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    Ilustração de Carvall

questões de saúde

O mantra do negacionismo namastê

Praticantes de um estilo de vida supostamente saudável recorrem à desinformação e recusam a vacina

João Batista Jr. | 24 set 2021_15h17
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Carine Farias, mestre e doutora em psicologia clínica pela PUC de São Paulo, é uma respeitada professora de ioga na cidade há mais de uma década. Ela também dança profissionalmente forró e há quinze anos virou vegetariana. Na infância, Carine tomou todas as vacinas que fazem parte do formulário nacional de imunização. Há dois anos, antes de viajar para surfar em El Salvador, soube da obrigatoriedade para entrada no país: ter uma vacina recente de febre amarela – e tomou o imunizante sem receio algum, convicta da eficácia da droga em questão. A coisa mudou com a pandemia.

Farias, de 38 anos, escolheu não se imunizar contra o coronavírus – e rechaça quem a considera uma adepta da corrente antivacina. “Eu tomei todas até agora, mas a vacina contra a Covid não foi feita no devido tempo e faz parte de uma pressão da indústria farmacêutica para vender. Eu acompanhei profissionais que, baseados em estudos científicos, conseguiram ser bem-sucedidos no tratamento contra Covid com remédios mais seguros que as vacinas, então por que querem obrigar as pessoas a se vacinarem?”, argumenta a professora. Também lança mão de um raciocínio muito divulgado entre os antivacinas ao redor do mundo, o de que o imunizante poderia causar problemas de infertilidade – algo não comprovado pela ciência.

A professora de ioga apela para outra falácia, a ineficácia das vacinas, dentro de sua extensa lista para não tomar o imunizante. “Meu padrasto faleceu há três meses mesmo após ter sido vacinado com as duas doses de CoronaVac”, conta. Seu padrasto tinha 71 anos. Na ocasião, todas as pessoas da família se contaminaram. “Minha irmã, vacinada, pegou, assim como eu, não vacinada. Nós duas tivemos os mesmos sintomas. As vacinas não são confiáveis, não importa o fabricante”, diz. 

Ela acredita que a decisão de se vacinar não deveria ser contaminada pela ideologia política. “Me chamam de negacionista, mas é justamente o contrário: eu sou questionadora. Não saio tomando algo imposto. Tem muita gente no meu círculo que pensa da mesma forma, mas tem receio de se expressar porque a pressão da sociedade tem sido forte, e hoje existe a cultura do cancelamento. Sofremos preconceito mesmo.” Quando questionada se tomaria a vacina para poder entrar em restaurante – uma exigência de cidades como Nova York e Paris –, afirma que em hipótese alguma. E diz que, se sua liberdade para entrar em restaurante for tolhida, cogita fazer piquenique na porta dos estabelecimentos como ato de protesto.

O discurso do negacionismo namastê joga luz – ou sombra – em algo sabido, mas às vezes varrido para debaixo do tapetinho de ioga: mesmo antes da pandemia do coronavírus e do surgimento de líderes radicais de extrema direita, a exemplo de Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos, alguns adeptos da prática têm se mostrado contra vacinas. Um dos argumentos é de que o uso de medicação e agrotóxicos, entre outras coisas, pode afetar o funcionamento do organismo, e que a cura para todo e qualquer problema físico e psicológico está na mente e na natureza. Outro é o mantra da liberdade individual acima de tudo. Discurso que, curiosamente, encontra eco em grupos ultraliberais, como os autointitulados anarcocapitalistas – nas redes, ancaps. Para eles, o livre mercado é a melhor forma de organizar a sociedade. Vacina e cinto de segurança nada mais são do que exemplos da “opressão estatal”.

Farias deu entrevista à piauí por telefone de Tenerife, nas Ilhas Canárias, onde há seis edições participa de um festival de dança. Ela conseguiu embarcar pela companhia aérea Iberia. A empresa permite que, além de pessoas vacinadas ou com teste negativo, possam viajar também para a Espanha aqueles que pegaram Covid há no mínimo 11 dias e, no máximo, 180. Era o caso dela. “Mesmo assim, foi difícil embarcar e não sei quando poderia voltar para a Europa. Tudo bem. Não me sinto segura com essa vacina experimental.” Quando questionada sobre a eficácia da vacina, que no Brasil fez reduzir o índice de mortes e de contaminações, Farias não credita isso à imunização em massa. Para ela, a pandemia atingiu um momento de “imunidade de rebanho”. Embora acredite que sua decisão não seja amparada em ideologia política, a professora de ioga diz apoiar Jair Bolsonaro por falta de opção.

Outro professor de ioga de São Paulo, Fares Mokarzel, de 23 anos, só agora decidiu que irá receber o imunizante. “Eu sou a favor da vacinação em massa e também da liberdade de escolha do indivíduo. Hoje em dia, em termos de negócio e política, a saúde fica em um lugar defasado, não se sabe a real intenção das campanhas de vacinação. Mas uma coisa é fato: os pesquisadores e cientistas, como seres humanos, amantes do que fazem, me passam confiança. Fui o único que não tomou ainda a vacina contra a Covid, por insegurança em relação à campanha e aos efeitos colaterais, mas, passado um tempo, hoje confio e vou me vacinar semana que vem, quando terei uma abertura na agenda”, disse ele, por meio de mensagem direta pelo Instagram.

Mokarzel diz não ter preferência por um fabricante em específico. De todo modo, o mestre em ioga afirma que acredita no poder do próprio sistema imunológico do organismo. “Ainda mais com as práticas de ioga chamadas Pranayama e Crioterapia”, explica ele sobre o método de respiração controlada e tratamentos físicos aplicando temperaturas baixas na superfície da pele.

Surfista e professor de ioga em Recife, Fred Santos, de 50 anos, se orgulha de dizer que não teve uma gripe nos últimos oito anos, período em que não tomou vacina contra a doença. Ele é adepto do “quase” vegetarianismo: come apenas peixe, a cada quinze dias. Santos demorou para tomar a vacina contra o coronavírus. Quis antes ver o resultado nas pessoas para se sentir mais seguro. “De todo modo, para ficar claro: confio na ciência, na vacina, na medicina. A minha segunda dose de Pfizer será na primeira semana de outubro”, diz. Ele tomou a primeira dose quando descobriu estar com chikungunya. Para Santos, existem duas vertentes entre os praticantes de ioga que se recusam a tomar vacina. “Uma é ideológica, são seguidores de Bolsonaro mesmo e ponto final; outra é de gente que refuta uso de remédios como um todo, tem um discurso de vida mais natural. Mas tem hipocrisia também. Eu tenho um amigo que, embora apregoe em público que não tomou a vacina, tenho a sensação de ele ter feito isso escondido porque estava com receio de seu filho se contaminar.”

Farias diz que muitas pessoas que não tomaram a vacina contra a Covid estão sendo canceladas. Na semana passada, a modelo holandesa Doutzen Kroes, uma das profissionais mais bem pagas do mundo e cujo rosto angular já estampou campanhas para L’Oréal, Valentino, Prada e Calvin Klein, fez um post em sua conta no Instagram falando não ter tomado a vacina e se dizendo tolhida de sua “liberdade” por não se sentir segura com a imunização. Kroes faz trabalho social para evitar a caça de elefantes na África. Junto à joalheria Tiffany & Co., ela criou uma coleção que destinou 4 milhões de dólares para evitar a caça de animais. Também vegetariana, ela é uma antitrumpista ferrenha justamente porque o ex-presidente americano tentou permitir que americanos pudessem retornar ao país tendo o marfim do chifre dos animais na bagagem como troféu de temporadas de turismo de caça.

 

O discurso antivacina, porém, não é unânime no mundo da ioga e tem sido alvo de muitas críticas. Primeiro, do ponto de vista do conceito da prática. Pedro Kupfer, professor e autor de livros como Yoga Prático e Dicionário de Yoga, refuta o argumento da liberdade de escolha, uma vez que a pandemia é um problema coletivo, e avisa que existe uma distorção dessa palavra entre algumas pessoas da comunidade. Liberdade, que vem do sânscrito Moksha, é justamente o principal pilar da ioga. “A almejada liberdade nunca pode ser contrária ao bem comum. Ela significa liberdade em relação às fontes que causam sofrimento da mente e sombra em nosso cotidiano. Quem pensa que a liberdade coloca em risco o coletivo está tendo uma visão distorcida e mequetrefe do que de fato significa o conceito de ioga.”

Nascido no Uruguai, radicado no Brasil por quase três décadas e hoje morador de Portugal, Kupfer acredita que a pandemia jogou luz sobre o negacionismo existente há mais tempo no mundo da ioga. “Infelizmente, o movimento contrário à medicina dentro de algumas comunidades da ioga não é recente e não se restringe ao momento do coronavírus. Eu já me peguei conversando com pessoas que, além de negarem a vacina, falam de teorias do QAnon, de que a Hillary Clinton seria uma satanista”, lembra.

O outro argumento contra o negacionismo namastê é a própria ciência, que mostrou a incontestável eficácia da vacina. O estado de Nova York, onde 62,9% da população está vacinada com as duas doses (em Manhattan, esse índice salta para 72%), tem registrado taxa de casos diários de 27 pessoas para cada 100 mil habitantes. No estado do Alaska, onde apenas 49,5% da população recebeu as duas doses, a média de contaminação por dia está em 120 novos casos para cada 100 mil habitantes. “Quem se recusa a receber vacinas que os protejam e que protejam outrem não está usando liberdade. São analfabetos funcionais que habitam uma realidade paralela. São egoístas e oportunistas, que não incorporaram os princípios fundamentais dessa filosofia nos quais se destacam o autoestudo e a entrega”, explica Jamal Suleiman, infectologista do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo.

O médico vê com alívio o fato de o movimento antivacina, a despeito de incentivadores como o presidente Jair Bolsonaro, ser discreto por aqui. Assim como os Estados Unidos, a França tem movimento antivacina mais organizado. No começo deste mês, o governo francês suspendeu 3 mil funcionários de saúde que não quiseram se imunizar. Embora 64% dos franceses estejam totalmente imunizados, a polícia do país detectou bandidos vendendo passaporte da vacina falsos, por valores entre 250 e 500 euros. “Felizmente, ao menos neste momento, esse movimento dos negacionistas é mínimo no Brasil”, diz Suleiman.

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