Ilustração de Paula Cardoso sobre foto de reprodução
O piloto, o PCC e o voo da morte
Como a investigação da Polícia Federal chegou a um personagem central num crime que abalou a cúpula da facção
Da janela da sala de aula, o garoto Felipe Ramos Morais gostava de contemplar o vaivém dos aviões na pista do aeroporto de Congonhas, Zona Sul de São Paulo, a apenas 500 metros do colégio católico Santos Anjos, onde ele estudava. Corriam os anos 1990, e o menino respirava aviação, na escola e em casa – no apartamento dos pais, no bairro de Mirandópolis, também próximo de Congonhas, Morais tinha uma ampla coleção de aviões e helicópteros de brinquedo. Era o primogênito do casal de filhos de uma típica família de classe média alta paulistana, com pai engenheiro e mãe advogada.
Quando completou 13 anos, o avô paterno passou a levá-lo até o aeroporto do Campo de Marte, Zona Norte da cidade. No contraturno da escola, fazia pequenos trabalhos de serviços gerais em alguns dos hangares. Em 2003, aos 17 anos, concluiu o ensino médio – era bom aluno, segundo a mãe – e mudou-se para Guarujá, no litoral paulista. Morava com o pai, que na época conseguira um emprego na Baixada Santista, e estudava para o vestibular da Academia de Polícia Militar do Barro Branco. Queria se tornar oficial da PM paulista. Por duas vezes, não foi aprovado – anos depois, Morais iniciaria graduação em direito em São Paulo, sem concluir o curso.
Foi na Baixada, acredita a Polícia Federal, que Morais teve contato pela primeira vez com membros do Primeiro Comando da Capital. Aos 22 anos, em 2008, obteve habilitação para piloto de helicóptero. Quatro anos depois, com o dinheiro da venda do apartamento deixado como herança pelo avô paterno, comprou seu primeiro helicóptero, um Robinson R44 branco, fabricado em 2000. Abriu uma empresa de táxi aéreo e começou a fazer voos panorâmicos pelo Brasil – fachada para o seu empreendimento secreto, segundo a polícia: o transporte de centenas de quilos de cocaína a mando do PCC.
Piloto de confiança da facção, Morais ficou milionário: aos 30 anos, seu patrimônio alcançava 19,5 milhões de reais e incluía sete helicópteros, quatro lanchas, quatro caminhonetes e dois automóveis. Tinha cinco empresas, uma delas em sociedade com a filha do coronel da Polícia Militar de São Paulo Edson Luiz Gaspar, que foi subcomandante do Grupamento de Radiopatrulha Aérea no estado. Em 2017, Morais morava no famoso edifício Solaris, em Guarujá, o mesmo prédio do triplex atribuído pela Justiça ao ex-presidente Lula, e que levou o petista a ser condenado a oito anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O apartamento onde residia Morais está registrado em nome de uma funcionária da construtora OAS, mas, segundo o Ministério Público Federal, pertencia de fato à mulher do ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, condenado por participar do esquema de corrupção na Petrobras.
Como o piloto declarava à Receita um salário mensal de 11 mil reais, a conta não fechava – nos cálculos de um juiz de Mato Grosso do Sul, com essa renda Morais teria de trabalhar 144 anos ininterruptos para ter tamanho patrimônio. E o piloto queria mais: em 2017, planejava comprar uma fazenda com mil cabeças de gado em Goiás por 4 milhões de reais. Mas um convite da cúpula do PCC para uma missão no litoral do Ceará, em fevereiro de 2018, pôs tudo a perder.
Felipe Morais voou pouco com seu primeiro helicóptero, aquele comprado com o dinheiro do espólio do avô. No fim de junho de 2012, ele foi acionado pelo traficante de drogas Marcílio Alves Feitosa, o Tranca, maior liderança do PCC no Ceará, para transportar 174 kg de cocaína do Norte de Mato Grosso até Acopiara, no sertão cearense. Há indícios de que, já naquela época, o piloto mantivesse contato com Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, preso em abril passado, que durante muitos anos foi o principal fornecedor de cocaína para o PCC – no início de 2018, ele fornecia uma média de 2 toneladas de cocaína por mês para a facção. Fuminho morou por alguns meses em Acopiara em 2010, onde obteve uma de suas carteiras de identidade falsificadas, segundo a Polícia Civil do Ceará. A facção tem forte presença no estado desde os anos 1990, quando Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, principal liderança do PCC, participou de um assalto a carro-forte no interior cearense – a atual mulher do irmão de Marcola é natural de Mombaça, cidade próxima de Acopiara.
Na tarde do dia 2 de julho de 2012, Morais pousou o seu Robinson R44 às margens da rodovia MT-220, entre Sinop e Juína, Norte de Mato Grosso, onde o aguardava uma caminhonete com três homens. Da caçamba do veículo, o trio retirou seis grandes sacos, colocados no helicóptero. Dentro, 174 kg de cocaína trazidas da Bolívia ocultas na longarina de um caminhão. Morais e um dos três homens voaram então até Paraíso do Tocantins, onde pernoitaram. Na manhã seguinte, fizeram mais três paradas no Maranhão e no Piauí até alcançarem uma fazenda em Acopiara. O helicóptero pousou próximo de um carro, para onde os sacos foram transferidos por três homens. Em poucos minutos Morais decolou novamente. O que nem ele nem os demais sabiam é que a PF seguia todos os passos do grupo. Enquanto o automóvel era interceptado por um grupo de agentes, outra equipe da PF prendia o piloto no aeroporto de Picos, Piauí, onde pousou para reabastecimento. Mas Morais ficaria pouco tempo na cadeia – algumas semanas depois, foi solto graças a um habeas corpus e teve restituído o seu helicóptero. Foi processado por tráfico internacional de drogas e condenado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região a seis anos de prisão em regime semiaberto.
Já em fevereiro de 2013, Morais retomou seus voos panorâmicos – naquele mês, o helicóptero Robinson seria apreendido pela PM em Santa Fé do Sul, interior paulista, por estar em situação irregular. Abusado, Morais ainda seria detido quatro vezes por pilotar aeronaves em situação irregular e uma quinta por fazer voos rasantes na cidadezinha de Pompéu, Minas Gerais, em setembro daquele ano.
Mas o táxi aéreo e os voos panorâmicos pelo interior do país encobriam viagens muito suspeitas. Na manhã de 6 de outubro de 2015, policiais federais de Sorocaba, São Paulo, souberam que um helicóptero lançaria drogas na zona rural de Ibiúna, município da região. Ainda naquele dia, à tarde, os agentes flagraram Morais descendo no aeroporto de Sorocaba com outro helicóptero Robinson R44, avaliado em 800 mil reais, o segundo da incipiente frota do piloto. Na delegacia, Morais disse ter sido contratado por um homem de sotaque espanhol para transportar cinco malas com produtos eletroeletrônicos do aeroporto de Itu, cidade vizinha, até um sítio em Ibiúna. Do avião, as malas foram arremessadas para três homens ao lado de um pequeno caminhão. Os policiais foram até o sítio, onde o caseiro confirmou ter visto o helicóptero, mas o suposto caminhão não foi localizado. No GPS apreendido com o piloto, havia dezenas de coordenadas na fronteira do Brasil com o Paraguai. Mas, como não havia vestígio de droga no helicóptero, tanto Morais quanto a aeronave foram liberados. Ele chegou a ser indiciado por associação para o tráfico de drogas, mas a investigação acabaria arquivada pela Justiça Federal.
Morais voltaria para os radares da PF em 2016, quando tornou-se alvo da Operação Laços de Família. Naquela época, o piloto aproximou-se do clã Molina, que controlava o tráfico de maconha em Mundo Novo, Mato Grosso do Sul. Com 18 mil habitantes, colada no Paraguai, Mundo Novo é um tradicional entreposto da droga que sai do país vizinho rumo aos grandes centros urbanos brasileiros. O subtenente da PM Silvio César Molina Azevedo e seu filho Jefferson Henrique Piovezan Molina Azevedo buscavam grandes carregamentos de maconha em Capitán Bado, Paraguai, e cuidavam do transporte da droga em caminhões até São Paulo, Rio de Janeiro e a região Nordeste, onde era vendida para outros grupos de traficantes, incluindo o PCC – ao longo da investigação, a PF apreenderia quase 22 toneladas de maconha do esquema. Os Molina chegaram a ter um pequeno avião no início dos anos 2010 – a aeronave, segundo a PF, era utilizada para transportar cocaína da Bolívia até Mato Grosso do Sul.
O dinheiro do tráfico bancava uma vida de excessos e ostentação por parte dos Molina, especialmente do jovem Jefferson. Certa vez, ele invadiu o rodeio da cidade para desfilar na arena de touros e cavalos com sua Ferrari amarela. O Facebook dos Molina exibiam fotos de viagens para Paris (onde Jefferson e a mulher hospedaram-se em hotel com diária de 2 mil reais e desfilaram pela cidade com uma Ferrari vermelha alugada), Londres e Orlando, além de passeios de helicóptero e jet-ski.
Foi seguindo os passos de Jefferson que a PF chegou ao piloto. No dia 3 de maio de 2016, uma equipe de agentes soube que Morais estava na região de Mundo Novo. Dois dias depois, Jefferson e um subordinado foram de caminhonete até Maringá, norte paranaense, onde o primeiro embarcou em um voo até o Rio de Janeiro para buscar o pagamento por uma remessa de maconha. O plano inicial era de que, no dia seguinte, Morais levasse Jefferson de helicóptero de Guarujá até Maringá, mas o mau tempo na Baixada Santista impediu o voo. Morais então levou Jefferson de caminhonete até Assis, interior paulista, onde o subordinado dele que estava em Maringá o pegaria para levá-lo de volta a Mundo Novo. Enquanto Morais retornou a Guarujá, Jefferson e o motorista foram parados pela Polícia Rodoviária Estadual na divisa entre São Paulo e Paraná. No veículo, os policiais encontraram 310 mil reais em dinheiro e 80 mil em joias. Tudo foi apreendido.
Apesar do revés, Morais e Jefferson continuaram mantendo contato – seis meses após o flagrante, o jovem de Mundo Novo esteve em Guarujá negociando com o piloto a compra de uma lancha. Análise da PF constatou que Morais fez diversas transações financeiras em Mundo Novo entre 2012 e 2017, período em que recebeu em suas contas bancárias 1,8 milhão de reais em espécie de pessoas não identificadas. Apenas em um único dia, em 18 de dezembro de 2014, o piloto depositou 505 mil reais em dinheiro vivo para sua conta particular e de duas empresas. Relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontam quatro transações financeiras suspeitas de Morais em 2016 e 2017. O piloto só deixaria de frequentar Mundo Novo após a morte do amigo Jefferson, assassinado com dez tiros em junho de 2017 – a PF suspeita que o crime, nunca esclarecido, tenha relação com a disputa pelo controle das rotas do tráfico pelo sul de MS.
Paralelamente à investigação da Polícia Federal em Mundo Novo, a Delegacia de Investigação Sobre Entorpecentes (Dise) de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, desvendava um grande esquema de tráfico operado pelo PCC entre a Baixada Santista e a Zona Leste da capital. A facção transportava a cocaína boliviana em helicópteros, vindos de Mato Grosso – o esquema possuía uma fazenda para armazenar a droga em Rondonópolis – até a Baixada Santista. Do litoral, a droga era exportada para a Europa ou seguia em caminhões ou automóveis até a Zona Leste de São Paulo, passando por pequenos ranchos às margens da represa Billings que serviam de entreposto.
De acordo com o delegado Aldo Galiano, que comandou a investigação, Felipe Ramos Morais era um dos pilotos do esquema, responsáveis por trazer a droga de Mato Grosso até o litoral paulista. Outro era Rogério Almeida Antunes, flagrado em 2013 transportando 445 kg de cocaína em um helicóptero do filho do ex-senador Zezé Perrella, do MDB de Minas. A investigação da Polícia Civil levou à prisão em flagrante, em abril de 2018, de quatro mexicanos, um colombiano e um brasileiro em uma casa de Vargem Grande Paulista, na região metropolitana da capital, onde havia 95,4 kg de cocaína – somente o brasileiro seria condenado pela Justiça.
Faltava prender os pilotos. Vinte dias depois do flagrante, os policiais da Dise deram uma blitz em um heliponto particular de Arujá, também na Grande São Paulo. No local, encontraram Antunes, o irmão dele e outro piloto próximos a um helicóptero com resquícios de cocaína no banco traseiro. O grupo foi preso em flagrante. Antunes e o outro piloto foram condenados por tráfico de drogas e associação criminosa – o irmão de Antunes foi absolvido. O helicóptero apreendido estava em nome de um conhecido laranja de Morais, segundo o delegado Galeano, e no diário de bordo da aeronave constavam voos em nome do piloto, mas ele não chegou a ser indiciado no inquérito. A essa altura, Morais estava foragido da Justiça por um crime muito mais sofisticado, que deixaria um rastro de assassinatos e abalaria a cúpula do PCC. O voo da morte.
Em fevereiro de 2018, Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro, chamou Morais para uma missão arriscada: levar Rogério Geremias de Simone, o Gegê do Mangue, e seu aliado Fabiano Alves de Souza, o Paca, do litoral cearense, onde a dupla passava férias, de volta à Bolívia, onde comandavam, ao lado de Fuminho, as remessas de cocaína para o PCC no Brasil. Na época, Gegê era considerado o principal membro do PCC em liberdade e buscava cumprir uma ordem de Marcola: impulsionar a exportação de cocaína boliviana pelo Porto de Santos. O gerente de Fuminho na Baixada Santista era Cabelo Duro, a quem Morais estava subordinado, segundo a polícia.
Naquela época, Gegê e Paca passaram a exibir sinais claros de riqueza. Paca comprou um Porsche no valor de 300 mil reais para um dos filhos que morava na Inglaterra. No segundo semestre de 2017, a dupla investiu 10 milhões de reais na compra e na mobília de duas casas no condomínio Alphaville, em Aquiraz, na região metropolitana de Fortaleza. Em dezembro, Gegê e Paca se encontraram no local com suas respectivas mulheres e filhos. Após dois meses de férias, Cabelo Duro, Morais e mais quatro integrantes do PCC em São Paulo viajaram em voo comercial até Fortaleza, todos com a missão de levar os dois líderes do PCC de volta ao trabalho na Bolívia. Morais e Cabelo Duro embarcaram Gegê e Paca na manhã do dia 15. Após alguns minutos de voo, o piloto comunicou aos três passageiros que desceria em uma área de floresta para reabastecer. Era uma emboscada. Assim que o helicóptero pousou, saíram da mata quatro homens armados com pistolas calibre 9 milímetros. Gegê e Paca foram assassinados com dezenas de tiros. Os corpos foram arrastados para a mata, onde o grupo ainda tentou queimá-los, sem sucesso, antes de fugir no helicóptero. Fariam nova parada em outra mata, no Rio Grande do Norte, onde queimaram parcialmente, às pressas, documentos, celulares e a bagagem das vítimas.
Um dia depois, os corpos foram encontrados. Um comunicado – chamado “salve” – atribuído a Cabelo Duro, dizia que o crime fora ordenado por Fuminho depois que a cúpula do PCC descobriu que Gegê e Paca teriam desviado pelo menos 30 milhões de reais da facção. Uma semana depois, seria a vez de Cabelo Duro ser assassinado na porta de um hotel no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. Dos quatro algozes que saíram da mata para matar Gegê e Paca, dois foram presos e dois seguem foragidos.
Assustado, Morais abandonou o helicóptero utilizado no crime na zona rural de Fernandópolis, interior paulista, e desapareceu. Só seria preso três meses mais tarde em Caldas Novas, interior de Goiás. Desde então, segue no presídio federal de Campo Grande, MS, onde responde a ação penal na Justiça Estadual do Ceará por duplo homicídio qualificado, as mortes de Gegê e Paca. A mãe de Morais, Mariza Ramos Morais, que também advoga para o piloto, nega o envolvimento do filho com o tráfico de drogas e com integrantes do PCC. No flagrante de 2012 em Acopiara, Ceará, diz que o filho pegou a carga em Mato Grosso sem saber o conteúdo. Na emboscada a Gegê e Paca, afirma que Morais foi enganado por Cabelo Duro. “Quando soube que ele [Cabelo Duro] era do PCC, não pôde recuar.” A advogada não quis se pronunciar sobre a evolução patrimonial do piloto. Segundo ela, Morais emagreceu 40 kg na prisão – de 94 para 54. Seus bens foram todos bloqueados pela Justiça.
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
Josmar Jozino, 62 anos, é formado em jornalismo e história. Escreveu três livros sobre o PCC.
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