Ilustração: Carvall
O paciente zero
A história de como a pandemia se espalhou por uma cidade alagoana e dos cientistas brasileiros que preveem como e quando ela pode reaparecer
Na manhã do dia 20 de abril, numa rádio local, a prefeitura de Maragogi, em Alagoas, anunciou a primeira morte por Covid-19 no município. Era de um idoso de 73 anos que trabalhava vendendo água mineral e botijões de gás e vivia no povoado de Peroba, na divisa entre Alagoas e Pernambuco. No começo daquele mês, o homem tinha viajado para Recife, onde passou mal e foi encaminhado para o hospital. Lá, ele se recusou a fazer o teste para Covid-19 e voltou para Peroba no dia 9 de abril. Nesse dia, o estado de Pernambuco tinha 555 casos de Covid-19 confirmados, Alagoas tinha 37 – nenhum entre os 33 mil habitantes de Maragogi. Uma semana depois, quando a barreira sanitária na divisa entre os dois estados foi montada, no dia 16, já era tarde. Maragogi já tinha dois casos da doença. No dia 18, o vendedor de água mineral morreu. Logo depois, saiu o resultado positivo do teste de Covid do ambulante, considerado o paciente zero da doença na cidade.
A transmissão comunitária do Sars-CoV-2 em Maragogi, uma cidade litorânea e turística do Norte de Alagoas, começou pelos bairros mais ao Norte da cidade, próximos à divisa com Pernambuco. De lá, o vírus seguiu o caminho da principal rodovia que corta o litoral de cidade, a AL-101. Não demorou para que os casos da doença se espalhassem pelo município. Ainda no primeiro semestre, a prefeitura fechou uma parceria com os pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) para tentar entender como o vírus havia se espalhado e simular os cenários da doença na região. “A mobilidade é muito grande de um estado para o outro, e as pessoas usam muito a rodovia para transitar entre os bairros”, diz Sérgio Lira, professor do Instituto de Física da UFAL e integrante do grupo de cientistas empenhados em desvendar a epidemia em Maragogi. “As pessoas usam a rodovia para ir em busca da maioria dos serviços, que estão no centro. Isso faz a disseminação ser muito rápida porque em um único dia, as pessoas passam por vários bairros através da estrada, com algumas casas e comércio na beirada”, explica Lira.
A rodovia que corta o litoral alagoano foi a porta de entrada para a Covid-19. A informação encontrada pelos pesquisadores coincide com a observação dos funcionários de saúde em Maragogi, que viram os casos aparecerem pelos bairros em direção ao centro. “A doença se espalhou pelos povoados de maior densidade populacional, na costa, e não chegou a se disseminar na zona rural”, explica Lira.
Entender o passado – e o futuro – da epidemia em Maragogi foi uma odisseia. Em março, os pesquisadores da UFAL começaram a desenvolver um software, o Sistema de Monitoramento Clínico, para coletar dados dos moradores da cidade. Esse era o primeiro passo para construir uma rede de contatos que possibilitaria o rastreamento da transmissão da doença e da cadeia de contágios na cidade. “Sabíamos que seria difícil, mas não imaginamos que fosse ser tão difícil”, diz Krerley Oliveira, matemático e professor da UFAL. Isso porque as bases de dados do SUS não são vinculadas. “Algumas pessoas têm mais de um registro no Cadastro Nacional de Saúde, que precisa de uma limpeza urgente. Além disso, a base criada para a Covid, o E-SUS VE, não está vinculada ao Sivep, o sistema que registra os casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG)”, explica Oliveira.
Quando uma pessoa infectada busca atendimento em uma UPA, por exemplo, as informações precisam ser inseridas, de forma separada, em até seis bases diferentes, dependendo da evolução da doença. Esse processo pode levar à perda de informações. Por isso os pesquisadores passaram quatro meses reunindo e limpando todas as bases de dados, sem a cooperação do Ministério da Saúde. A saída foi usar bots que varreram quase 33 mil páginas de PDF para categorizar as informações. “Baixamos e garimpamos os dados como se estivéssemos arrombando a porta do sistema”, resume Oliveira.
O resultado foi uma base única, oferecida aos gestores públicos, como uma espécie de prontuário eletrônico, com dados pessoais e de saúde de cada morador que procura atendimento. O sistema também disponibiliza os casos geolocalizados a partir do endereço de cada paciente. “O algoritmo de busca do Google não é eficiente para as cidades do interior, então tivemos que incrementar essa ferramenta com os dados coletados da cidade para termos uma visão espacial”, diz Lira. O software foi oferecido gratuitamente a todo o estado de Alagoas e se tornou a plataforma oficial do sistema de saúde de Maragogi. Mas essa foi apenas a primeira parte do trabalho.
Para mapear o contágio e barrar a cadeia de transmissão, era preciso identificar elos entre os moradores. Em parceria com a prefeitura, os cientistas conseguiram fazer um raio-X da cidade, usando dados do Bolsa Família, do programa Saúde da Família e das escolas. “Fizemos uma rede onde cada ponto é um habitante. Sabendo quem mora com quem e como os moradores se relacionam, conseguimos ligar toda a população através de links”, explica Lira.
Os pesquisadores simularam ambientes de trabalho e ambientes comunitários, a partir das probabilidades de contato. “O que a gente faz é reproduzir estatisticamente a dinâmica de contágio dentro dessa rede, com pesos diferentes dependendo do tipo de contato.” A maior parte dos contatos (65%) são escolares – assumindo que todos os alunos de uma faixa etária se relacionam com todos os outros alunos da mesma escola. Depois, os contatos intrafamiliares, de pessoas que moram na mesma casa (31%). Os contatos interfamiliares – entre parentes que moram em casas separadas – são 4% dos contatos sociais. Por fim, os contatos comunitários são sorteados aleatoriamente durante as simulações. “Para cada indivíduo, calculamos a probabilidade de contaminar um próximo, em um processo chamado de estocástico”, explica Lira.
Os processos estocásticos consideram que há um grau de aleatoriedade na possibilidade de transmissão. É o contrário de uma simulação determinística, quando a distribuição de um surto de doença, por exemplo, é linear e previsível. Essa análise é a mais comum na observação da Covid-19, em que o passado determina o ritmo da transmissão no futuro. Mas há indícios de que a transmissão da doença siga, na verdade, um padrão estocástico, em que o R0 – número básico de reprodução de uma doença –, sozinho, não desvenda a transmissão de casos. E Maragogi ajuda a explicar essa história.
Os pesquisadores perceberam que a Covid poderia ser uma doença cuja transmissão é marcada pelos superespalhadores, ou seja, quando um grande número de casos é transmitido por um pequeno número de infectados. Esse foi exatamente o cenário encontrado em Maragogi, onde os pesquisadores observaram, em uma avaliação preliminar, o fenômeno dos superespalhadores. Alguns indivíduos mais “conectados” com o ambiente social acabam transmitindo o vírus para mais pessoas que a média, justamente por terem mais contatos sociais. A ideia inicial é que os superespalhadores estejam ligados a algum tipo de evento social na comunidade – por exemplo, funcionários de saúde, que são diariamente expostos e propensos a espalhar o vírus.
“De acordo com o número de pessoas infectadas e a probabilidade de transmissão, a gente tenta desenhar como a epidemia se propaga e tenta descobrir qual é a modelagem que se aproxima dos dados reais. Para cada escolha, fazemos várias simulações”, explica Lira. Com base nesses números, os pesquisadores podem, inclusive, prever onde poderá ocorrer o próximo surto da doença e adotar medidas efetivas antes que o estrago esteja feito.
O gráfico abaixo mostra um exemplo da rede de rastreamento de casos no fim de outubro, com 148 pacientes atendidos na rede de saúde. Em vermelho, os casos confirmados; em verde, os recuperados; em rosa, os casos descartados; em amarelo, os suspeitos; em azul, os casos sem informação. Os círculos maiores representam pacientes que estão sendo analisados.
Os casos em azul, sobre os quais os pesquisadores não têm informação, são o principal entrave para a análise futura. Só no mês passado, os pesquisadores conseguiram ter acesso a testes RT-PCR para rastrear com mais facilidade a rede de contatos. “Na primeira semana de contact tracing fizemos 47 testes e 10 deram positivos. Onze pessoas não quiseram ser testadas”, disse o matemático Krerley Oliveira. Segundo os pesquisadores, nos primeiros cinco meses de doença, apenas 73 testes haviam sido realizados na cidade. Agora o trabalho de testagem está ganhando força. A estimativa dos pesquisadores em julho era de que o número de pessoas que já haviam sido infectadas em Maragogi estava entre 3 mil e 4 mil – cerca de 10% da população. Oficialmente, Maragogi tem 470 casos confirmados e 16 mortes pela doença.
O modelo estocástico também pode fornecer a probabilidade de infecção das pessoas que utilizam diversos tipos de serviço. No caso das escolas, centro do debate atual, as simulações podem ajudar no monitoramento da reabertura dos estabelecimentos e na definição de intervenções nos locais onde existem mais contatos. “O objetivo é aliar a matemática ao processo de rastreamento e ao mapeamento dos casos e auxiliar na busca de casos ativos, antecipando a cadeia de transmissão”, explica Lira. Em julho, antes mesmo do lançamento do guia do Ministério da Saúde, os pesquisadores lançaram no YouTube um curso completo de contact tracing, baseado no curso do Centro de Controle e Prevenção de Doenças norte-americano.
Esse rastreamento ajuda a ter um retrato da situação atual na cidade, mas os pesquisadores ainda dependem da disponibilidade de testes para completar os rastreamentos atuais. “O que a gente vê são os pacientes que buscam atendimento, isso é só a ponta do iceberg. Agora vamos começar a buscar ativamente as pessoas e entender como elas estão se espalhando”, diz Lira. Olhar para o passado, como foi feito com a rodovia AL-101, é importante, mas o próximo passo dos pesquisadores – e, sem dúvida, o mais difícil – é impedir que a doença continue se espalhando pelo município de Maragogi.
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