Ilustração: Carvall
O dia em que a tropa ficou em casa
Os problemas em série na cadeia de comando da Polícia Militar do DF no dia 8 de janeiro
Na noite de 7 de janeiro, o coronel Klepter Rosa Gonçalves, então subcomandante da Polícia Militar do Distrito Federal, enviou uma mensagem a um grupo de WhatsApp do qual participavam outros oficiais da PM com a seguinte ordem, reproduzida tal como foi escrita: “Boa noite. Considerando a possibilidade de emprego massivo de nossa tropa na Manifestação prevista para amanhã (domingo, 08Jan23), DETERMINEM aos respectivos efetivos de toda estrutura dos senhores que permaneçam de SOBREAVISO, APD (à partir de) 07h.” O estado de sobreaviso significava que a tropa deveria estar em casa, em condições de ser acionada caso fosse necessário. Quando chamados, os policiais vestiriam a farda, encaixariam suas armas no coldre e se dirigiriam ao quartel, para só então embarcarem nas viaturas. Esse processo costuma demorar em razão da necessidade de deslocamento dos policiais. Para maior agilidade de ação, o usual é colocar parte da tropa em estado de prontidão, ou seja, de plantão e fardada dentro da Academia de Polícia.
Segunda maior autoridade da PM do DF depois do coronel Fábio Augusto Vieira, que era o comandante-geral, o coronel Klepter decidiu pelo sobreaviso, segundo apurou a piauí, por avaliar que seus homens já haviam ficado de prontidão na posse presidencial, poucos dias antes, e mereciam um regime de plantão mais brando. Assim, naquele fim de semana, julgou ser conveniente que a maioria ficasse em casa. O policial tinha autonomia para tal desígnio porque, segundo o estatuto da PM, ficava sob sua responsabilidade o emprego da tropa, a organização do quartel e o comando de seu braço mais poderoso, o Departamento Operacional (DOP) da Polícia Militar, que gere todos os batalhões do Distrito Federal.
O deputado distrital Chico Vigilante (PT-DF), presidente da CPI dos Atos Antidemocráticos, aberta na Câmara Legislativa do DF para investigar responsabilidades sobre o 8 de janeiro, afirmou, durante a comissão, que justamente na demora de deslocamento da tropa “está a explicação de por que quebraram tudo”. O deputado Hermeto (MDB-DF), relator da CPI, descreveu com ironia como funciona o “sobreaviso”. Ele sabe o que fala porque serviu por quase trinta anos na PM antes de entrar na política. “Sobreaviso? Estou em casa, vendo minha Netflix. ‘Meu amor, olha aí! Estão ligando do quartel. Não atende agora, não. Deve ser trabalho.’ Isso é ficar em casa”, relatou o parlamentar durante uma das oitivas da comissão, emulando um diálogo hipotético entre um policial e sua esposa no momento em que o quartel faz a inconveniente convocação. Hermeto prossegue, colocando em termos objetivos como a tropa de sobreaviso recebe a ordem de trabalho aos fins de semana. “Ele ainda coloca a mulher para atender. Ele não atende. Vai deixar a Netflix em um domingo? Vai deixar em casa o futebol e vai para a Esplanada?”, indagou o parlamentar.
Apesar de condenarem a ordem de sobreaviso, os membros da CPI não convocaram Klepter a dar explicações. Um requerimento do deputado Fábio Félix (Psol) chegou a ser aprovado para que ele fosse ouvido, mas o deputado Hermeto dissuadiu a comissão de chamá-lo alegando falta de “elementos” para tanto. Nas oitivas, tampouco mencionaram seu nome como autor da ordem de sobreaviso, embora essa informação tenha sido apresentada à comissão, por meio de um documento enviado pela própria polícia. Ele também não foi chamado para depor na Corregedoria da PM nem na Polícia Federal, órgãos que abriram inquéritos para investigar os atos do dia 8. Em vez disso, o coronel foi promovido a comandante-geral da PM do DF depois do afastamento de Fábio Augusto, que terminou preso por quase um mês por suspeita de omissão e conivência com os atos. A promoção de Klepter foi a pedido do interventor federal, Ricardo Cappelli. Fábio Augusto foi solto no início de fevereiro por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, responsável pelo caso. No intervalo em que ficou preso, nomes poderosos saíram em sua defesa, como o de Jorge Oliveira, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), que visitou Moraes para ponderar sobre a honradez do amigo, que conhecia desde os tempos da Academia de Polícia. Indicado ao TCU por Jair Bolsonaro, Oliveira também foi PM.
Ao conceder a liberdade provisória, Moraes disse que Fábio Augusto “não teria sido diretamente responsável pela falha das ações de segurança”. Os depoimentos e documentos colhidos até agora pela PF e pela Corregedoria corroboram a avaliação do ministro, e vão além, dando pistas sobre alguns responsáveis diretos. O Ministério Público Federal (MPF) também tem apurado responsabilidades. Uma das linhas de investigação dos procuradores é a de que o coronel Klepter anuiu que a cadeia de comando da PM ficasse inoperante quando já circulavam informações de inteligência atentando para um acirramento dos ânimos antes do dia 8.
Deixar a tropa de sobreaviso não era usual em caso de manifestações na Esplanada. O normal era que grupos ficassem de prontidão. Os deputados ouviram essa explicação do coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, que até janeiro era um dos principais nomes do comando da PM do DF e chefiava o DOP. “O padrão normal, e que foi sempre o que eu recebi de ordem do Coronel Fábio Augusto, é botar a tropa de prontidão”, contou Naime, durante seu depoimento à CPI. O policial ainda relatou que o coronel Fábio Augusto costumava se irritar com o fato de não haver espaço na Academia da PM para abrigar todo o efetivo de prontidão. “Por conta de falta de banheiro, por conta de falta de instalações em que os policiais conseguissem ficar num grande contingente ali, numa condição minimamente salubre”, disse. E depois reiterou: “O coronel Fábio Augusto sempre exigiu a tropa em prontidão.”
Naime foi preso em fevereiro, por suspeita de ter retardado intencionalmente a atuação da tropa de choque na Esplanada para permitir a fuga de manifestantes. Uma crítica à sua atuação naquele dia consta do relatório feito pelo interventor. Também agravou a situação de Naime um boletim de ocorrência feito por sua ex-mulher, em janeiro, alegando que ele iria viajar com os filhos às pressas após o ocorrido na Esplanada. A defesa de Naime nega que ele tenha agido intencionalmente e diz que a velocidade de atuação do choque estava condizente com a situação, sendo praticamente impossível, segundo a defesa, conter manifestantes e efetuar prisões ao mesmo tempo, em razão da falta de uma viatura auxiliar para conduzir os presos. A defesa também diz que a viagem com os filhos estava programada, em razão das férias tiradas pelo coronel no início de janeiro. Ele foi chamado às pressas para comandar o choque na Esplanada no dia 8, quando já estava em folga.
A ordem de sobreaviso não só destoava da prática comum do quartel, como também inviabilizava que fosse cumprido o que havia sido acordado entre a PM e a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do DF na reunião que houve dois dias antes, em 6 de janeiro, para discutir o tema. Segundo o protocolo elaborado pela pasta para nortear a estratégia de segurança para o dia 8, era atribuição da PM planejar o número de efetivo suficiente e “ficar em condições de empregar a tropa especializada” em caso de convulsão. Com a equipe de sobreaviso, o emprego da tropa foi prejudicado. A depredação das sedes dos Três Poderes começou antes das 15 horas e a retomada dos prédios públicos pela polícia só aconteceu mais de duas horas depois (às 17h30 foi retomado o STF, às 17h50, o Palácio do Planalto, e às 18 horas, o Congresso Nacional).
A coronel Cintia Queiroz de Castro, encarregada de elaborar o protocolo na SSP, disse à Corregedoria da PM ter notado o estranhamento do coronel Fábio Augusto ao ser informado, já na manhã do dia 8, de que, por ordem de Klepter, a tropa designada para o evento estava de sobreaviso e não de prontidão. A constatação irritou Fábio Augusto porque ele havia dado ordens específicas sobre o assunto no dia anterior — e elas eram diferentes.
Na noite do dia 7, Fábio Augusto recebeu uma ligação do secretário da Casa Civil do DF, Gustavo Rocha, pedindo foco total da PM nas manifestações do dia seguinte, pois havia informações sobre a chegada de vários ônibus a Brasília. O ministro da Justiça, Flávio Dino, e o diretor-geral da PF, Andrei Passos Rodrigues, expressaram preocupação para o governador do DF, Ibaneis Rocha, o que aumentou a pressão sobre Fábio Augusto.
O coronel contou à Corregedoria que, naquela noite, depois da ligação de Rocha, procurou imediatamente o chefe em exercício do DOP na ausência de Naime, o coronel Paulo José de Sousa Bezerra. Fábio Augusto pediu reforço de policiamento e o emprego total dos grupos especializados (que incluem o choque e a cavalaria). Também disse, em seu relato, que a resposta de Paulo José “não foi satisfatória”. Por isso, ordenou então que ele dobrasse o efetivo de quinhentos homens que haviam supostamente sido escalados para o dia seguinte. Fábio Augusto também relatou que procurou em seguida o major Flávio Alencar, que comandaria toda a operação em campo, reiterando que ele dobrasse o efetivo previsto. O coronel pediu ainda ao major que lhe repassasse um formulário detalhando quantos policiais estariam presentes em cada linha de ação, segundo seu depoimento à Corregedoria. Mas suas ordens foram ignoradas por Alencar. E os eventos que transcorreram nas horas seguintes demonstraram que, apesar de o coronel ser a figura de comando da corporação, suas ordens foram descartadas por toda a cadeia hierárquica que se reportava a ele.
No 8 de janeiro, o major Flávio Alencar comandou as tropas no lugar de Naime, que seria o titular natural da operação por ser reconhecido como um policial experiente no trabalho em campo e no comando da linha de choque. Ao depor, o major não explicou por que ignorou as ordens do comandante Fábio Augusto. Mas relatou uma série de ordens incomuns ocorridas naqueles dias, e que ele cumpriu.
No dia 7, quem o convocou para a missão do dia seguinte foi seu superior direto, o coronel Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues, então comandante do Primeiro Comando de Policiamento Regional (1º CPR), principal órgão de policiamento do DF, que chefia as tropas que servem a área da Esplanada. Coronel Casimiro é outro personagem central dos eventos que se seguiram no dia 8, pois partiram dele as ordens que, de fato, foram cumpridas pela cadeia de comando.
Como a convocação feita por Casimiro foi verbal, não escrita, não foi expedida uma ordem de serviço para nortear o trabalho do major Flávio Alencar no dia seguinte, o que era atípico. Nesse documento meramente burocrático estaria listada a quantidade de efetivo e a escala de entrada de cada um. Sem esse papel, o major estava no escuro. Não conseguia controlar as ausências nem tinha autorização para pedir reforço, caso fosse necessário. Por essa razão, não se sabe até hoje quantos policiais estavam, de fato, em campo antes dos ataques. Embora a Polícia Militar alegue que eles eram quase seiscentos, não se tinha o controle das chegadas e as imagens mostram poucos focos de policiamento. Segundo o presidente da CPI dos Atos Antidemocráticos, Chico Vigilante, citando um documento recebido pela comissão, havia apenas duzentos alunos da escola de formação da PM em campo, enquanto todo o restante estava de sobreaviso em casa. A PM, no entanto, não confirma esse dado.
O major Flávio Alencar contou também em seu depoimento à Polícia Federal que achou “muito estranho ter sido convocado” para gerenciar a tropa porque sua patente era incompatível com a responsabilidade e nunca fizera nada parecido. O major ainda disse que apenas atuava como “executor das ordens do coronel Casimiro”. Uma dessas ordens era para que o Grupamento de Pronto Emprego, um time de dezesseis policiais especializados em emergências envolvendo patrimônio público, chegasse só a partir das 15 horas, que era quando, nas palavras de Casimiro, usualmente “os manifestantes estariam mais exaltados”. O major havia inicialmente escalado o grupo para entrar bem mais cedo, às 7 horas da manhã. Mas cancelou essa escala mediante a ordem de seu superior. Às 15 horas, a Esplanada já estava tomada.
Em outra demonstração da pouca autoridade do então comandante Fábio Augusto sobre a tropa, ele pedira em diversas ocasiões durante a manhã do dia 8 que o major Flávio Alencar convocasse o Grupamento de Pronto Emprego para descer para a Esplanada. Esses pedidos foram presenciados pela coronel Cintia Queiroz, da SSP, que relatou o fato em seu depoimento. Mas o major seguia ignorando as ordens de Fábio Augusto, enquanto acatava as de Casimiro.
Em mais uma situação inédita, o major Flávio Alencar não recebeu de Casimiro um documento fundamental para organizar o trabalho em campo: o planejamento operacional. Trata-se de um protocolo de praxe distribuído para os chefes das tropas em serviço. Nele, cada um é informado do posicionamento e da quantidade de policiais de toda a operação, incluindo os grupos especializados, como o pelotão de choque. O major não questionou Casimiro sobre a falta desse documento. Mas depois disse, em seu depoimento, nunca ter participado do comando de uma operação, por menor que fosse, sem receber o planejamento operacional. A cavalaria, por exemplo, não havia sido sequer acionada quando a invasão do Congresso começou — esse é um grupo especial corriqueiramente escalado para manifestações na Esplanada. O major não sabia o porquê dessa ausência. E disse que, em condições normais, ao comandar tropas em campo, seria cobrado por seus superiores hierárquicos sobre a falta da cavalaria. Mas, no dia 8, nenhum deles — nem mesmo Casimiro — o questionou.
Infografia: Marco Vergotti
A exceção foi o coronel Fábio Augusto, que desde a manhã vinha cobrando seus subordinados sobre vários pontos, mas não era atendido. Na manhã do dia 8, além de cobrar o Grupamento de Pronto Emprego do major Flávio, reclamou da falta generalizada de efetivo, da ausência de equipamentos adequados e de alimentação para os policiais em campo. Todas essas cobranças, segundo o depoimento da coronel Cintia, eram feitas ao coronel Paulo José, que “sempre afirmava que estavam chegando”, relatou ela. O tenente-coronel Rosivan Correia de Souza, também da Secretaria de Segurança Pública, ouviu Fábio Augusto reclamando da logística e determinando que fossem colocadas barreiras de concreto na Esplanada para mitigar o problema do baixo efetivo. A falta de equipamento prejudicou de forma incontornável a neutralização dos manifestantes pela tropa que estava em campo, já que não havia munição química suficiente para ser usada pelos policiais. Por isso, muitos deles pararam de disparar contra os vândalos por volta das 15h30, no aguardo de viaturas que pudessem reabastecê-los.
Fábio Augusto também questionou seus subordinados sobre por que não havia na Esplanada o “choque montado” — homens do pelotão de choque montados a cavalo. A coronel Cintia Queiroz, da SSP, relatou em seu depoimento que presenciou o coronel Fábio Augusto cobrar o coronel Paulo José, do DOP, sobre a chegada dessa equipe. A resposta sempre era de que “estava para chegar”, segundo ela. Mas eles nunca chegavam. O DOP era o órgão responsável pelo planejamento das operações e respondia diretamente para o coronel Klepter. Estava sob a responsabilidade do DOP, por exemplo, o comando do coronel Casimiro. Fábio Augusto não via o “choque montado” na Esplanada simplesmente porque Paulo José não havia nem sequer convocado a cavalaria para a missão. Em seu depoimento à Polícia Federal, ele responsabilizou por essa falha o órgão hierarquicamente inferior: o comando do coronel Casimiro. Paulo José alegou que Casimiro não pedira que a cavalaria integrasse a tropa naquele dia. Assim, embora houvesse a cobrança de Fábio Augusto, o coronel Paulo José parecia obedecer aos comandos de seu subordinado, Casimiro.
Em determinado momento, quando os ânimos começavam a se tensionar na Esplanada, e Fábio Augusto se exasperava ao ver que não estava sendo atendido pelos subordinados, decidiu ligar diretamente para Casimiro para pedir reforço. Casimiro, no entanto, se esquivou da responsabilidade: disse que pediria ao major Flávio Alencar que cuidasse da demanda. Fábio Augusto passou então a ligar para cada chefe dos pelotões especializados, como o choque, mas antes que conseguisse contato, a primeira linha de revista policial foi rompida pelos manifestantes, que entraram na Esplanada sem o controle dos PMs.
Em seu depoimento à Corregedoria, Paulo José relatou que acionou somente às 14h10 o “choque montado” que o comandante Fábio Augusto pedira. Isso ocorreu apenas vinte minutos antes do rompimento da primeira linha de revista. Como o batalhão estava de sobreaviso e demoraria pelo menos uma hora e meia para chegar, já era tarde demais. Depois de algum tempo de enfrentamento entre a polícia e os manifestantes, quando a munição química já havia acabado, a coronel Cintia relatou à Corregedoria ter visto o coronel Paulo José ligar para o coronel Naime, de férias, pedindo ajuda para acionar todo o efetivo, pois ele, que comandava naquele momento o departamento mais importante da PM, não tinha os contatos para executar essa tarefa. Naime foi então para a Esplanada para ajudar e disse ter chegado ao local e encontrado o coronel Paulo José “bastante abalado e nervoso”, segundo seu depoimento.
Embora o coronel Casimiro tenha sido descrito como o comandante de fato da operação do dia 8 de janeiro por Fábio Augusto, Paulo José, Flávio Alencar, Cintia, e Gustavo Cunha de Souza, chefe do pelotão de choque, o policial negou essa informação quando chegou sua vez de depor. Casimiro disse à PF que o major Flávio Alencar comandava naquele dia. Ele também afirmou que o planejamento operacional do evento era atribuição do DOP, e que esse órgão deveria convocar o efetivo, não ele, contradizendo o depoimento de Paulo José. Casimiro disse ainda que nem chegou a ler o protocolo elaborado pela Secretaria de Segurança Pública para nortear as ações daquele fim de semana, embora estivesse presente na reunião que definiu as diretrizes desse documento.
A ata dessa reunião, ocorrida no dia 6, mostra ainda que Casimiro estava ciente das intenções golpistas que circulavam nas redes sociais. Ele foi o único presente que atentou para esse risco. Segundo a ata, o coronel menciona que circulam “áudios em redes sociais de possibilidades de invasão de prédios públicos”, que “não se pode descartar, que é preciso ficar bem atentos aos eventos”, “que haverá reforços de viaturas” e que fosse “realizado reforço das portarias e da segurança dos prédios federais”. Ainda segundo Casimiro, seria “necessário providenciar um outro esquema de segurança se confirmados os atos”.
Dois dias antes da reunião, Casimiro comentara sobre esse risco com o major Flávio Alencar. Segundo o depoimento do major, em 4 de janeiro, Casimiro encaminhara para ele, via WhatsApp, um folder que convocava para a “Tomada de Poder pelo Povo”. Contudo, tal convocação não ensejara qualquer sobressalto no trabalho do coronel, que informou ao major que a inteligência da PM ficaria monitorando as redes sociais em busca de algo mais concreto.
A inteligência da PM, cujo comandante Reginaldo de Souza Leitão estava de férias, não viu nada de mais nas convocações. O departamento de inteligência da SSP detectou tardiamente os riscos e elaborou um relatório baseado em postagens de internet, enviado fisicamente ao gabinete do secretário de Segurança Pública, Fernando de Sousa Oliveira, no final da tarde de sexta-feira 6, quando ele já não estava mais no escritório. Em nenhum momento Oliveira recebeu qualquer aviso de urgência sobre o documento que fora despachado para sua sala. Assim, só o viu na segunda-feira dia 9, depois das invasões. A autora do relatório, a delegada da PF Marília Ferreira de Alencar, trabalhava na área de inteligência do Ministério da Justiça sob o comando de Anderson Torres, e foi levada por ele para a Secretaria. Marília deveria ter difundido o documento para a área de inteligência da PM por meio de um sistema eletrônico próprio para isso, chamado Cronos, mas não o fez alegando problemas em acessá-lo. Pessoas de seu time compartilharam algumas dessas mensagens de convocação para “tomada de poder” em grupos de WhatsApp contendo chefias da PM e da SSP. Mas como não se tratava do foro correto para a divulgação oficial de informações de inteligência, ninguém deu importância às postagens. Marília estava no cargo havia uma semana.
O gabinete da intervenção federal instaurado depois do 8 de janeiro logo intuiu que as invasões eram produto de sabotagem. O mesmo foi concluído pelo governador Ibaneis Rocha. O relatório da intervenção, publicado no final de janeiro, não conseguiu comprovar o caráter conspiratório dos eventos, mas lança luz sobre o fato de o então secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, estar plenamente ciente das intenções golpistas dos manifestantes e nada ter feito contra isso. Torres está preso desde 14 de janeiro.
Sejam os fatos transcorridos em 8 de janeiro produtos de conspiração ou incompetência, os documentos e mensagens detidos pelos investigadores revelam três pontos pacíficos. A decisão de Klepter Rosa de colocar a tropa em sobreaviso resultou no baixo efetivo em campo; a desorganização e a omissão de Casimiro em relação ao ímpeto da manifestação culminaram no apagão operacional que impediu a contenção dos vândalos antes que depredassem os prédios públicos; a inaptidão de Paulo José para a chefia do DOP prejudicou o planejamento da ação policial e também da reação.
A falta de liderança do então comandante, Fábio Augusto, é observada em todas as situações durante aquele fim de semana de janeiro. Esse detalhe foi crucial para os investigadores da Polícia Federal e do MPF trabalharem com a hipótese de que alguns chefes da corporação foram omissos de propósito, no intuito de criar uma situação pública que colocasse a liderança de Fábio Augusto em xeque, para derrubá-lo do cargo. Tal hipótese carece de comprovação. Mas, segundo pelo menos quatro fontes da PM ouvidas pela reportagem, o cargo de Fábio era cobiçado por pelo menos dois coronéis: Naime, considerado policial tecnicamente mais preparado da corporação, que saiu de férias na véspera, e Klepter, o subcomandante que terminou promovido — este último fora indicado para o subcomando no ano passado justamente pelo deputado Hermeto (MDB), o relator da CPI que investiga os Atos Antidemocráticos. Eles são amigos.
O deputado Chico Vigilante, presidente da CPI, não descarta a hipótese da guerra de poder, mas afirma que os elementos que a comissão recebeu até agora permitem ir além. “Hoje estou convicto de que integrantes da Polícia Militar estavam organizando e participando diretamente do golpe, juntamente com integrantes do Exército”, diz. O parlamentar afirma que, embora Naime quisesse ascender ao comando da PM, não há provas que o coloquem como articulador do 8 de janeiro. Mas, segundo ele, há outros policiais da ativa que estariam envolvidos. O petista não quis citar nomes.
Naime está preso há cerca de dois meses por determinação de Alexandre de Moraes. É o único PM da ativa atualmente detido em consequência dos atos na Esplanada. Klepter foi promovido a comandante-geral menos de 24 horas após a depredação na Praça dos Três Poderes. Casimiro foi indiciado por negligência, assim como Paulo José, Naime e Cintia Queiroz, a coronel da SSP. Primeira mulher a ascender a um cargo de comando na segurança pública do DF, a policial elaborou o protocolo de ação que não foi seguido pela PM — em especial pelos coronéis Paulo José e Casimiro. Mas foi indiciada pela própria corporação pelo mesmo crime que eles. Casimiro e Paulo José foram afastados dos cargos que ocupavam. Cíntia permanece na Secretaria, embora a PM tenha requerido o seu afastamento.
Naime foi inquirido na CPI. Cintia e o ex-comandante Fábio Augusto são os próximos da fila. Klepter, Casimiro e Paulo José tiveram seus nomes propostos pela comissão, mas não há qualquer previsão de que sejam convocados.
Há uma semana a piauí procurou a PM do DF para entender a razão do sobreaviso ordenado por Klepter e das decisões tomadas por Casimiro e Paulo José. Pediu informações sobre os fatos do 8 de janeiro e mandou perguntas referentes à ação dos três oficiais. A corporação respondeu que não comenta processos e investigações em andamento. Os oficiais Cintia Queiroz, Fábio Augusto e Naime também foram procurados diretamente ou por meio de seus advogados, mas não quiseram se pronunciar.
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