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    Txai Suruí e João Moreira Salles Foto: Fernanda Catunda

flip 2024

O colapso ambiental, em realidade e ficção

Questões ecológicas, sociais e políticas em duas mesas na Casa de Histórias

| 13 out 2024_10h15
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“Imagina vocês estarem na casa de vocês e alguém invade essa casa, ameaça sua família e diz que agora aquele lugar é dele. Que você não pode mais exercer sua espiritualidade. Que você vai ter que sair dali. Quando você chega na cidade, também não é um lugar onde você é bem-vindo. Quando você vai para a cidade, você não é mais indígena. E sua identidade é quem você é. Quem sou eu, se não sou uma mulher indígena da Amazônia? Eu não sou ninguém. Se eu não sou ninguém, eu estou viva? Ou só estou sobrevivendo?”

A fala é de Txai Suruí, em uma cena filmada por João Moreira Salles, documentarista e fundador da piauí. A ativista indígena de 27 anos, que se tornou uma liderança nas discussões internacionais sobre a crise climática, será retratada em seu próximo documentário, Minha Terra Estrangeira, previsto para o início de 2025. Os dois conversaram neste sábado (12) na Casa de Histórias, na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. O espaço é promovido pela piauí em parceria com a Netflix, a Janela Livraria e a editora Mapa Lab.

Salles exibiu quatro cenas do documentário à plateia e a Txai, que não as tinha visto até então. As filmagens foram feitas em Rondônia, onde a ativista nasceu e ainda vive. Retratam momentos de reflexão, numa conversa à beira de um rio. Txai fala de sua autopercepção como alguém de identidade fracionada – que não se encaixa mais no universo de seus antepassados, devassado pela colonização, nem na cidade, território dos colonizadores.

“Existe é um projeto de apagamento do nosso povo. Vem desde quando os colonizadores chegaram aqui”, ela comentou, depois de assistir a um dos trechos. O primeiro contato dos suruís de Rondônia com o homem branco ocorreu em 1969. Almir Suruí, pai da ativista e ele próprio uma importante liderança do movimento indígena, tinha 5 anos na época. Foi o primeiro da família a aprender o português. “Rondônia hoje é um dos estados que mais desmatam, que agora elegeu uma câmara municipal só de direita, com aqueles que legislam contra nós. Isso apesar de Porto Velho ter ficado dois meses inteiros sob fumaça, tendo alcançado o patamar de pior ar do mundo. Esse processo de apagamento continua e está em volta de nós. Toca na rádio, é o que a gente lê, passa nas novelas da Globo.”

Almir se candidatou a prefeito de Cacoal pelo PDT, na eleição deste ano. Recebeu 1.929 votos, o equivalente a 3,98% do total, e ficou em terceiro lugar. Txai disse que, na campanha do pai, se impressionou com as reações explicitamente racistas do eleitorado, manifestadas em comentários na internet. “Falam que somos essenciais, necessários, mas ainda nos veem como incapazes, selvagens, ignorantes. Isso me machucou muito. Meu pai é uma inspiração pra mim, já ganhou prêmio na ONU, dialogou com os maiores líderes internacionais. Não quero ver ele sendo tratado de forma negativa só porque não fala português direito. Só porque erra o plural. Ninguém reclama quando é um gringo errando.”

Txai e Salles discutiram o aspecto cultural da colonização, que é menos evidente e tão danoso quanto a devastação material. “O agronegócio, essa cultura do campo levada à Amazônia pelos imigrantes do Sul na década de 1970, é mais que um vetor econômico. É um modo de estar no mundo”, disse o documentarista, autor do livro Arrabalde: em busca da Amazônia (Companhia das Letras, 2022). “É o que chamo no livro de ‘cultura do boi’. Ela não se define pelo dinheiro, porque na verdade é um trabalho mal remunerado. É uma cultura com um referencial de sucesso, daquilo que você quer ser se quiser dar certo na vida. É a comida que você come, a festa que você frequenta nos fins de semana, o jeito que você se veste, o carro que você dirige. É uma forma de se ver. Isso é muito poderoso.”

Segundo Txai, a cultura rural descrita por Salles contamina também os indígenas de Rondônia. Alguns deles, embora duramente afetados pelo descontrole da grilagem provocado pelo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), optaram por votar no ex-presidente na última eleição presidencial. “Essa batalha que a gente está travando é também uma batalha pela captura da mente”, afirmou Txai. “O vice do meu pai, o Anderson, fala da importância de a gente fortalecer nosso próprio pensamento. É isso que vai nos proteger de sermos capturados pelo pensamento do capitalismo. Fortalecer o nosso modo de vida.”

“Fico pensando se o filme feito por mim é capaz de revelar as mesmas coisas que se o filme fosse feito por um indígena”, comenta Salles, por trás da câmera, em uma das filmagens que fez de Txai. “Um filme feito por outra pessoa com certeza seria diferente. Seria uma outra Txai”, ela responde. “Não seria um filme sobre a luta. A gente fica falando de luta. Se fosse um filme indígena, não seria sobre isso. Poderia ser sobre a floresta. Sobre a minha conexão com a floresta. Aquilo que entendo, que sinto. Poderia ser sobre qualquer coisa. Como uma jovem mulher indígena se diverte nesse mundo? Poderia ser sobre romance. O que é o amor pro indígena? Eu sou ativista, mas eu não sou só isso.”

Depois de exibir esse trecho, Moreira Salles explicou que, na feitura do filme, teve de lidar com questões que, dez anos atrás, não passariam pela sua cabeça. “Antigamente, se eu fosse fazer um filme sobre você, eu faria um filme sobre você”, ele disse a Txai. “Mas nesse caso fizemos uma coprodução. O filme é dirigido por mim e por um coletivo.” Essa outra equipe, formada por profissionais indígenas, acompanhou Almir Suruí em sua campanha para deputado federal em 2022, na qual acabou não eleito, enquanto Salles seguiu os passos de Txai.

Salles contou que, concluída a etapa da primeira montagem, exibiu o documentário em Rondônia para Txai e o coletivo, em sessões separadas. As reações colhidas a essa primeira versão foram as mesmas: “O filme é politicamente errado”, disseram. Houve então, segundo o documentarista, uma reviravolta na montagem. “O filme era linear, e a Txai me disse: ‘Essa lógica de tempo linear é de vocês lá embaixo. Nossa lógica de tempo é outra.’ O filme foi profundamente alterado na sua estrutura.”

 

Na mesa seguinte, o repórter da piauí Bernardo Esteves apresentou o painel Como narrar a crise climática?. Foi uma conversa com os escritores Natalia Borges Polesso e Pablo Casella, que em anos recentes enveredaram pela escrita de ficção com temática ambiental. Os três discutiram uma questão presente na literatura contemporânea: devemos categorizar esse tipo de escrita como “ficção climática”? O termo em inglês, climate fiction – ou cli-fi –, vem se popularizando, e alguns autores se reconhecem nessa categoria.

Polesso publicou, em 2021, A extinção das abelhas (Companhia das Letras), um romance distópico que se passa num Brasil diferente e ao mesmo tempo parecido com o país que vemos hoje. Na história, a crise climática se agravou a um ponto incontornável em várias partes do país. As abelhas foram extintas; o café se tornou um produto escasso e luxuoso.

“Quando comecei o livro, não pensei em ficção climática, mas acho que pode ser classificado dessa forma, sim. É um jeito de organizar esse conjunto de ficções que estão falando de coisas importantes do presente”, disse Polesso. A escritora relatou que, embora o projeto do livro seja uma distopia, a história caminhou naturalmente para um formato mais realista. Os tempos atuais já contêm elementos que associamos a distopias do futuro.

Casella, por sua vez, é um autor estreante. Trabalha como analista ambiental no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e serviu durante vinte anos no Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. Seu romance, Contra fogo, foi publicado este ano pela Companhia das Letras e conta a história de um grupo de brigadistas voluntários que se arrisca combatendo incêndios na Chapada Diamantina.

“A Chapada é um microcosmos do Brasil. Temos ali pais ausentes, tóxicos, violentos, mães solteiras, alcoolismo”, explicou Casella. O autor veste a carapuça da ficção climática, embora considere que ela pode ter o efeito negativo de tornar a crise climática um assunto de nicho, reservado a uma estante esquecida nas livrarias. “Considero meu livro como um romance de formação, porque a gente acompanha um período da vida do personagem que narra a história. Ele é o arquétipo de muitos brigadistas que conheci na Chapada.”

Esteves, que há anos cobre ciência e meio ambiente pela piauí, perguntou se os autores consideram a ficção uma ferramenta mais eficiente que o jornalismo na conscientização sobre a crise climática. “Sinto que a mensagem ainda não chegou para muita gente. Vocês acham que livros são capazes de mexer com as pessoas de um jeito que o jornalismo não consegue?” Polesso respondeu que sim. “Mas sou partidária do jornalismo, e especialmente do jornalismo especializado. Quando é feito com profundidade, ele chega nas pessoas.”

Casella, ao responder, relembrou que alguns cientistas defendem, de forma provocativa, mudar o nome da espécie Homo sapiens. Em latim, sapiens significa sabedoria, inteligência – algo que, segundo eles, não é exclusivo dos humanos. O que nos diferencia de outros animais, eles dizem, é a capacidade de fabular. Aí reside, para Casella, a força da literatura. “A fabulação é inerente a nós. Quando a gente entra em sintonia com isso, a gente consegue chegar em instâncias humanas onde o intelecto não chega. Isso é arte, é ficção.”

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