Denis, que identifica o New York Times como modelo a seguir. Ele, no entanto, não tem esperança quanto ao futuro da Abril. Eu, otimista incorrigível, tinha. Acreditava que, em boas mãos, as marcas e o espírito da Abril podiam sobreviver. Rezava para que algum investidor se interessasse em gastar dinheiro para garantir a pluralidade de opinião e a democracia no país. Hoje, não sei se minha reza foi forte o suficiente. Aos cuidados de quem Roberto Civita entregaria a árvore que plantou?

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