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questões da democracia

O dia em que brasileiros pediram ajuda aos Estados Unidos para barrar um golpe de Bolsonaro

Comitiva driblou vigilância do Itamaraty e conseguiu se reunir com autoridades americanas

João Paulo Charleaux | 06 abr 2023_12h40
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Um grupo de mais ou menos vinte brasileiros viajou aos Estados Unidos em julho de 2022 para convencer o governo americano a impedir que o então presidente, Jair Bolsonaro, desse um golpe de Estado no Brasil. A comitiva desembarcou em Washington no dia 24 de julho. Ao longo de seis dias, foi recebida a portas fechadas pelo Departamento de Estado e por sete parlamentares do Partido Democrata, incluindo um dos membros da comissão parlamentar que investigava a invasão ao Capitólio, ocorrida em 6 de janeiro de 2021, e que, naquele momento, buscava conexões entre as armações antidemocráticas de membros das famílias Trump e Bolsonaro.

A ideia era mostrar ao governo dos Estados Unidos que Bolsonaro tinha a intenção de empastelar as eleições presidenciais de outubro daquele ano e já dispunha dos meios para alcançar esse fim. A mensagem era de que, em Brasília, políticos de extrema direita contavam com o apoio das Forças Armadas, das forças policiais e de um número crescente de civis que tinham se armado para pôr abaixo a democracia no maior país da América do Sul. Os membros da comitiva queriam uma chance de explicar cara a cara aos americanos que o Brasil, sozinho, não tinha capacidade de conter aquele golpe, e só uma pressão internacional contundente poderia impedir que o pior acontecesse na reta final da disputa eleitoral.

O tempo era curto. No momento em que a comitiva brasileira pôs os pés em Washington, faltavam 70 dias para o primeiro turno. A agenda era difícil, porque pressupunha que autoridades oficiais do governo americano, como os membros do Departamento de Estado, abririam as portas para um grupo de brasileiros que não estava revestido de nenhum cargo diplomático e governamental, ou mesmo de um mandato público. Eram apenas líderes de organizações da sociedade civil.

No dia marcado, 26 de julho, às oito da manhã, a comitiva saiu do Hotel State Plaza e cobriu a pé as três ou quatro quadras até um dos edifícios do Departamento de Estado, em Washington. Do lado de dentro do prédio, o encontro aconteceu com membros do Brazil Desk – nome dado aos diplomatas e outros burocratas americanos responsáveis pelas relações com o Brasil –, além de membros dos departamentos de Assuntos Multilaterais, Direitos Humanos, Organismos Internacionais e Hemisfério Ocidental, que também se perfilaram à mesa para ouvir a comitiva.

Até a reunião ter início, alguns colegas jornalistas brasileiros receberam com desconfiança a informação de que aquela agenda ambiciosa de fato seria cumprida. Eles tinham razão para desconfiar. Afinal, foi mantido segredo sobre alguns dos nomes dos interlocutores e sobre parte dos locais dos encontros, fazendo tudo parecer excessivamente misterioso ou simplesmente pouco crível nessa agenda. Mas o mistério tinha uma razão de ser: os organizadores da comitiva temiam que o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, um conhecido militante bolsonarista, contactasse uma a uma as autoridades que tinham manifestado interesse em receber o grupo brasileiro, com o intuito de demovê-las da ideia às vésperas desses encontros. Forster era conhecido em Washington por desacreditar organizações brasileiras tidas por Bolsonaro como inimigas.

Mas a comitiva conseguiu passar por baixo do radar do Itamaraty – ou pelo menos dos setores bolsonaristas que tinham se incrustado na estrutura da política externa brasileira – para cumprir aquela agenda. Uma vez abertas as portas e iniciados os encontros, ficou claro que havia um grande desafio a cumprir: era preciso redobrar as manifestações americanas em defesa da democracia do Brasil e fazer com que essas declarações tivessem de fato poder dissuasório sobre os golpistas. Ou seja, fazer com que o governo americano vociferasse ameaças críveis de retaliação caso o resultado das eleições fosse desrespeitado no Brasil.

Se você perguntasse àquela altura à diplomacia americana quantas vezes ela tinha saído em defesa da democracia no Brasil, durante os anos Bolsonaro, os funcionários te enviariam oito links contendo transcrições de declarações públicas feitas por diferentes autoridades do governo dos EUA. Se você pedisse um comentário adicional, eles diriam não ter nada a acrescentar.

A primeira dessas manifestações públicas tinha ocorrido ainda em 9 de agosto de 2021 – portanto, quase um ano antes da visita dessa comitiva a Washington. Naquela data, Juan Gonzalez, um americano nascido em Cartagena, na Colômbia, que, no governo Biden, assumiu o posto de diretor sênior para o Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, apareceu usando pela primeira vez uma formulação de frase que seria repetida à exaustão nos meses seguintes: fulano expressa, manifesta ou reitera a “confiança no sistema eleitoral brasileiro”.

 

O governo Biden temia que a invasão ao Capitólio, ocorrida em Washington, em 6 de janeiro de 2021, se repetisse no Brasil; o que, de fato, acabaria ocorrendo em 8 de janeiro de 2023. A preocupação com a erosão da democracia era tão grande que, antes de completar seu primeiro ano na Casa Branca, Biden promoveu uma Cúpula pela Democracia, com a participação de mais de cem países, incluindo o Brasil de Bolsonaro. Por causa da pandemia, o encontro foi virtual. O presidente brasileiro mandou um recado por vídeo repleto de generalidades sobre um tema pelo qual ele demonstrou, demonstra e viria a demonstrar reiteradas vezes ter desprezo.

Da primeira declaração de Gonzalez, em agosto de 2021, até o primeiro encontro pessoal entre Biden e Bolsonaro, em Los Angeles, na Cúpula das Américas, em 9 de junho de 2022, passou-se quase um ano sem que os EUA fizessem qualquer nova declaração pública mais contundente em relação ao risco de um golpe no Brasil. Depois desses meses de banho-maria, o então presidente brasileiro parece ter se sentido seguro o bastante para tentar seu lance mais audaz até então: no dia 7 de julho de 2022, um mês depois de ter sido recebido por Biden em Los Angeles, Bolsonaro anunciou que reuniria dentro do Palácio da Alvorada, em Brasília, todas as representações diplomáticas estrangeiras para denunciar ao mundo alguma coisa bombástica sobre o sistema eleitoral brasileiro. “Será um convite a todos eles”, disse Bolsonaro referindo-se ao corpo diplomático internacional. “O assunto será um PowerPoint, nada pessoal meu, para nós mostrarmos tudo que aconteceu nas eleições de 2014, 2018, documentado, bem como essas participações dos nossos ministros do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], que são do Supremo, sobre o sistema eleitoral”, anunciou o então presidente, com a habitual falta de clareza com a qual tornou conhecidos seus pronunciamentos.

A reunião com os embaixadores ocorreu no dia 18 de julho de 2022. Mais ou menos quarenta diplomatas estiveram presentes, num anúncio explícito de que, se Lula ganhasse, não tomaria posse. Ninguém sabia de que forma Bolsonaro implementaria o golpe que estava anunciando ao mundo, mas já não havia dúvidas de que esse golpe viria. No dia seguinte, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil divulgou um comunicado no qual afirmou que “as eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”. Era uma resposta clara, agressiva e imediata às ameaças de Bolsonaro.

Foi uma semana depois dessa reunião de Bolsonaro com os embaixadores que a comitiva da sociedade civil brasileira se sentou à mesa com o pessoal do Departamento de Estado, em Washington. Nos Estados Unidos o Departamento de Estado é o responsável pela condução institucional da política externa americana, equivalente ao Itamaraty. Mas, ao contrário do que ocorre no Brasil, o Congresso americano tem um peso enorme na formulação e na condução da agenda de política externa. E os parlamentares que têm assento nas comissões de política externa da Câmara e do Senado têm conexões fortes e constantes com suas bases eleitorais. No caso da América Latina, esse lobby vem forte da parte dos cubanos que vivem na Flórida, por exemplo. Colombianos, mexicanos e venezuelanos também são atuantes. Mas os brasileiros exercem pouco esse papel. A comitiva brasileira quis, de maneira algo quixotesca, compensar de forma episódica essa falta de lobby constante.

 

Depois da primeira investida no Departamento de Estado, o grupo passou a se encontrar com os parlamentares num Capitólio ainda simbolicamente fumegante depois da invasão trumpista. Os brasileiros se sentaram numa sala de um dos anexos do Capitólio e esperaram em silêncio pela chegada do personagem mais influente naquela história toda. Jamie Raskin era um democrata que estava na crista da onda, participando de todos os noticiários e talk shows noturnos. Ele integrava a comissão parlamentar de investigação do 6/1, como ficou conhecida a invasão ao Capitólio.

Raskin entrou na sala ladeado por um grupo de assessores. O deputado tem uma testa larga encimada por uma cabeleira negra e ondulada, puxada para trás – um traço extinto hoje pela luta que trava contra um câncer. Na hora em que Raskin entrou na sala, tive a impressão de estar diante de um palhaço de algum circo antigo, um clown sem maquiagem, no sentido das linhas de expressão do rosto e do jeito serelepe de se mover, como quem domina a cena e chama para si, naturalmente, o rufar dos tambores.

Todos se sentaram ao redor de uma longa mesa. Raskin ficou de pé. O deputado posicionou-se atrás da cadeira reservada para si e apoiou os braços no espaldar alto. Enquanto ouvia os brasileiros se apresentando, um depois do outro, ele ficava empinando a cadeira, num jogo distraído de balanço, para frente e para trás. A atitude me pareceu excessivamente informal, o que costuma acontecer com pessoas que, quando encontram brasileiros, acham que estão lidando com gente que vive numa eterna escola de samba. A impressão foi confirmada por um comentário qualquer feito por Raskin a respeito de o segurança dele querer um Brasil estável porque era naturalmente destino de suas férias de fim de ano. Os assessores riram. Os membros da comitiva, nem tanto.

Há um jogo combinado nessas situações: o deputado ou senador finge prestar toda a atenção do mundo no que está sendo dito, mas, em algum momento, quando a conversa começa a ficar enfadonha, algum assessor irrompe na sala e diz que vai começar uma votação importantíssima no plenário. O congressista sai fora e deixa um ajudante – pessoa, claro, da maior confiança e competência, alguém sobre quem se possa dizer que “falar com ele é o mesmo que falar comigo. Sinto muito. O dia a dia aqui no Congresso tem dessas coisas. Vocês vão me desculpando. Mas fiquem à vontade” e zaz, vai embora.

Raskin tinha preparado a cena, como indicava o fato de sequer ter se sentado. O que ele não esperava é que Anielle Franco, uma das pessoas que faziam parte da comitiva brasileira, estaria contando a ele sobre como a irmã dela, Marielle Franco, tinha sido morta a tiros junto com o motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, na mesma Rio de Janeiro para a qual o segurança risonho do deputado queria viajar.

Como esperado, o assessor irrompeu no salão na hora H, abrindo com pressa as pesadas portas de madeira que vão do chão ao teto, e começou a dizer algo como: “deputado, vai começar a votação em plenário”, mas Raskin parece ter mudado a cena e, como um clown acrobático e habilidoso, improvisou ali mesmo todo o script de sua escapada. Ele fez um gesto com as mãos, sinalizando ao assessor que não iria sair dali por nada, pois estava vidrado no relato de Anielle sobre a violência das milícias fluminenses contra alguém que, como ele, era uma parlamentar. A comitiva tinha fisgado a atenção do deputado.

O segundo ato não tardou. Alguém no grupo citou de passagem que Eduardo Bolsonaro desembarcou em Washington dois dias antes da invasão ao Capitólio. Raskin aparentemente nunca tinha ouvido essa informação. Ele olhou para um dos assessores, como se perguntasse: “Como não sabemos disso? Do que se trata? Como assim?” O deputado mostrou-se interessado em saber quais as ligações entre Trump e de seu ex-assessor de campanha Steve Bannon com a família Bolsonaro. Ninguém soube dar detalhes sobre essas ligações, porque esses detalhes não são conhecidos. O filho do presidente chegou a Washington e esteve na Casa Branca às vésperas do 6/1, mas não se sabe ao certo o que ele pode ter feito por lá, além de encontrar, falar e ouvir. Uma jornalista brasileira que cobre o Congresso americano e estava presente nessa reunião deu um passo à frente e começou a brifar Raskin e seus assessores sobre esses fatos. “Nós precisamos investigar isso”, ele respondeu.

A declaração de Raskin foi mal interpretada no Brasil. O integrante da CPI do Capitólio estava dizendo que queria investigar de que forma Trump e Bannon podiam estar exportando o know-how golpista americano. Raskin não tinha poderes para investigar um cidadão brasileiro em sua CPI, ainda mais esse cidadão sendo o presidente de um outro país ou o filho do presidente. Mas foi inútil tentar aclarar, pois em poucos minutos todos os portais brasileiros traziam a notícia de que a Câmara dos EUA queria incluir Eduardo Bolsonaro nas investigações sobre o ataque ao Capitólio, o que, claro, não aconteceu.

Terminada a reunião, eu conversei com Raskin no corredor. E ele me disse o seguinte: “Esta reunião foi muito educativa e deixou claro que as forças democráticas do Brasil temem que algo similar ao que aconteceu em 6 de janeiro de 2021 nos EUA se repita em seu próprio país. Por isso estão em contato com partidos políticos, movimentos e cidadãos do mundo todo para que se unam a eles em defesa da democracia constitucional e das eleições.”

Algo semelhante foi dito pelo senador Bernie Sanders, uma espécie de Pepe Mujica americano, no que diz respeito à mescla de idade, militantismo e vibração jovial com as causas que fazem a cabeça das esquerdas latino-americanas. Sanders deu enorme espaço e atenção aos membros da comitiva. “O que eu ouvi, infelizmente, soa muito familiar para mim, por causa dos esforços de Trump e de seus amigos para minar a democracia americana. Não estou surpreso que Bolsonaro esteja tentando fazer o mesmo no Brasil. Esperamos muito que o resultado das eleições seja reconhecido e respeitado, e que a democracia prevaleça, de fato, no Brasil”, disse já no corredor.

 

A agenda se estendeu para muito além disso. Houve visitas ainda aos deputados Hank Johnson, Mark Takano e Sheila Cherfilus McCormick. A comitiva teve reuniões ainda com assessores dos senadores Patrick Leahy, presidente do Senado, e Ben Cardin, além de alguns embaixadores de países-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos), que pediram para não serem identificados, e também pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) – estes dois últimos seriam atores decisivos caso houvesse qualquer impasse na apuração dos votos e os relatórios dos observadores internacionais fizessem o caso parar na OEA, em Washington.

Um aspecto curioso é o de que o grupo de peticionários brasileiros era formado apenas por representantes de organizações da sociedade civil. Não eram embaixadores, doutores ou deputados, mas líderes de organizações não governamentais ligadas aos indígenas, aos movimentos negros, além de feministas e pessoas dedicadas à defesa mais abrangente dos direitos humanos, da democracia e da liberdade de expressão – em suma, o grupo era formado pelo que, no violento jogo de dardos do bolsonarismo, corresponderia ao centro do alvo.

Ao todo, foram reunidas para a viagem dezenove organizações desse tipo, como os institutos Marielle Franco, Vladimir Herzog e da Mulher Negra, a Comissão Arns e o Pacto pela Democracia, além de siglas ligadas às quilombolas, às lésbicas, aos gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos. A maior parte dos membros eram jovens mulheres – algumas delas, indígenas; outras, negras – que figuravam como estrelas ascendentes da pauta identitária que tem marcado as agendas das esquerdas não só no Brasil, mas nos EUA também. Essas organizações são mantidas e incentivadas por aportes vindos de uma mescla de financiadores estrangeiros tradicionais, como a Open Society Foundations, do magnata George Soros, e por fundos formados por abastadas famílias brasileiras que simpatizam com essas causas, sendo o Galo da Manhã, que hoje administra a filantropia da família Bracher, um dos principais financiadores brasileiros do setor.

A articulação da viagem foi assumida por uma organização chamada WBO (Washington Brazil Office), um “think tank” que mistura pesquisa, produção de informação e lobby político, e sobrevive de recursos de origem semelhante à das demais organizações. O WBO teve um parto lento: começou a ser gestado em 2020, foi constituído formalmente em 2021 e teve seu lançamento público em 2022. A organização nasceu para fazer a ponte entre esses movimentos brasileiros e os interlocutores em Washington, sendo comandado por duas figuras: o brasileiro Paulo Abrão e o americano James Naylor Green. Abrão foi secretário nacional de Justiça da presidente Dilma Rousseff, além de ter sido secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington. Green é filho de uma engajada família quaker de Baltimore, que militou contra a ditadura brasileira nos anos 1970 e 1980, antes de tornar-se um dos mais prestigiados brasilianistas americanos, professor na Universidade Brown e autor de diversos livros influentes sobre política, história e cultura brasileira. Embora seja um militante aguerrido do movimento gay, Green chegou a ser tomado pelo colunismo político-social brasileiro como amante de Dilma por tê-la acompanhado em passeios por Nova York em 2017, quando ela viajou aos EUA para dar palestras e espairecer do golpe baixo sofrido no ano anterior.

O meio-campo da comitiva levada a Washington pelo WBO era formado por figuras mais ou menos anônimas. Mas, pelas laterais do grupo, avançavam conhecidos ex-membros de governos petistas – além de Abrão, faziam parte da comitiva Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, que tinha sido secretário de direitos humanos de Dilma e assessor especial da Casa Civil do governo Lula, e Paulo Vannuchi, membro da Comissão Arns que foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo Lula. O trio formado por Abrão, Sottili e Vannuchi se enquadraria no que as novas esquerdas resumiriam como “homens brancos velhos e influentes” do setor. Eles emprestaram credibilidade ao lobby pela democracia em Washington, mas souberam dar palco e passagem à nova geração, mais bem talhada para o figurino em voga.

A mescla dos perfis dos membros da comitiva era a seguinte: os mais velhos já tinham feito parte de governos petistas no passado. Os mais novos tinham uma ambição latente de vir a ocupar cargos públicos num eventual governo Lula, no futuro. A comitiva refletia, portanto, essa tensão que as esquerdas vivem, tendo de um lado um setor mais tradicional, formado principalmente por homens brancos de sólida carreira acadêmica e militância política, com origem no movimento sindical ou na luta contra a ditadura e pela transição democrática; e, de outro, jovens ligadas às questões de gênero e de raça, às pautas indígenas e de meio ambiente, às causas das novas esquerdas, chamadas frequentemente de “identitárias”. Na ala antiga, estavam homens como Sottili e Vannuchi. Na ala nova, mulheres como Sheila de Carvalho e Anielle Franco – a primeira foi a Washington representando o Instituto de Referência Negra Peregum e o grupo de advogados denominado Prerrogativas, ou simplesmente Prerrô, que se tornou mais conhecido por questionar juridicamente a prisão de Lula na Operação Lava Jato. A segunda viajou representando o Instituto Marielle Franco. Mais tarde, terminada a viagem da comitiva, debelado o golpe e sacramentada a vitória de Lula, Carvalho seria nomeada assessora especial do ministro da Justiça, Flávio Dino, e Anielle se tornaria ministra da Igualdade Racial.

Com tantos ex e futuros membros de governos petistas, tornava-se difícil explicar que aquela não era uma comitiva que tinha ido a Washington para militar em causa própria. Esse era, então, o primeiro desafio: deixar claro que, embora os membros da comitiva tivessem um lado ideológico e até, em alguns casos, um lado partidário, o objetivo da visita não era defender Lula, mas o processo eleitoral como tal, que, se respeitado cabalmente, provavelmente resultaria num terceiro mandato do líder petista, conforme as pesquisas indicavam. De forma simples, o pedido era para que os interlocutores americanos reconhecessem o resultado da eleição de outubro tão logo ele fosse anunciado, fosse quem fosse o vencedor, para evitar que, nas primeiras horas após a apuração, Bolsonaro e seus seguidores tentassem de alguma forma virar a mesa à força.

Afastar as suspeitas de partidarismo era só um dos desafios. O outro era debelar uma contradição implícita: aquele era um grupo de pessoas de esquerda que estava indo pedir ao governo dos EUA que tomasse uma atitude em relação à dinâmica da política interna do Brasil. O antecedente não era nada bom porque, no Brasil, ainda ecoava com força o papel nefasto que os americanos tinham desempenhado em 1964, quando deram apoio ao golpe que engendrou uma ditadura de 21 anos.

Entre 1964 e 2022, muita coisa havia mudado nas relações entre os dois países. Mas, entre as coisas que permaneciam inalteradas, a desconfiança da esquerda brasileira em relação ao governo americano era uma das principais. Não havia muito espaço no dito setor progressista brasileiro para varrer para debaixo do tapete o passivo da Guerra Fria.

Cinquenta e oito anos antes da visita dessa comitiva a Washington, os EUA tinham penhorado apoio ao golpe que depôs João Goulart no Brasil. A chamada Operação Brother Sam consistia em sinalizar aos militares golpistas brasileiros que eles teriam apoio de forças americanas, caso encontrassem resistência inesperada de parte de tropas leais a Jango, em março de 1964. A Marinha dos EUA planejava, naquela época, deslocar do Caribe para a costa brasileira uma porção de navios. No fim, nada disso foi necessário. Como se sabe hoje, não houve resistência ao golpe. O apoio militar americano limitou-se, naquele momento, a dar respaldo, a mostrar que a maior potência do mundo estava do lado dos golpistas, contra Jango e contra a esquerda brasileira.

Poucos membros da comitiva de julho de 2022 gostariam de ver as coisas postas dessa forma, mas o fato é que aquele era um grupo de esquerdistas brasileiros indo a Washington pedir que os EUA tomassem alguma atitude em relação aos rumos da política interna do Brasil. Num certo sentido, era uma Operação Brother Sam ao contrário só que, dessa vez, com os americanos se colocando ao lado da democracia.

 

A verdade é que a comitiva até tinha membros petistas e lulistas, mas ela não era uma panfletagem por um e por outro. Ela também pedia ajuda ao governo americano, mas não era um convite à intervenção. Essas duas nuances eram importantes do lado brasileiro da história. Do lado americano, o problema estava no fato de que todos os deputados e senadores contactados pela comitiva eram membros do Partido Democrata, o que poderia fazer parecer que tudo não passava de uma grande ação entre amigos esquerdistas.

Para diluir o peso do Partido Democrata naquilo tudo, tentou-se até incluir a deputada republicana Liz Cheney como interlocutora. Liz é uma combativa política conservadora nascida num ninho de falcões em Madison, capital do estado de Wisconsin. O pai dela é Dick Cheney, um dos arquitetos da Guerra do Iraque, que foi ministro da Defesa de George Bush e vice-presidente de George W. Bush. Naquele momento, Liz figurava como um dos maiores desafetos de Donald Trump, por ter criticado duramente a campanha golpista do ex-presidente americano. Ela passou a liderar a dissidência a Trump no campo republicano, e foi nessa condição que assumiu o cargo de vice-presidente da comissão que investigava a invasão ao Capitólio de 6 de janeiro. Tentou-se uma aproximação da comitiva com Liz, mas o convite não prosperou.

(Incluir Liz Cheney na agenda foi a primeira sugestão que me lembro de ter feito a Paulo Abrão quando ele me convidou para embarcar nessa comitiva como assessor de imprensa do WBO.)

O resultado mais visível de todo esse périplo foi uma série de iniciativas parlamentares – cartas, moções, declarações, manifestações com os mais diversos nomes – nas quais a Câmara e o Senado dos EUA pediam que o presidente Joe Biden pressionasse Bolsonaro para que ele não desse um golpe. A carta mais contundente nesse sentido foi assinada por 39 parlamentares e pediu que Biden deixasse “inequivocamente claro para o presidente Bolsonaro, seu governo e as forças de segurança que o Brasil se encontrará isolado dos EUA e da comunidade internacional de democracias caso haja tentativas de subverter o processo eleitoral do país”.

Esse foi o tamanho da pressão pública americana nos campos legislativo, diplomático e midiático. Já no campo militar, é difícil saber quantas e quais mensagens foram dadas, e de que forma. O fato mais contundente nessa área foi a vinda de Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, a Brasília, no dia 5 de agosto de 2022. Não há muita informação pública sobre o conteúdo das conversas, mas a lista de autoridades bolsonaristas visitadas por Sullivan na ocasião dá uma boa medida dos interesses discutidos. Além de Bolsonaro, o conselheiro de segurança da Casa Branca esteve com o almirante Flávio Rocha, então secretário especial de Assuntos Estratégicos do governo brasileiro; Walter Braga Netto, secretário da Defesa; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional; e Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Tudo isso, tendo a tiracolo o mesmo Gonzalez que havia sido responsável pela primeira manifestação pública dos EUA sobre a confiabilidade das urnas, em 9 de agosto de 2021.

Já empossado presidente, Lula foi a Washington em 9 de fevereiro, onde foi recebido por Biden e por parlamentares como Sanders, que meses antes tinham se engajado de corpo inteiro na pressão internacional pelo respeito ao resultado das eleições. As organizações que participaram da comitiva da sociedade civil até tentaram incluir na agenda de Lula algum encontro, qualquer evento ou menção mais formal a todo o esforço que havia sido feito em julho de 2022. Mas aquele já não era o Lula candidato, mas um presidente revestido de formalidades e de interesses muito vinculados ao protocolo do Itamaraty e às pressões dos demais ministros de seu gabinete. 

Do lado das organizações, correu uma brisa de ressentimento, do tipo: “agora empossado, ele não pode se esquecer de nós, da sociedade civil, sob risco de tomar um golpe, que nem a Dilma”. Coisas assim. Mas foram murmúrios. Muita gente que militava nesses movimentos sociais conseguiu ou viria a conseguir cargos no governo. Tudo se assentou, de uma forma ou de outra. E agora, passado o pior, a esquerda brasileira terá pelo menos quatro anos para se decidir sobre o que foi tudo isso: uma revisão, uma reciclagem, um amadurecimento, um olhar mais aberto às nuances do papel que os EUA desempenharam no passado e desempenham hoje em relação ao Brasil, às esquerdas latino-americanas? Ou um soluço pontual numa longa história indigesta e imutável? O registro dos fatos ocorridos em Washington em julho de 2022 talvez possam oferecer elementos novos para quem se propõe a interpretar essa história.

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