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    Ilustração de Paula Cardoso sobre fotos/reprodução

guerra do PCC

O Minotauro da fronteira 

Como um dos chefes do PCC deixou um rastro de mortes e corrupção no Paraguai

Allan de Abreu | 06 ago 2020_17h31
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O traficante brasileiro Sérgio de Arruda Quintiliano Neto, o Minotauro, queria a todo custo dominar o coração do narcotráfico no Cone Sul do continente sul-americano: o eixo formado pelas cidades de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, e Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Implantou diversas câmeras pelos principais pontos das duas cidades e uma central de monitoramento na cidade paraguaia, de onde controlava o movimento de veículos e pessoas. Também organizou um grupo de matadores de aluguel muito bem treinados que, durante pouco mais de um ano, impôs terror na fronteira ao caçar os que atravessaram o seu caminho. Integrante da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), Minotauro é suspeito de ser o mandante de quatro assassinatos com tiros de fuzil na região. Em dezembro de 2018, a mando de Minotauro, um grupo de trinta homens armados e com roupas militares rendeu os policiais de Ypejhú  e explodiu com granadas e dinamite três casas e uma loja de carros de um traficante rival.

Mas Minotauro também sabia fazer valer seus interesses com estratégias mais diplomáticas. Ao melhor estilo “plata o plomo (dinheiro ou chumbo)”, conhecida frase do traficante colombiano Pablo Escobar, quando as circunstâncias exigiam, o “narco” brasileiro substituía fuzis, granadas e dinamites por um artefato mais singelo: canetas Mont Blanc. Com duas delas, edição especial “Pequeno Príncipe”, avaliadas cada uma em 900 dólares, presenteou dois integrantes do Ministério Público do Paraguai, um deles chefe da unidade de combate ao narcotráfico no país – e que depois se tornou vice-ministro da Justiça. Aos integrantes da Polícia Nacional paraguaia e da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), tropa de elite antitráfico do país vizinho, Minotauro distribuía pagamentos mensais, regiamente quitados a cada dia 30, mostra a investigação da PF. O Paraguai estava em suas mãos.

Para entender melhor como um narcotraficante do PCC dominou um país, é necessário voltar no tempo. De família de classe média de Bauru, interior paulista, Sérgio Quintiliano foi preso pela primeira vez aos 18 anos, por tráfico de drogas. Dois anos mais tarde, foi novamente preso após ser flagrado por porte ilegal de arma de fogo. Nesses dois casos, respondeu aos processos judiciais em liberdade. Em julho de 2006, aos 21 anos de idade, acabou preso em flagrante na divisa dos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul com dois fuzis, uma submetralhadora, três granadas e centenas de cartuchos, trazidos do Paraguai. Foi condenado a quatro anos e meio de prisão por porte ilegal de arma de fogo e formação de quadrilha. Na cadeia, conheceu integrantes do PCC e acabou batizado pela facção.

Em 2009, deixou a prisão e passou a trazer cocaína e maconha do Paraguai para vender no interior paulista e na Baixada Santista. Três anos depois, comprou dois postos de gasolina em Bauru por 800 mil reais, um automóvel BMW por 330 mil reais e um Porsche Panamera por 470 mil reais (em valores da época). Tinha planos para comprar um Lamborghini por 800 mil reais, mas antes a Polícia Civil deflagrou uma operação e derrubou o seu esquema – ele seria condenado em duas ações penais a mais de 21 anos de prisão por tráfico de drogas e associação para o tráfico. Quintiliano fugiu para Pedro Juan Caballero, Paraguai, esconderijo de dez entre dez narcotraficantes brasileiros procurados pela Justiça. Com uma certidão de nascimento falsa obtida na vizinha Ponta Porã, obteve novos documentos e estreitou laços com os grandes “capos” da fronteira: Jorge Rafaat Toumani, de quem foi gerente por alguns meses; e Jarvis Gimenez Pavão, que mesmo preso no Paraguai controlava o narcotráfico na fronteira – foi Pavão quem deu a Quintiliano o apelido de Minotauro. Apesar de filiado ao PCC, Minotauro sempre manteve os seus próprios esquemas no tráfico de drogas, prática tolerada pela facção paulista.

Com o assassinato de Rafaat em 2016, Minotauro passou a dividir com Pavão o epíteto de “rei da fronteira” que pertencia a Rafaat. Com o auxílio de sua segunda mulher, a advogada paraguaia Maria Alciris Cabral Jara, a Maritê, contratou seis pilotos para trazer cocaína do Peru e da Bolívia até uma fazenda na região de Pedro Juan Caballero alugada pelo casal, em voos mensais ou quinzenais com até 450 kg da droga. Da propriedade, a cocaína seguia também por aviões para os estados de São Paulo e Santa Catarina, onde era exportada para a Europa pelos portos de Santos e Itajaí, respectivamente. A Polícia Federal encontraria no celular de Minotauro anotações como “nós escolhemos a peruana” em albanês. Somente em novembro e dezembro de 2018, o traficante brasileiro movimentou 4 milhões de euros na exportação de cocaína pura para a Europa, segundo a PF.

 

A boa convivência entre Minotauro e Pavão ruiria a partir de março de 2018, por conta de uma dívida milionária que o traficante de Bauru tinha com o segundo. A primeira vítima do conflito foi a argentina Laura Marcela Casuso, advogada de Pavão, assassinada em 12 de novembro de 2018 com dez tiros de pistola calibre 9 milímetros em Pedro Juan. Dias antes, Casuso enviou a pessoas próximas um áudio no aplicativo WhatsApp dizendo que Minotauro subornava um nome do alto comando da Polícia Nacional do Paraguai. Procurada pela piauí, a assessoria da Polícia Nacional não se manifestou.

Quinze dias depois, a caminhonete dirigida por um sobrinho de Pavão em Pedro Juan foi alvo de noventa disparos de fuzil – o jovem de 24 anos só não morreu devido à blindagem do veículo. Em 9 de janeiro de 2019, foi a vez do administrador dos bens de Pavão ser morto dentro do seu automóvel em Pedro Juan – naquele mesmo dia, Minotauro disse à mulher Maritê que mataria um suposto delator de seus crimes à polícia, conforme a acusação do Ministério Público: “Fala pra deixá cagueta que eu mato depois / Palavras Jr Minotauro.” Oito dias mais tarde, Francisco Novaes Gimenez, tio de Pavão e ex-vereador em Ponta Porã, foi brutalmente morto dentro de casa – no imóvel foram constatados 190 tiros de fuzil, disparados por dez sicários.

A violência respingou na polícia. O investigador da Polícia Civil de Ponta Porã Wescley Dias Vasconcelos descobriu a identidade falsa utilizada por Minotauro no Paraguai e chegou a colocar um rastreador em um dos automóveis do traficante. Pouco tempo depois, no dia 6 de março de 2018, o policial foi morto com quarenta tiros de fuzil minutos após deixar a delegacia da cidade. Apesar dos fortes indícios que ligavam Minotauro aos crimes – os tiros que mataram Vasconcelos partiram da mesma arma que atirou contra o carro do sobrinho de Pavão – em nenhum dos casos Minotauro foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público brasileiro ou paraguaio. “Na fronteira é muito difícil reunir provas, materiais ou testemunhais. Todo mundo tem medo”, diz um policial que atua na fronteira – justamente por receio de Minotauro, nenhum dos entrevistados pela piauí quis ser identificado nesta reportagem.

Acossado, o traficante decidiu refugiar-se no litoral catarinense, destino de parte da cocaína que trazia do Paraguai, rumo ao continente europeu. Em novembro de 2018, alugou a cobertura de um apartamento por 10 mil reais mensais em Balneário Camboriú e comprou, em nome de um laranja, um carro BMW por 167 mil reais. Retomou a vida de luxo ao lado da mulher, Maritê – o casal alugou uma lancha para comemorar com amigos o aniversário da advogada paraguaia, em janeiro de 2019, com direito a uísque e champanhe. A PF chegou ao endereço do traficante ao seguir os passos de um dos pilotos dele. Ao pararem um dos veículos que acreditavam ser do traficante, os agentes da PF depararam-se com um marroquino procurado pela Interpol por tráfico de drogas e um albanês. Os dois disseram que haviam acabado de deixar um prédio no centro da cidade que os policiais já suspeitavam ser o esconderijo de Minotauro.

Ao chegarem na portaria do prédio, os policiais depararam-se com uma jovem saindo do elevador. Ao perceber a equipe da PF, a mulher voltou para o elevador e subiu. Em menos de um minuto, uma moradora do prédio interfonou para o porteiro dizendo um um homem estava batendo desesperado na porta do apartamento dela. “Socorro, vão me matar”, berrava o homem – era Minotauro. Imediatamente os policiais subiram pela escadaria do prédio até encontrarem o traficante no quinto andar. Na cobertura, onde Minotauro morava, os agentes da PF encontraram 100 mil dólares em uma bolsa e dois relógios Audemars Piguet Royal Oak Off Shore, avaliados em 173 mil dólares. O traficante foi levado para o presídio federal de Brasília.

 

Com a prisão de Minotauro, a advogada Maritê mudou-se para Bauru, de onde criou um plano para limpar a ficha do marido no Paraguai – a esperança do casal era de que o traficante deixasse a prisão em pouco tempo e eles se mudassem para o país vizinho. Com a polícia paraguaia no bolso, restava à dupla subornar o Ministério Público.

Desde 2018 tramitava no gabinete do fiscal (equivalente ao cargo de promotor de Justiça no Brasil) Hugo Carlos Volpe Mazo, chefe da Unidade Especializada na Luta contra o Tráfico de Drogas do Ministério Público do Paraguai, uma investigação contra Minotauro por uso de documentos falsos, tráfico de drogas e de armas, associação criminosa e lavagem de dinheiro. Em junho de 2019, Maritê, de Bauru, acionou um advogado em Pedro Juan para procurar o fiscal da cidade, Armando Cantero Fassino. Eles queriam que Fassino intermediasse um encontro entre o advogado e Mazo em Assunção. Ao saber que a reunião fora marcada na capital do Paraguai na tarde de 2 de julho, Maritê pediu para que o advogado mandasse “saudações ao meu querido doutor” – o fiscal Mazo. Na reunião, Mazo comprometeu-se a arquivar a investigação contra Minotauro. Em retribuição, uma semana depois Maritê pediu que o advogado comprasse uma caneta Mont Blanc, série especial “Pequeno Príncipe”, com detalhes em ouro, em um shopping de Assunção. “Eu quero o top dos tops”, disse Maritê. “Toda vez que olhar, vai lembrar da gente. […] Já leva a tinta também, para que assine logo [o arquivamento] (rsrs).” Em uma nova reunião entre o advogado e Mazo no dia 18 de julho, o fiscal entregou ao primeiro cópia da decisão de arquivamento da investigação contra o traficante brasileiro. “Excelente!”, comemorou Maritê. “Saudações ao meu querido.”

No dia seguinte, de acordo com a investigação, a mulher de Minotauro pediu que o advogado comprasse uma caneta igual para o fiscal Fassino, em Pedro Juan (“Tem que ser igual porque assim vão ver que não diferenciamos um do outro”), além de lhe entregar 10 mil dólares. Segundo o advogado, Fassino “ficou muito feliz pelos dois presentes”. “Eles são muito bons com a gente, sabemos que temos abertura”, respondeu Maritê. 

Cerca de um mês depois, em 23 de agosto, a então procuradora-geral da República no Brasil, Raquel Dodge, e sua equivalente no Paraguai, Sandra Quiñonez Astigarraga, assinaram em Salvador um acordo de cooperação para investigar conjuntamente Minotauro e sua quadrilha. Aparentemente, a procuradora paraguaia desconhecia que o fiscal Mazo arquivara a investigação contra o traficante no Paraguai. “Ele fez a chefe de boba”, diz um procurador do MPF no Brasil.

Maritê foi presa dia 5 de agosto em Bauru. No mês seguinte, ela e Minotauro foram denunciados pelo Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul por organização criminosa, corrupção ativa de policiais paraguaios e uso de documentos falsos. No dia 31 de julho deste ano, o MPF denunciou novamente o casal por corrupção ativa, no caso dos dois fiscais paraguaios. Pelo fato de o crime ter sido consumado em território paraguaio, nem os policiais nem os promotores do país vizinho podem ser incluídos na denúncia dos procuradores brasileiros. Têm de ser investigados em seu próprio país. Já Maritê  e Minotauro são suspeitos de subornar os fiscais a partir do Brasil.

Mazo deixou o Ministério Público no fim de 2019 e tornou-se vice-ministro de Justiça do Paraguai. No entanto, quando o caso de corrupção estourou na imprensa paraguaia, em janeiro, ele pediu demissão do cargo. Fassino deixou a unidade especializada de combate ao tráfico em Pedro Juan e atualmente atua como fiscal na capital. Ambos são alvos de sindicância no Ministério Público do Paraguai.

Fassino nega recebido suborno. “Eles ofereceram presentes, mas não aceitei”, disse à piauí. Ele disse que já coordenou operações policiais contra Minotauro em Pedro Juan Caballero e que Mazo tinha outra investigação sigilosa contra o traficante brasileiro prestes a ser instaurada. “Mancharam nossa reputação. Isso é muito triste”, afirmou. Procurado pela piauí, Mazo não quis se pronunciar. À imprensa paraguaia, ele também negou ter aceitado propinas de Minotauro. “Um advogado que foi fazer uma cópia no arquivo tributário deixou [a caneta] no meu escritório”, afirmou ao jornal Última Hora.  O advogado de Minotauro e de Maritê, Manoel Cunha Lacerda, não quis se manifestar.

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