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questões jurídico-políticas

Quanto vale um Bolsonaro inelegível?

Condenado pelo TSE e fora das eleições até 2030, ex-presidente agora tem como opção ser animador de campanhas da direita reacionária e corrupta

Rafael Mafei | 30 jun 2023_14h22
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Como em um embate entre Real Madrid e Rio das Pedras F. C., não havia muita dúvida sobre quem sairia vencedor do confronto entre o PDT, autor da ação julgada ao longo dos últimos dias pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e a campanha de Jair Bolsonaro, que tentava preservar sua elegibilidade. Especulava-se apenas quanto ao tamanho da goleada – previa-se algo entre um 7 a 0 e um 5 a 2 contra Jair –, e o tamanho dos acréscimos, já que um pedido de vista poderia retardar o final do certame. Bolsonaro chegou a pedir publicamente ao ministro Raul Araújo, primeiro a votar após o relator, que interrompesse o julgamento, mas não foi atendido. Nem Kassio Nunes Marques, que não costuma desapontar o Jair, topou esse papelão. Como Araújo, limitou-se a dar razão à defesa, levando ao placar de 5 a 2 pela condenação. Ainda cabem recursos ao próprio TSE, e ao STF depois, mas a Lei da Ficha Limpa incide de imediato: Bolsonaro está fora das urnas até 2 de outubro de 2030.

Por mais que Bolsonaro e seu entorno tentem criar cismas com o julgamento que levou à sua inelegibilidade por oito anos, o fato é que julgar políticos por abuso de poder, especialmente os que ocupam cargos no Poder Executivo, é tarefa corriqueira da Justiça Eleitoral. O que destoa nesse caso é, primeiro, a estatura da autoridade punida, pois presidentes da República que buscam reeleição, como foi o caso de Bolsonaro em 2022, gozam de tamanho recall e associação aos feitos de toda máquina federal que não faz sentido arriscarem inelegibilidade em troca de um ato de marketing de ganho marginal inexpressivo. E também o conteúdo do ato que levou à punição: não foi inauguração de ponte, escola ou hospital, nem recapeamento de avenida, mas um comício antiurnas que buscava, hoje não temos dúvida, angariar apoio internacional contra essa mesma Justiça Eleitoral que tirou Bolsonaro das próximas eleições.

Uma das principais teses da defesa de Bolsonaro insistia na autoridade do precedente Dilma-Temer no TSE, segundo a qual uma prova posteriormente trazida aos autos – no caso, a minuta do golpe – não poderia embasar condenação. Mas o raciocínio falha em dois pontos. Primeiro, ignora a diferença relevante entre os dois casos. Naquela ocasião, o fato novo chegou em uma fase já avançada da ação; mas dessa vez, o documento impugnado pela defesa chegou bem antes, ainda na instrução, e sem ampliar o objeto da demanda, que sempre versou sobre o uso dos poderes políticos e econômicos do governo para promover golpismo e ganhar (ou melar) as eleições a qualquer custo. Além disso, o argumento representa mal a relação que nossos ministros têm com a autoridade dos precedentes de seus tribunais. No Brasil, comumente aceitamos que novos ministros trazem consigo seus próprios entendimentos jurídicos, não ficando incondicionalmente presos às interpretações dos magistrados que já se foram. E nenhum dos ministros do julgamento de 2017 segue no TSE. Assim, não era esperado que a composição atual se mantivesse presa a um entendimento de uma geração inteiramente anterior de ministros, em um tema decidido por apertados 4 a 3. De qualquer forma, a presença da minuta do golpe nos autos era o menor dos problemas para Bolsonaro, pois sua condenação seria de rigor mesmo sem ela.

O outro argumento relevante da defesa bolsonarista, acatado no voto do ministro Raul Araújo, e ao final também no de Nunes Marques, alegava ser pouca a gravidade da conduta de Jair, que não teria tido maiores repercussões – afinal, ele perdeu as eleições, e a janeirada teve crimes, violência e destruição, mas o apoio internacional contra a Justiça Eleitoral, almejado pela fatídica reunião, não veio. A tese de Araújo teve vida curta: logo na sequência, foi desmontada no voto de um dos novos ministros, Floriano de Azevedo Marques Neto, que apontou que a gravidade da conduta não se confunde com o sucesso do ato ilícito. Marques Neto tem razão: não fosse assim, só caberia falar de abuso de poder em eleições presidenciais quando o presidente conseguisse, com êxito, desequilibrar as eleições em seu favor, o que daria aos incumbentes grandes incentivos para usarem toda a força dos cargos para seu benefício, e prejuízo dos adversários. Evidentemente, não é isso que a lei quer.

Um pouco como aconteceu nos julgamentos sobre a suspeição de Sergio Moro na Lava Jato, o escopo formal do processo julgado acabou atropelado pela vida real. Embora o objeto de uma ação judicial seja limitado pelo universo de fatos alegados na petição que os inicia, desenlaces subsequentes podem trazer, aos olhos de juízas e juízes, certos fatos que, embora não sejam formalmente incorporados ao veredicto final, produzem efeitos inegáveis sobre o livre convencimento de quem se debruça sobre o caso. “Até porque a vida é um processo”, como lembrou a ministra Cármen Lúcia, autora do quarto e decisivo voto pela condenação de Bolsonaro. Ao contrário da figurinha de WhatsApp, o espírito de quem julga  não conhece o colírio do desver. Assim como as dúvidas sobre a suspeição de Sergio Moro tornaram-se pueris após o vazamento das mensagens trocadas entre juiz e Ministério Público, também a disposição de Bolsonaro para abusar de seu cargo a fim de desequilibrar as eleições tornou-se absolutamente inequívoca depois de tudo a que assistimos no segundo semestre de 2022, chegando ao 8 de janeiro deste ano. A inelegibilidade por abuso visa a tirar do jogo o ator político que se mostra disposto a usar o poder de seu cargo para jogar sujo nas eleições e na alternância de poder, e ninguém fez isso de forma tão explícita e desavergonhada quanto Jair Bolsonaro e seus mais fiéis seguidores, inclusive em cargos públicos de grande importância. 

Essa é apenas a primeira de diversas ações eleitorais que devem levar a resultados semelhantes. Além de enroscos na Justiça Eleitoral, vale lembrar que Bolsonaro se vê ameaçado também na seara criminal, por investigações como a das joias sauditas, a falsificação no cartão de vacinação e a insurreição de janeiro. Quem quer ver Bolsonaro na cadeia precisará esperar eventuais desfechos condenatórios nessas outras frentes.

 

As grandes questões pendentes são de prognóstico político: o que acontece com um político de forte base popular, como sem dúvida ainda é o caso de Bolsonaro, que perde seu cargo e passa a enfrentar problemas na justiça? Os paralelos óbvios do tempo presente são com Donald Trump e Lula.

Na comparação com Trump, há dois pontos cruciais que tornam a situação de Jair diferente – e pior. A primeira é que no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, o Poder Judiciário tem poderes para levar políticos à inelegibilidade, seja por abuso de poder político e econômico reconhecido pela própria Justiça Eleitoral, como ocorreu agora, seja por condenações de outras naturezas em outras instâncias, como previsto na Constituição e em leis como a Lei da Ficha Limpa. E como sugere cada mensagem adicional descoberta no celular de Mauro Cid, outras causas de inelegibilidade, inclusive por condenações criminais, talvez incidam sobre Bolsonaro em um futuro mais ou menos próximo.

A segunda diferença importante, que em parte decorre da primeira, é que Trump mantém, na prática, o controle de um partido tradicional, grande e nacionalmente capilarizado – o Partido Republicano, uma de duas legendas de um sistema eleitoral de fato bipartidário. Sendo ele ao mesmo tempo elegível e favorito para ganhar, nas primárias, o direito de disputar a eleição como candidato por esse partido, é natural que ele se mantenha como a principal opção de poder dos eleitores conservadores e de direita. Isso atrai apoios, mídia e doadores para a campanha, e arrefece os ânimos de quem, no campo da direita, queira disputar sua hegemonia; e de quem, mesmo concorrendo aos legislativos federal e estaduais, queira ser republicano sem ser trumpista. Basta ver a dificuldade de Ron DeSantis, governador da Flórida tido como seu principal adversário, para encontrar discurso e apoio em contraposição a Trump, que segue sendo a figura central da política institucional pela direita, em volta de quem todos os demais políticos são obrigados a orbitar, ainda que ele esteja indiciado por mais de um crime.

Mas Bolsonaro, além de estar incapacitado para disputar eleições por oito anos, não controla partido algum. Atualmente, mora de favor no feudo político de Valdemar Costa Neto, que tem com ele uma relação de pura conveniência. Bolsonaro sabe que tem abrigo no PL, e apoio de sua bancada, enquanto sua figura for funcional e útil para o partido no curto prazo. Hoje ele traz votos, e tudo indica que será um cabo eleitoral importante nas eleições municipais de 2024. Mas isso é reavaliado de tempos em tempos, e a condenação à inelegibilidade obviamente não o torna mais forte – ao contrário.

Do ponto de vista da força política, aí está a principal diferença entre Lula e Bolsonaro para reagir aos reveses da Justiça. Lula tinha genuíno suporte de um partido forte, com o qual é indissociavelmente identificado, e com genuína penetração social. Pôde contar com o apoio e a estrutura da legenda, que criou estruturas para dar vazão ao suporte da militância, o que evidenciou sua resiliência mesmo nos momentos mais difíceis. E Valdemar, será que tirará dinheiro dos cofres do PL para organizar acampamento em praça pública, com militantes gritando “bom dia, Capitão!” todas as manhãs, por quase seiscentos dias? Além da popularidade, que Bolsonaro ainda tem, Lula manteve-se de pé no ringue porque seu partido jamais aceitou construir uma alternativa a seu nome; já o PL, bem ao contrário, está a olhos vistos lançando balões de ensaio para o posto de líder popular da direita, a começar pela própria Michelle Bolsonaro. Nessa toada, Bolsonaro fica mais fraco para reagir politicamente às muitas ameaças jurídicas que ainda enfrenta. Não bastasse tudo isso, há o óbvio: politicamente, Lula era a alternativa eleitoralmente viável à destruição bolsonarista, enquanto Bolsonaro é a própria ameaça que se busca neutralizar. Ninguém no Judiciário está pensando “ainda bem que temos o Jair, ele pode salvar a democracia brasileira”.

Talvez o melhor futuro possível para um Bolsonaro inelegível, tendo que sapatear e rodar pratinhos para manter-se útil a Valdemar Costa Neto, seja como animador de campanhas da direita: ganhará casa, escritório e um bom salário para rodar o Brasil e promover candidaturas reacionárias, fisiológicas, patriarcais e corruptas, a começar pelos próprios filhos. A não ser que celas, tornozeleiras eletrônicas e outras restrições judiciais o obriguem a manter-se fixo em Brasília, e longe até mesmo de comícios e candidatos.

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