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O cometa por trás do arco-íris

E se nós, em vez de fingir, reconhecermos que o cinema brasileiro está em agonia?

Eduardo Escorel | 05 jan 2022_09h03
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“Chegou-se a um final feliz” em 2021, escreveu Carlos Helí de Almeida ao fazer uma retrospectiva do ano para o Segundo Caderno do jornal O Globo, no dia 28 de dezembro. Chocado com o disparate, foi difícil resistir ao impulso de atear fogo às vestes.

Mesmo em avaliação circunscrita ao cinema, não há justificativa plausível para crer no que os versos da famosa canção professam em O Mágico de Oz (1939), na voz de Judy Garland: “Somewhere over the rainbow, way up high/There’s a land that I heard of once in a lullaby/Somewhere over the rainbow, skies are blue,/And the dreams that you dare to dream, really do come true…”

Cena do filme ‘O Mágico de Oz’ – Foto: Reprodução

 

Os sonhos de quem faz cinema no Brasil não têm se tornado realidade há um bom tempo, quanto mais os de brasileiras e brasileiros em geral, conforme sinaliza de modo preciso a pergunta de Vera Magalhães feita em seu último artigo do ano: “E se 2022 vier para constituir uma trilogia macabra que conspurcará para sempre a terceira década do século XXI?” Para ela, “2021 foi, no Brasil e no mundo, a parte 2 de 2020, repetindo confinamento, mortes, incerteza quanto à recuperação da economia, agravamento das desigualdades e a confirmação de que vivemos uma emergência climática cada vez mais presente no dia a dia. De novo, vimos ameaçados consensos civilizatórios, como direitos individuais e coletivos e a adesão às leis, à democracia e à razão.”

Estamos mal, portanto, tanto no âmbito geral, quanto no delimitado do cinema, onde não será o poder de sedução do Homem-Aranha que irá nos redimir. Salvo para assistir a alguns blockbusters, a frequência aos cinemas continua baixa, em especial quando se trata de filmes brasileiros. Se for preciso explicar o que vem ocorrendo, à falta de sintonia habitual entre a maioria dos títulos nacionais lançados e a demanda de espectadores potenciais, talvez possa ser acrescido o instinto de preservação de parte do público, ainda receoso de frequentar as salas.

Inegável, porém, é o fato de que nem mesmo Marighella, celebrado como o sucesso comercial brasileiro da temporada, rendeu o suficiente para fazer frente ao seu custo de produção – impasse que ratifica, nos termos vigentes, a inviabilidade financeira da produção cinematográfica no país.

 

Um dos pressupostos do “final feliz” anunciado para 2021 é a impostura de considerar superadas as atribulações devidas à pandemia, que no Brasil foram agravadas pela inépcia do governo federal. Outra conjectura falsa é a de que a atividade cinematográfica estava bem antes de 2019, período ao qual não só seria possível como vantajoso retornar – lógica torta que nos condena ao autoengano perpétuo. Sem direito de apelar, perdemos a capacidade de não nos iludir e, assim sendo, de redefinir em novas bases o arcabouço legal e regulatório do cinema no país, além de seus mecanismos de financiamento. 

Trata-se, em última análise, da necessidade imperiosa de tomar as medidas necessárias para tornar o cinema uma atividade viável neste país. Sem isso, continuaremos dependentes para sempre do Estado, subordinados a uma agência sem autonomia, com participação reduzida no mercado interno, concorrendo em condições desiguais com produções milionárias importadas destinadas ao entretenimento de massa.

E se parássemos de fingir? é o sugestivo título do artigo de Jonathan Franzen publicado na revista The New Yorker, em setembro de 2019, e reproduzido na edição de outubro da piauí, no mesmo ano. Vale a pena ler na íntegra. Centrado na mudança climática, o texto de Franzen começa citando Kafka: “Há esperança infinita, mas não para nós.” Linhas adiante, ele adverte: “Neste nosso mundo que avança a passos rápidos escuridão adentro, o inverso do espirituoso aforismo de Kafka é igualmente verdadeiro: não há esperança alguma, a não ser para nós”.

No final, Franzen admite que a guerra total e irrestrita contra a mudança climática “só fazia sentido enquanto fosse uma batalha vencível. Tão logo aceitarmos que já a perdemos, outros tipos de ação assumirão um significado maior. A preparação para incêndios, enchentes e acolhimento de refugiados é um exemplo diretamente pertinente. Mas a catástrofe próxima salienta a urgência de quase todas as ações para melhorar o mundo. Em tempos de caos crescente, as pessoas buscam proteção no tribalismo e na força armada, e não no estado de direito, e nossa melhor defesa contra esse tipo de distopia é manter em funcionamento as democracias, os sistemas jurídicos e as comunidades. Nesse sentido, qualquer movimento em direção a uma sociedade civil mais justa pode ser considerado agora uma ação climática expressiva. Garantir eleições justas é uma ação climática.” 

E continua: “Combater a extrema desigualdade na distribuição de renda é uma ação climática. Desligar as máquinas de ódio nas redes sociais é uma ação climática. Instituir políticas humanitárias de imigração, defender a igualdade racial e de gênero, promover o respeito pelas leis e por sua aplicação, apoiar uma imprensa livre e independente, livrar o país das armas de fogo – tudo isso são ações climáticas significativas. Para sobreviver ao aumento das temperaturas, todo sistema, seja do mundo natural ou humano, precisará ser o mais forte e saudável que pudermos torná-lo.”

O desafio que Franzen propõe, “tomando emprestados os conselhos dos planejadores financeiros”, é ter um “portfólio mais equilibrado de esperanças, algumas delas de longo prazo, outras de mais curto prazo. Tudo bem lutar contra as limitações da natureza humana, na esperança de mitigar a pior parte do que está por vir, mas é igualmente importante travar batalhas menores e de âmbito mais local que você tenha alguma esperança concreta de vencer. Continue, sim, a fazer a coisa certa para o planeta, mas tente também salvar o que você ama especificamente – uma comunidade, uma instituição, uma localidade ainda intocada, uma espécie ameaçada – e anime-se com suas pequenas conquistas. Qualquer coisa boa que você fizer agora será sem dúvida uma cobertura de proteção contra um futuro mais quente, mas o mais importante é que é bom hoje. Enquanto você tiver algo para amar, terá motivo para nutrir esperança.”

E se parássemos de fingir?, indago eu, tomando emprestada sem autorização a pergunta do autor. Que tal nós, amantes do cinema brasileiro, reconhecermos o seu estado agônico? Encararmos essa situação sem subterfúgios e admitir que, respeitados os parâmetros em vigor, não há perspectiva de restabelecimento à vista? Não olhar para cima é postura de avestruz. Supondo que ainda haja tempo, que tal olharmos além do arco-íris, em direção ao cometa que está se aproximando da Terra, e fazer o que estiver ao nosso alcance para desviar o seu curso?

A reflexão de Jonathan Franzen ajuda a manter a esperança sem ser paralisado por uma visão apocalíptica ou fatalista. Serve também para refutar de vez a noção de “final feliz” para 2021.

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