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Nossos sonhos passados e presentes para o futuro da Amazônia

JOÃO MOREIRA SALLES

 

1. UMA AMEAÇA

Verkhoiansk, na Sibéria, é um lugar frio. Localizado acima do Círculo Polar Ártico, o vilarejo de 1,5 mil habitantes disputa com outro povoado siberiano, Oymyakon, quinhentas almas e 620 km ao sul, a distinção de ser o lugar habitado mais gelado do planeta. No dia em que essa frase foi escrita, 30 de janeiro de 2021 (31 na Sibéria Central), fazia -43ºC em Verkhoiansk. Seria exagero classificar a temperatura como amena para os padrões locais; já dizer que ela trouxe algum alívio para os verkhoianskenses, isso procede. Em janeiro, não é incomum que eles enfrentem temperaturas de -50ºC.

Foi portanto uma surpresa quando essa cidadezinha conhecida por seu inverno caprichoso virou notícia em outra estação do ano. Em 20 de junho de 2020 – início do verão na Sibéria –, a temperatura, sempre ela, levou Verkhoiansk de volta às manchetes. Naquele dia fez 38ºC no vilarejo, 18 graus acima da média do mês, o valor mais alto já anotado ali desde o começo dos registros, em finais do século XIX, e possivelmente um recorde acima do Círculo Ártico.

O braseiro certamente não passou despercebido das autoridades russas. Um ambientalista brasileiro conta a história de um amigo seu que, no final dos anos 1990, participou de uma reunião internacional de ministros do meio ambiente para discutir o aquecimento global. Durante dois dias os representantes dos vários países empilharam alertas sobre os desastres que se abateriam sobre o planeta e, particularmente, sobre as respectivas nações. Falou o inglês, o americano, o francês, o brasileiro, o alemão, todos falaram. Só não falou o russo – esse não abriu a boca, só anotava. A minutos do encerramento da cúpula, o anfitrião se virou para ele e perguntou qual era, afinal, a posição de seu país. Preparando-se para o que seria o único pronunciamento oficial da delegação russa, o ministro limpou a garganta e, num inglês carregado, declarou: Russia is a very cold country.[1] Parecia radiante. As notícias que levava de volta para casa eram todas muito boas.

A Rússia tem deixado bem claro que pretende tirar proveito de um mundo mais quente. Em janeiro de 2020 o governo publicou um plano nacional sobre mudanças climáticas, no qual conclamou a sociedade a usufruir das “vantagens” do aquecimento. Como mostrou o New York Times recentemente, o documento menciona a abertura de novas vias marítimas no Ártico e períodos de plantio mais prolongados como “benefícios adicionais” a serem explorados.

De fato, no jogo de perde e ganha das mudanças climáticas a Rússia se sai muito bem. Um estudo publicado em 2015 na revista Nature dá a medida das implicações geográficas do que vem por aí. Na síntese do NYT: “Trace uma linha em volta do planeta na latitude das fronteiras norte dos Estados Unidos e da China e praticamente qualquer lugar ao sul sairá perdendo.” Vale para os cinco continentes. Se a emissão de gases do efeito estufa seguir na mesma toada, em 2100 a China crescerá metade do que cresce hoje; a renda per capita dos Estados Unidos será um terço menor do que seria num mundo não aquecido; no caso do Brasil, o empobrecimento será de 92%. À luz dos fenômenos climáticos, latitude é destino.

A Rússia é um dos grandes (e raros) vencedores dessa loteria. O aumento das temperaturas afetará de maneira direta os solos permanentemente congelados das tundras siberianas. Se mantivermos as atuais taxas de emissão de gases de aquecimento, nos próximos sessenta anos metade da Sibéria poderá se abrir para a agricultura. Ainda que essa conversão comporte riscos ecológicos tais como a proliferação de pragas e a emergência de patógenos até então aprisionados no solo congelado, trata-se de um território maior que a Índia, equivalente a duas Argentinas e, para chegar ao ponto, praticamente do tamanho de toda a Floresta Amazônica, isto é, daquela que se estende pelo Brasil e por mais oito países.

A conversão já teve início. Na cidade de Krasnoiarsk, no sul da Sibéria, as safras de 2020 de trigo e colza (planta de cuja semente se extrai biodiesel) duplicaram em relação às do ano anterior. Nadezhda Tchebakova, nascida na cidade e pesquisadora em ecologia do clima, disse ao NYT que os números confirmavam as previsões de seu grupo, “a não ser pelo fato de que esperávamos esse resultado só para meados do século”.

Em dezembro de 2015, no seu discurso de fim de ano ao Parlamento, Vladimir Putin declarou que em breve a Rússia será “a maior exportadora mundial” de alimentos saudáveis, referência à determinação de impor limites severos ao plantio de espécies geneticamente modificadas no país. O plano caminha bem. A ineficiência crônica da agricultura soviética, com suas quebras desastrosas de safra, são histórias do século XX. Hoje, em relação ao trigo, por exemplo, a Rússia superou os Estados Unidos e já ocupa o primeiro lugar entre os exportadores do grão, sendo responsável por abastecer cerca de um quarto do mercado global.

São conquistas dos últimos vinte anos. Mirando o futuro, a Rússia olha para baixo, para a sua fronteira sul, além da qual se encontra o país mais populoso do mundo e, não demora, a maior potência econômica também. No intervalo de um ano, de 2017 a 2018, as importações chinesas de alimentos produzidos na Rússia cresceram 61%.

A soja participa dessa novíssima pauta comercial, uma história que se iniciou anteontem mesmo, em dezembro de 2015, quando as autoridades fitossanitárias da China autorizaram a importação da soja siberiana. De lá para cá, os volumes transacionados aumentaram 51 vezes. As quantidades ainda são pequenas, menos de 1% de toda a soja comprada pela China. Ocorre que a Rússia não pensa em anos, mas em décadas. Além de tempo, o país tem uma estratégia, um projeto de Estado. Sabe, por exemplo, que as condições climáticas em latitudes abaixo de sua fronteira sul vão se tornar cada vez mais adversas para a agricultura. Que o mundo tropical será fustigado por secas e queimadas. E que a Sibéria fica a menos de 3 mil km da China, enquanto o Centro-Oeste brasileiro e a Amazônia estão a 16 mil km de distância.

 

2. OUTRA AMEAÇA

Em 2008, Patrick Brown, professor de bioquímica em Stanford, a universidade californiana cravada no centro do Vale do Silício, sentou-se diante de um prato de comida em companhia de um colega geneticista, Michael Eisen. Brown lhe perguntou: “Se fosse para escolher um único problema para atacar, qual seria o maior deles?”

“Mudança climática”, respondeu Eisen, com cara de que ninguém precisava de PhD para acertar essa.

Animado, Brown devolveu: “E qual a coisa mais grandiosa ao nosso alcance para mitigar o problema?”

Eisen soltou umas ideias em circulação na praça: biocombustíveis, imposto de carbono. Brown balançou a cabeça: “Não, não… São as vacas!”

O diálogo acima foi reproduzido numa reportagem de 2019 da revista The New Yorker. O título perguntava: Um Hambúrguer Pode Ajudar a Resolver a Questão Climática? Existe 1,5 bilhão de cabeças de gado no mundo. Steven Chu, Prêmio Nobel de Física e secretário de Energia dos Estados Unidos no governo Obama, costuma dizer que, se esses animais formassem um país, a emissão de gases do efeito estufa desse formidável rebanho – basicamente metano, produzido durante a ruminação, o processo digestivo dos bovídeos – ultrapassaria a da União Europeia, perdendo apenas para a da China e a dos Estados Unidos.

A criação de animais para consumo é uma prática extraordinariamente agressiva com o meio ambiente. Alguns dados reunidos pela New Yorker: a agricultura consome mais água do que qualquer outra atividade humana e quase um terço da produção agrícola se destina ao consumo de animais; um terço das terras agricultáveis do mundo é usado para o plantio de ração animal; derrubar florestas para formar pastos – nos últimos 25 anos, uma área equivalente à da América do Sul sofreu essa conversão – “transforma um sumidouro de carbono num dilúvio de carbono”.

Diante desse quadro, compreende-se o “São as vacas!” de Patrick Brown. “O uso de animais na produção de alimentos é de longe a tecnologia mais destrutiva da Terra”, costuma dizer. Brown tentou convencer políticos e burocratas de agências governamentais da necessidade de mudar radicalmente o modo como se produz proteína animal. Organizou seminários em Washington e publicou relatórios sobre os riscos ambientais da pecuária. Por fim, três anos depois daquela conversa com o colega de Stanford, chegou à conclusão de que o impacto que ele próprio gerava como cientista era quase nenhum. Tomou então uma decisão drástica: deixaria a academia para virar inventor – no caso, de alimentos, ou, mais especificamente, de carne. Sua aposta era clara: a estratégia mais eficaz para enfrentar os problemas resultantes da produção industrial de proteína animal consistia em oferecer ao consumidor uma alternativa competitiva, isto é, uma carne de laboratório melhor do que a carne de pasto e sem nenhum dos custos ambientais associados à pecuária tradicional.

Em 2011, Brown fundou a Impossible Foods, uma startup tecnológica sediada na Califórnia cujo objetivo é desenvolver substitutos vegetais para a carne. O bioquímico “reuniu uma equipe de cientistas que encararam a tarefa de simular um hambúrguer como se a empreitada fosse a Missão Apollo”, escreve a New Yorker. O desafio era competir de igual para igual – em textura, sabor, aspecto e preço – com o produto encontrado nos açougues do mundo.

Em 2016, a versão 1.0 da iniciativa veio à tona (já existe a versão 2.0). Batizado de Impossible Burger, cada “bife” requer menos 87% de água do que um hambúrguer convencional e ocupa uma área 96% menor para ser produzido. Sanduíche por sanduíche, esse ganho excepcional no uso da terra, associado à eliminação da ruminação bovina, explica a queda de 89% na emissão de gases do efeito estufa. Em termos de valores nutricionais, o hambúrguer vegetal é mais rico em fibras, vitaminas, ferro e cálcio do que o produto original, e tem a mesma quantidade de proteína, embora mais gordura saturada e sódio. O colesterol é zero. E o ponto-chave: em testes cegos de sabor, metade dos entrevistados não conseguiu distinguir entre o hambúrguer do supermercado e o da Impossible, que, fazendo jus ao nome da marca, chega a sangrar como seu congênere animal.

Os investidores abriram os olhos: eram resultados obtidos já na primeira tentativa realizada por uma empresa que mal completara cinco anos. Bill Gates e Google são alguns dos atuais acionistas. Em 2018, cinco mil restaurantes espalhados pelos cinquenta estados norte-americanos já ofereciam o produto. A partir de agosto de 2019, a rede Burger King incluiu o hambúrguer no cardápio de todas as suas lojas no país. Hoje, o produto pode ser encontrado em 45 mil pontos de venda na América do Norte e Ásia. Em meados de 2020, a Impossible Foods foi avaliada em 4 bilhões de dólares; um ano antes, valia a metade.

São números robustos, mas pequenos quando comparados aos da concorrente Beyond Meat (Além da carne), que também oferece produtos vegetais análogos aos de origem animal e cujo slogan é “O futuro da proteína”. Fundada em 2009 e igualmente com sede na Califórnia, a empresa está valendo 8,7 bilhões de dólares na bolsa Nasdaq, de Nova York, o que a torna 2,5 vezes maior do que a multinacional brasileira BRF, nascida da fusão entre a Sadia e a Perdigão. A Marfrig, outra grande empresa brasileira do ramo e também com forte presença internacional, é descrita na Wikipédia como “uma das maiores companhias de alimentos à base de proteína animal do mundo”. A Beyond Meat vale mais de quatro Marfrigs. Só não é maior do que a terceira grande multinacional brasileira do setor alimentício, a JBS. Por quanto tempo, não se sabe.

Isoladamente, nenhuma dessas novas empresas conseguirá abalar o mercado mundial de carne. Contudo, elas devem ser vistas como experimentos bem-sucedidos, provas de conceito de que é possível revolucionar a produção tradicional de alimentos. Existe hoje uma febre de inovação no campo da indústria alimentícia e muito se fala em biotecnologia sem que se saiba direito o que o termo significa. Pois bem: no caso, é disso que se trata. As soluções para a substituição da proteína animal passam não só pelos similares vegetais, mas também pela produção de carne de laboratório – carne de verdade, real, cultivada em pipetas e placas de Petri – e pelas proteínas derivadas da fermentação de microrganismos tais como fungos. As urgências climáticas, o efeito deletério da pecuária sobre o meio ambiente, as novas tendências de consumo, tudo direciona o interesse do dinheiro e da competência científica para iniciativas desse tipo.

“Um relatório de 2019 da consultoria global Kearney aponta que, até 2040, 60% da carne consumida no mundo não será proveniente de animais”, registra o site InfoMoney. A alternativa? Um relatório publicado em 2018 pela ONUe pelo Banco Mundial, em parceria com a ONG World Resources Institute, estima que, mantidos os padrões atuais de produção, alimentar o mundo até 2050 implicará eliminar praticamente todas as florestas remanescentes do planeta.

 

 3. DILIGÊNCIAS

Dizem que o problema dos fabricantes de diligência foi não ter compreendido que estavam no ramo de transportes, não no de diligências. Quando vieram os trens e os deslocamentos sobre trilhos em geral, eles perderam literalmente o bonde. A Marfrig parece estar atenta aos riscos de se manter muito apegada às diligências. No Brasil, é ela que produz o hambúrguer à base de vegetais vendido na rede Burger King. O produto é certamente uma parte minúscula dos seus negócios, mas tem duas serventias importantes: permite à empresa alardear credenciais verdes – estando a pecuária brasileira irremediavelmente contaminada pelo desmatamento, gestos corporativos como esse entram no que o jargão chama de greenwashing, ou lavanderia verde –, além de ser uma oportunidade para testar as águas desse novo mundo “além da carne”.

Não mudar pode ser uma estratégia fatal. Em 2019, o think tank anglo-americano RethinkX, especializado em analisar e prever a velocidade, a escala e as implicações socioeconômicas das disrupções causadas pela introdução de novas tecnologias, divulgou um relatório sobre o futuro da agricultura e da indústria de alimentos. Evitando os riscos das previsões de longo prazo, os autores Catherine Tubb e Tony Seba delimitaram o horizonte temporal, concentrando-se nas transformações que o setor alimentício deverá sofrer ao longo da década que estamos vivendo, com término em 2030. Eis o início:

Estamos à beira da disrupção mais profunda, mais rápida e de maiores consequências já ocorrida na agricultura e na produção de alimentos desde a primeira domesticação de plantas e animais há 10 mil anos. Trata-se primariamente de uma disrupção que diz respeito a proteínas e cuja causa é econômica. Em 2030, o custo das proteínas [alternativas] será cinco vezes menor que o das proteínas de origem animal existentes hoje; em 2035 elas custarão dez vezes menos, chegando por fim a se aproximar do custo do açúcar. [Esses similares] serão também superiores em todos os atributos que contam: serão mais nutritivos, mais saudáveis, mais saborosos e mais convenientes, já que de uma variedade quase inimaginável.

É preciso tomar esses exercícios de futurologia com cautela. No entanto, o fato de os pesquisadores terem limitado a análise a uma década apenas, a contar do presente, significa que muitas tendências identificadas já estão em curso, o que acrescenta alguns graus de confiabilidade ao trabalho. Segundo os autores, os setores que mais sofrerão com as mudanças serão a pecuária e a indústria de laticínios. “Sendo a parte mais ineficiente e economicamente mais vulnerável desse sistema de produção de alimentos, os derivados bovinos serão os primeiros a sentir toda a força disruptiva do alimento high-tech. As alternativas modernas serão 100 vezes mais eficientes no uso de terra, de 10 a 25 vezes mais eficientes no uso de matéria-prima […] e 10 vezes mais eficientes no uso da água”, afirma o relatório. Quando se alcançar a paridade de preço, acreditam os autores entre agora e 2023 (o hambúrguer vegetal do Burger King ainda custa 2 reais a mais que o tradicional), a adoção das novas proteínas se acelerará de forma exponencial. Até 2030, o rebanho bovino nos Estados Unidos sofrerá uma redução de 50%, e, “para todos os efeitos, o setor pecuário estará praticamente falido”.

Diante desse quadro, resta saber o que será da Amazônia, onde 80% das terras agrícolas ou foram tomadas pela pecuária ou se encontram em estado de abandono. Estudos recentes indicam que a pecuária na região, ao contrário de ganhar em produtividade, torna-se cada vez mais extensiva, sintoma de ocupação predatória e uso vagabundo do território.

Não surpreende que seja assim. Como mostrou o terceiro artigo desta série, enquanto a fronteira continuar aberta e a floresta puder ser derrubada sem risco de sanção efetiva do Estado, será sempre mais vantajoso apostar na ineficiência. É o que dizem os modelos econômicos e o que se constata empiricamente. Além de predatória, essa aposta não prevê as ameaças que afetarão as nossas próximas décadas. Apenas duas foram descritas aqui, mas existem muitas outras – entre elas, a concorrência crescente da África (financiada por capitais chineses) na produção de grãos e carne, e eventuais boicotes econômicos que aliam interesses econômicos protecionistas ao justificado horror da devastação ambiental promovida pelo Brasil.

Quando todas essas forças se abaterem sobre a Amazônia, o que sobrará? Uma vastidão de solos depauperados e sem atividade econômica, ali onde antes crescia um dos mais complexos sistemas ecológicos do planeta. Teremos perdido um provedor extraordinário dos benefícios ecossistêmicos e das riquezas da biodiversidade de que um mundo redesenhado pelas mudanças climáticas estará carecendo desesperadamente.

 

4. UM CASO DE SUCESSO: A AGRICULTURA TROPICAL

Em 6 de outubro de 1973, dia do feriado judaico de Yom Kippur, o Egito e a Síria lançaram uma campanha militar contra Israel. Seis dias depois, o presidente norte-americano Richard Nixon providenciou o fornecimento de armas para o aliado agredido. Em resposta, os países árabes anunciaram um embargo petrolífero contra os Estados Unidos, o Japão e alguns países da Europa Ocidental. Em poucos meses o preço do barril passou de 3 dólares para 12, um salto de 400%. O mundo entrou em recessão.

Embora o Brasil não tenha sido incluído no rol dos embargados, os efeitos da crise de 1973 foram devastadores por aqui. O país importava 70% do petróleo que consumia, e a explosão dos preços afetou profundamente sua balança comercial. Com escassez de moeda forte, a carestia deu as caras. Para piorar, como o Brasil importava os gêneros alimentícios mais básicos, subitamente se viu em grande dificuldade para garantir a oferta de alimento à população.

Os jornais publicavam manchetes alarmadas sobre o preço da carne, do trigo e do arroz. “Aquilo foi um trauma”, lembra o engenheiro agrônomo e geneticista botânico Maurício Antônio Lopes, presidente da Embrapa entre 2012 e 2018. “Um país dessa dimensão depender do programa americano que mandava leite em pó para a merenda das nossas escolas” – era absurdo.

A história do agronegócio brasileiro nasce de uma decisão de Estado sobre segurança alimentar. A Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, havia sido criada no ano anterior. O governo imediatamente a fortaleceu, assim como fez com centros de pesquisa agronômica em universidades federais espalhadas pelo país. “É preciso reconhecer que os militares fizeram o investimento certo”, diz Lopes, “criaram instituições, mandaram uma carrada de gente para as melhores escolas de agronomia do mundo.” O objetivo era adquirir as competências necessárias para modificar em profundidade os padrões da agricultura brasileira. “Sou o resultado disso”, afirma Lopes, que se doutorou nos Estados Unidos. “Investimos em cérebros, em gente treinada, em instituições de pesquisa, em assistência técnica.” No Brasil da época, o autoritarismo e o pensamento de direita se opunham apenas à democracia, não à ciência, convocada pelo regime para solucionar um problema estrutural do país.

Três obstáculos precisavam ser vencidos. O primeiro dizia respeito às terras brasileiras. “Os nossos solos são naturalmente muito pobres”, explica Lopes. “Isso aqui é velho pra caramba. No Brasil Central, eles ainda são remanescentes do tempo em que os continentes estavam juntos. Aqui não acontece movimento tectônico, os solos foram lavados durante milênios. Todos os nutrientes foram carreados para fora e só ficou o alumínio, que é altamente tóxico; não tem fósforo nem potássio” – esses dois elementos que somados ao nitrogênio formam a base da agricultura moderna. A primeira tarefa, então, era “aprender a construir a fertilidade do solo”, o que foi feito.

Em seguida, era necessário adaptar ao clima do Brasil as espécies de maior circulação no comércio mundial de alimentos: milho, soja, arroz, plantas de outras partes do mundo. Por razões várias – econômicas (cadeias produtivas e de insumos já estabelecidas), geopolíticas (influência das grandes multinacionais de sementes) e culturais (a condição de país periférico que traz de fora seus modos de vida) –, não houve esforço semelhante para desenvolver espécies nativas. Uma natureza foi trocada por outra, com sucesso.

Por fim, a pesquisa brasileira teve de buscar técnicas de cultivo que protegessem o solo contra a violência das chuvas tropicais. “A gente começou com um modelo de arar todo ano, o que funciona bem em país de clima temperado, com chuva mais amena e mais bem distribuída”, explica Lopes. Aqui, o modelo resultava em erosão. O problema foi enfrentado desenvolvendo-se novos métodos de manejar o solo.

Ao cabo de cinco décadas, esse esforço transformou solos pobres e ácidos em terras férteis, tropicalizou lavouras exóticas e adaptou sistemas de produção às circunstâncias locais. “O Estado funcionou como locomotiva limpa-trilhos. Ia na frente e fazia o investimento de alto risco e de mais longo prazo, para que depois o setor privado viesse atrás e botasse os vagões nos trilhos. Os empresários encontraram o caminho livre para fazer as coisas”, diz Lopes.

Alcançada a segurança alimentar, criou-se a possibilidade de produzir excedentes e ganhar espaço nos mercados internacionais. Foram quarenta anos de uma agenda estruturada que uniu ciência e políticas públicas eficazes. O país é hoje o maior produtor mundial de soja e lidera o ranking de exportações de açúcar, café e suco de laranja.

Nunca se fez esforço igual para desenvolver uma economia da floresta, lembra Lopes.

 

5. OUTRO CASO DE SUCESSO: O COMBATE AO DESMATAMENTO

Em 2003, no primeiro ano do governo Lula, o desmatamento no Brasil acelerou. Ao longo do segundo ano a situação se agravou ainda mais. O país ultrapassou a fronteira dos 25 mil km2 de florestas destruídas, a segunda pior marca desde o início do acompanhamento, em 1988. Por pouco não se bateu um novo recorde histórico de devastação.

Desde a Eco-92, o Brasil se posicionara como interlocutor de peso nas negociações internacionais sobre o meio ambiente. O tema que dera relevância política ao país agora se tornara um problema naquele início do século XXI. Como um dos defensores da possibilidade de um desenvolvimento sustentável – conceito introduzido na Eco-92 –, o Brasil se via em situação constrangedora. Os números de 2004 eram uma péssima notícia e uma vergonha internacional.

Também em 2004 o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, lançara a primeira versão do Deter, o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real, um instrumento ágil de observação por satélite, capaz de emitir alertas sempre que identifica perturbações em áreas superiores a 25 hectares. É um sistema complementar ao Prodes, Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite, o padrão-ouro de monitoramento do Inpe. Lançado em 1988, o Prodes colige dados granulares ao longo de doze meses – faz reconhecimentos em áreas de até 6 hectares – para então emitir um único boletim com os dados anuais do desmatamento no país. O Deter é menos preciso, mas funciona praticamente em tempo real, daí o seu grande mérito: servir de suporte para a fiscalização – cada desmate gera um alerta que aciona as autoridades ambientais. O simples fato de os delitos não serem identificados meses depois já permite minimizar os danos.

Criada a nova ferramenta, uma questão logo se impôs: que publicidade dar aos números gerados pelos dois sistemas? No governo federal, havia os que encaravam o Deter como instrumento de aplicação da lei, defendendo por isso que os dados ficassem restritos aos órgãos de controle e fiscalização, tais como o Ibama e a Polícia Federal. Outra corrente, liderada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), acreditava que os números deveriam ser públicos. “Era preciso abrir em tempo real, e não só para o governo”, relembra Marina Silva, a titular do ministério na época. A mesma transparência deveria valer para o Prodes. O boletim anual trazia apenas números, sem mostrar exatamente onde o desmatamento ocorrera. A equipe de Marina defendia que a tabela fosse substituída por um mapa, franqueando as imagens de satélite a quem quisesse consultá-las, o que era inédito.

A posição do MMA era uma parada dura de engolir. Com o desmatamento em patamares históricos, permitir que todos tivessem acesso aos dados de sistemas cuja única razão de ser era detectar agressões ao meio ambiente significava expor publicamente as chagas do país. Ou, como diz Marina Silva, significava transmitir para o mundo “um Big Brother do desmatamento”. “Nós vamos ser constrangidos o tempo todo”, alegavam os que resistiam. “Mas nós precisamos ser constrangidos”, contra-argumentava Marina. Venceu a transparência.

A decisão de partilhar com a sociedade as informações dos sistemas Prodes e Deter se enquadrava numa estratégia maior de proteção da Floresta Amazônica, elaborada sob a forma do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), também lançado em 2004. Concebido, entre outros, pelo secretário executivo do MMA, João Paulo Capobianco, o plano partia do princípio de que as taxas de desmatamento não seriam reduzidas com medidas sazonais, paliativas, uma campanha aqui, outra acolá, sem conexão entre si. Para o MMA, somente com a integração efetiva das políticas públicas relacionadas à Amazônia haveria alguma chance de dar conta do problema. Repressão policial (Ministério da Justiça), fomento de atividades produtivas sustentáveis (Ministério do Meio Ambiente), monitoramento remoto do bioma (Ministério da Ciência e Tecnologia), sanção financeira para autores de delitos ambientais (Ministério da Fazenda) – era preciso que essas e outras ações dos diversos braços do governo federal formassem conjunto.

Logo ficou claro que um plano dessa envergadura não poderia ser liderado por um ministério pouco influente como o do Meio Ambiente. Sua coordenação política ficaria no Planalto e seria de responsabilidade da Casa Civil, na época chefiada por José Dirceu, a quem caberia convocar as reuniões e distribuir as tarefas entre os ministérios.

O PPCDAm é um caso raro no Brasil de política pública transversal. Formou-se uma banda de doze ministérios para tocar uma mesma partitura: Casa Civil, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento Agrário, Agricultura, Defesa, Minas e Energia, Justiça, Trabalho, Transporte, Integração Nacional e Desenvolvimento. Fazenda e Relações Exteriores também participavam como estruturas auxiliares de apoio.

A literatura especializada das décadas anteriores já havia esclarecido a lógica do desmatamento. Como mostrado no terceiro artigo desta série, o sistema de fronteiras abertas ensinava ao pioneiro as vantagens de empobrecer o solo e seguir adiante pela mata, deixando para trás terras esgotadas. A solução era levantar barreiras contra o avanço predatório. De 2003 a 2008, o governo federal criou 25 milhões de hectares de unidades de proteção (um estado de São Paulo) e 7 milhões de hectares de reservas extrativistas (três Sergipes); o primeiro governo Lula também demarcou 18,5 milhões de hectares de terras indígenas, área equivalente aos estados do Ceará e de Alagoas somados.

Uma diretriz fundamental do plano, a primeira delas, era reprimir as práticas ilegais. Comando e controle, no vocabulário técnico. Na Polícia Federal foi criada a Delegacia de Repressão aos Crimes contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico. Ao longo de cinco anos, Polícia Federal e Ibama realizariam 21 grandes operações conjuntas contra desmatadores, nas quais seriam presas mais de seiscentas pessoas.

Novo Progresso, no Sudoeste Paraense, era – e ainda é – um desses municípios na fronteira do desmatamento. Osvaldo Romanholi chegou à cidade no ano de 2000, aos 36 anos. Natural de Mato Grosso do Sul, tipo da fronteira, forte, a pele bronzeada da vida ao ar livre, ele imediatamente se encantou com as possibilidades do lugar. A promessa de Novo Progresso era a sua imensidão de terras que qualquer um podia explorar ao gosto do freguês. “Não tinha muita limitação”, lembra-se ele, “o pessoal abria normalmente, não tinha lei nenhuma.”

Mas tinha, claro. O que não tinha era governo. A liberdade daqueles tempos ainda hoje espanta Romanholi: “Ó, você pegava um carro lá em Guarantã do Norte, em Mato Grosso, e vinha até Itaituba, no Pará” – 750 km de estrada – “e não via a presença de um governo. Não estou falando de governo federal, não. Qualquer governo.”

Romanholi virou madeireiro. Prosperou e formou família, convencido de que o futuro seria igual ao presente. Estava errado. “Sabe quando foi que nós sentimos a presença do Estado aqui? Foi em 2004, com o Lula presidente”, conta. “É como se o governo dissesse: Olha, cheguei, estou presente, aqui não é seu, não, é da União, e nós vamos pôr ordem nisso.”

Em 2008 o MMA incluiu Novo Progresso numa lista negra dos municípios que mais desmatavam o bioma amazônico, inclusão que acarretava uma série de constrangimentos e restrições aos moradores. Nos anos seguintes, a cidade seria objeto de algumas das operações mais rumorosas em que se articularam Polícia Federal, Ibama, Ministério Público Federal e Receita. Desmatadores tiveram o gado confiscado e o maquinário destruído. As sentenças pedidas à Justiça pelo MPF contra 23 denunciados pela prática de dezessete tipos de crime somariam 1 077 anos de cadeia (6 foram condenados).

Foi um choque para a cidade e um espanto para Romanholi: “Depois daquilo eu fiquei mais conhecedor do poder do governo, entende? Do que o governo é capaz de fazer numa região que ele ainda não…” Deixa a frase no ar, parecendo ainda incrédulo com o fato de existir Estado. “Nisso mudou a minha forma de pensar, porque eu passei a enxergar que o governo, quando quer, ele tem tempo, tem dinheiro e faz. Não é igual a nós, iniciativa privada ou pessoa física, que na hora tem que ver orçamento… O governo tem mais força, ponto final.”

Romanholi sentiria, ele próprio, essa desproporção de forças. Processado pela Justiça Federal em 2015 por crime ambiental, fez acordo para recuperar 697 hectares de área desmatada ilegalmente. A denúncia era duplamente constrangedora, uma vez que, àquela altura, ele ocupava o cargo de prefeito de Novo Progresso.

Novo Progresso nunca saiu da lista do MMA.[2] Ainda assim, entre 2006 e 2010 as taxas de desmatamento caíram acentuadamente no município, sinal de que as medidas surtiram efeito.

Passados dezessete anos desde que as primeiras ações do PPCDAm alcançaram a cidade, Romanholi está longe de haver se tornado um ambientalista. Chega a dizer que, se fosse politicamente aceitável, no seu tempo de prefeito teria condecorado um dos maiores grileiros da região, um homem condenado a 54 anos de prisão chamado Ezequiel Castanha, responsável por desmatar uma área equivalente a Natal no decorrer de um único ano. “Ele derrubava, formava pasto e vendia. Pelo menos 5% da área aberta em Novo Progresso foi ele que abriu sozinho. Isso ajudou muito o município.”

É assim notável que o ex-prefeito, apesar de manter sua perspectiva de homem de fronteira, reconheça algum mérito nas ações do governo naquela década inicial do século. “Eu sou pelo desenvolvimento, mas é preciso ordenar as coisas. Estava vindo uma onda muito forte, não tinha limite, não tinha respeito, não tinha um ‘Pera um pouquinho: Aqui eu posso? Aqui eu não posso?’ O problema é que a ausência de governo desorganizou muito.”

O segundo pilar do PPCDAm era precisamente o ordenamento fundiário e territorial – o estabelecimento, por assim dizer, de um plano diretor para a Amazônia Legal: o que pode, o que não pode, onde pode e quem pode. Em 2007 o governo criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, uma autarquia cuja responsabilidade era “propor, implantar, gerir, proteger, fiscalizar e monitorar as unidades de conservação instituídas pela União”.

No ano anterior surgira o Serviço Florestal Brasileiro, uma ideia radical no quadro de um governo de esquerda. O papel do serviço era administrar as florestas públicas nacionais e abrir concessões para a exploração de seus recursos pela iniciativa privada. Madeireiros que até então operavam nas franjas da lei e à margem da noção de segurança jurídica – e que viviam do butim obtido com a invasão de terras públicas – tinham agora a oportunidade de apresentar ao Estado um projeto de manejo sustentável das matas nativas. Completando o arcabouço do plano, era esse o seu terceiro pilar: a criação de alternativas econômicas para uma ocupação sustentável do bioma.

Leônidas Souza e seu filho Leônidas Dahás são donos da Ebata Produtos Florestais Ltda., uma madeireira com sede em Icoaraci, distrito industrial de Belém.

Catarinense de Joaçaba, Leônidas Souza chegou ao Pará em 1973, aos 17 anos, e logo entrou para o negócio de madeira. Foi madeireiro à moda da época, o que significa que passou boa parte da vida tirando seus proventos de uma atividade que prosperava na informalidade. “A maior novidade do setor foi o sistema de concessão de florestas públicas. Demorou bastante até virar lei, um erro porque enquanto isso a floresta era derrubada. Mas tudo bem, Marina fez, tomou a iniciativa.” A Ebata explora duas áreas que somam 55 mil hectares dentro da primeira floresta outorgada do Pará, a Floresta Nacional de Saracá-Taquera, no noroeste do estado.

Em 2004, o desmatamento na Amazônia Legal chegou perto de 28 mil km2, um estado de Alagoas. Em 2012, oito anos depois do lançamento do PPCDAm, o número caiu para menos de 5 mil km2. No mesmo intervalo de tempo em que o país reduziu em 80% o desmatamento, houve um aumento de 75% no PIB do campo e de 37% na produção agrícola da Amazônia Legal.

 

6. A FALHA, OU AS TRÊS TAREFAS

Em setembro de 2019, a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), com sede em Santarém, organizou um evento intitulado Construindo alternativas de desenvolvimento rural para comunidades sustentáveis no Brasil. Durante três dias, debatedores de várias partes do mundo se revezaram para discutir modelos econômicos capazes de produzir uma distribuição mais justa da riqueza e uma ocupação menos predatória da floresta. A diversidade de experiências de vida representada no palco dava ao encontro um caráter singular, em forte contraste com a relativa homogeneidade que costuma ser a norma em eventos acadêmicos. Além de pesquisadores, falaram trabalhadores rurais, religiosos, ativistas, representantes do terceiro setor e empreendedores sociais.

Se havia um consenso entre os presentes – tanto palestrantes como plateia –, ele nascia da convicção de que o agronegócio tradicional se revelara uma máquina de injustiça social e devastação ecológica. “A nossa produção está diminuindo porque o grande agronegócio está chegando perto e com ele vêm junto os agrotóxicos. Então as abelhas morrem, e das abelhas depende a nossa agricultura familiar”, relatou Ladilson Amaral, o representante do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém. Guillermo Grisales, o coordenador das Pastorais Sociais da Arquidiocese de Santarém, um padre na casa dos 70 anos, de expressão firme e pele curtida de sol, contou de uma família em Belterra forçada a abandonar seu roçado e a se mudar para a periferia da cidade por causa da pulverização nas fazendas vizinhas, que “empurrava as pragas e os animais pra terra deles”. Falou-se de violência no campo, da força política dos ruralistas, da poluição dos rios, dos bois e da soja que expulsam o pequeno agricultor do seu meio.

A agricultura familiar como alternativa de desenvolvimento ao agronegócio ocupou toda uma manhã de debates. Lideranças dos pequenos produtores explicaram que lutam contra a invisibilidade. Num evento sobre produção agrícola organizado pelo governo, disse uma delas, foi projetado um slide do PIB da agricultura brasileira: “Só contaram o agronegócio e a pecuária, não a produção familiar. A gente é invisível.”

É mesmo espantoso, uma vez que, segundo dados de 2018 do IBGE, 75% dos imóveis rurais no país devem ser incluídos nessa categoria. São pequenos produtores rurais, povos originários e comunidades tradicionais, assentados da reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores, uma massa de trabalhadores responsável por quase um quarto da produção agrícola brasileira e que gera emprego e renda para cerca de 10 milhões de pessoas.

Um doutorando em economia assumiu o microfone e chamou o primeiro slide. Dizia respeito à Feira de Agricultura Familiar da Ufopa, iniciativa descrita como “uma forma de integração econômica”, no caso, entre pequenos agricultores, academia e sociedade local. A sequência de slides trouxe os números do projeto: em 2016 a feira gerou uma receita de 12,9 mil reais; em 2017, ao longo de 42 edições, o resultado saltou para 52 036 reais; por fim, em 2018, 46 edições levaram a um faturamento de 91 359 reais. “Ou seja, em três anos a feira gerou uma receita total de 156 295 reais”, informou o palestrante.

Para um produtor familiar de hortaliças em Belterra, a progressão dos valores deve ser significativa, mas é praticamente impossível imaginar que esse tipo de experiência possa servir de solução sistêmica para o problema em discussão no seminário. Contudo, o entusiasmo dos participantes sugeria que as ideias no auditório não divergiam muito desse tipo de resposta. O que se oferecia como alternativa a portos, silos, rodovias, ferrovias e hidrelétricas, as armas ali apresentadas para enfrentar a força avassaladora do agronegócio – força econômica, geopolítica, cultural –, eram o turismo de base comunitária, a produção de orgânicos, o fortalecimento de programas federais de apoio à agricultura familiar (aquisição de alimentos para a merenda escolar e para a formação de estoques) e a multiplicação de iniciativas como a Feira de Agricultura Familiar da Ufopa, aptas a promover o “comércio justo e solidário”.

Na plateia, o engenheiro agrônomo Adalberto Veríssimo balançava a cabeça. Como tantos outros pesquisadores comprometidos com a Amazônia, ele também está desesperadamente em busca de projetos de desenvolvimento que se contraponham à feroz destruição em marcha. Desanimado, comentou: “Nós estamos passando as tropas em revista e as notícias não são boas. Com essas armas nós não vamos vencer.”

Naquele mesmo dia o empreendedor social Caetano Scannavino recebeu Veríssimo para jantar em sua casa, em Alter do Chão, um distrito de Santarém conhecido pela beleza de suas praias fluviais. Assim como o paraibano Veríssimo, o paulista Scannavino também foi capturado pela força gravitacional da floresta. Toda a sua vida profissional transcorreu ali. Com o irmão, o médico sanitarista Eugênio, fundou em 1987 a ONG Saúde e Alegria, que presta assistência médica e implementa projetos de fortalecimento comunitário na Bacia do Rio Tapajós.

Os dois amigos ambientalistas rememoraram lutas de décadas passadas, algumas com participação direta de um ou de outro. Veríssimo passara a manhã no evento da Ufopa e o que ouvira ainda estava na sua cabeça. “A turma da Ufopa esteve no poder”, disse. “O governo do Lula estava atento à agricultura familiar. Teve dinheiro subsidiado do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], teve sensibilidade para o problema dos sem-terra. A área total de assentamentos na região, a reforma agrária na Amazônia Legal, é de uns 300 mil km2. Isso dá 6% da Amazônia, ou o estado do Rio somado com o estado de São Paulo. O Brasil destinou terras expressivas para os pequenos. Existe aí o elemento da justiça social, mas como projeto de desenvolvimento sustentável é um profundo fracasso.” Alguns dilemas centrais nunca foram equacionados: “Se você tem lotes de 300 hectares para subsistência, a agricultura de subsistência vira agricultura de corte e queima. É agricultura de desmatamento, não tem jeito. E aí começa o conluio com a madeira, com o garimpo, com a pecuária. Sai caro para o meio ambiente e caro para o Estado, mas há quem faça uma defesa ideológica desse sistema.”

Scannavino aquiesceu. A situação vinha se agravando: “O governo elimina a saúde, o saneamento, a educação, corta praticamente todos os serviços sociais prestados pelo Estado”, disse. “Aí o filho do índio fica doente. A quem ele vai pedir dinheiro pro remédio? Ao madeireiro, ao garimpeiro, que imediatamente respondem: ‘Sim, claro!’ E pronto: a partir desse momento o madeireiro e o garimpeiro viram a solução. O governo joga essas populações desassistidas no colo da atividade ilegal.”

(O exemplo vale principalmente para o pequeno produtor assentado em regiões com pouca infraestrutura e sem acesso a mercados. Segundo o Prodes, entre 2013 e 2020 grande parte do desmatamento ocorreu em terras públicas não destinadas[3] – 42% de tudo que se derrubou estavam nelas. Os assentamentos vêm logo em seguida. Eles foram responsáveis por cerca de um quarto de toda a devastação florestal ocorrida na Amazônia Legal no período. Terras indígenas são a categoria fundiária com os menores índices de desmatamento.)

Era tarde e a conversa já ia morrendo quando Veríssimo se virou para Scannavino:

– Caetano, nós tínhamos três tarefas para cumprir nesses últimos vinte anos.

Nós quem?

– Nós, a sociedade civil, as organizações que estão aqui na Amazônia, a academia, os ambientalistas. Nós – disse Veríssimo, indo e vindo com o indicador entre o peito de Scannavino e o dele próprio.

– Que tarefas?

– Entender como o desmatamento acontecia. Isso a gente fez. Criar estratégias para diminuir o desmatamento. Isso a gente também soube fazer. O que nós não fizemos foi apresentar um novo projeto de desenvolvimento para a Amazônia.

A falha descrita por Adalberto Veríssimo remete a um impasse profundo: esse modelo alternativo existe?

 

7. A AMBIÇÃO

Em 31 de julho de 2019, o Globo publicou um editorial com o seguinte título: Exploração de Terras Indígenas é Causa de Atrito com o Congresso. O governo defendia a expansão da fronteira econômica para o interior das reservas indígenas. Agricultura, pecuária, mineração e garimpo passariam a ser atividades lícitas nessas terras que hoje estão entre as menos desmatadas do bioma. Manifestando-se em favor da causa, Jair Bolsonaro declarou: “O Brasil vive de commodities. O que nós temos aqui além de commodities?”

É uma fala instrutiva na medida em que exprime uma visão de país. O papel que nos caberia no xadrez da geopolítica global seria o de fornecedor de produtos primários para nações mais desenvolvidas do que nós. Termina aí a ambição. Nenhum projeto se anuncia na fala do presidente além da pretensão de criar “pequenas Serras Peladas” em terras indígenas, a sua utopia para a maior floresta tropical do planeta. Como foi eleito pela maioria dos brasileiros, até segunda ordem é também a utopia do país.

A ciência econômica ensina que não existe nenhum problema em apostar num modelo de desenvolvimento baseado em commodities. Países prósperos como a Austrália (mineração) e a Noruega (petróleo e gás) são exemplos disso. A exploração de recursos naturais por indústrias extrativistas também desempenha um papel importante na economia da Finlândia (indústria madeireira) e na do Canadá (mineração). A questão não é de onde provêm as riquezas, mas para onde elas vão. Nos países mencionados, elas foram canalizadas para a construção de bem-estar social e para a criação de alternativas de futuro.

Essa segunda diretriz é essencial. A indústria madeireira da Finlândia de ontem teria dificuldade em reconhecer o que o setor é capaz de fazer hoje. O catálogo de itens comercializados não se limita a papel e derivados de madeira. Foram desenvolvidos segmentos de bio-óleos, bioenergia e novos materiais feitos à base de celulose. Um setor puramente extrativista passou a ocupar o centro de uma bioeconomia pujante ancorada em conhecimento e engenho humano. O exemplo vale para os outros países listados aqui. Em todos eles, investiram-se recursos maciços em educação, ciência e tecnologia. Dá trabalho, leva tempo e requer imaginação.

Agregar valor, transformar em bem singular um bem disponível em outras partes do mundo, ampliar as possibilidades de um setor, torná-lo mais complexo – em maior ou menor grau, tudo isso aconteceu nos países que contaram com seus recursos naturais para se tornar ricos. É difícil imaginar que dirigentes de nações bem-sucedidas recuassem quarenta anos no tempo para pinçar no passado a solução dos problemas nacionais contemporâneos, como fez Bolsonaro com suas “pequenas Serras Peladas”. Ainda mais quando essa solução representa a selvageria de um modo de exploração econômica que gerou quadros aterradores de miséria humana e devastação ambiental.

Sonhos regressivos como esse indicam que o poder está apaziguado com aquilo em que a Amazônia vem se transformando. Que acha bom e julga correto o caminho escolhido. Parece conformado, quando não satisfeito, com o fato de que sessenta anos desse modelo de desenvolvimento empobreceram o bioma em comparação ao restante do país. A cada década a Amazônia fica mais para trás. E a cada década há menos Amazônia.

Não é apenas um atraso em relação aos países que souberam reinventar sua economia. É um retrocesso em relação a nós mesmos. Como evidenciam os resultados da agricultura tropical e do combate ao desmatamento, tanto na ditadura como no regime democrático, tanto em governos de direita como de esquerda, o país se provou competente para identificar e resolver problemas relativos à condição de maior nação dos trópicos úmidos.

Quatro meses depois do título sobre a exploração econômica em terras indígenas, o Globo publicou outra novidade sobre os projetos brasileiros para a Amazônia: “Bolsonaro confirma interesse em liberar exportação in natura de madeira nativa da Amazônia.” A proibição de exportar madeira em tora é consenso há mais de quarenta anos. Trocando em miúdos, aceitá-la significa dizer que o modelo praticado em 1500 ainda é bom. Até José Sarney, não propriamente um visionário, chegou a perceber, quando presidente, que a prática não faz nenhum sentido em economias minimamente desenvolvidas. Hoje esse tipo de comércio só acontece em cantos isolados do mundo (entre a Sibéria e a China, por exemplo, outro alerta sobre a nossa futura concorrência). De novo, a proposta exprime uma visão de país. No caso, a de que não temos competência nem para serrar.

 

8. VELHOS SONHOS

A Amazônia nunca teve a sorte de ser bem imaginada pelos forasteiros que vieram dominá-la. Ela é vítima de um fracasso de ideias, o que não se confunde com falta de ousadia. Ao contrário, muitas iniciativas levadas a cabo no bioma tiveram a marca da ambição – por vezes, ambição desmedida. O erro esteve sempre em não compreender a natureza específica do lugar, a complexidade do sistema. Por isso, além de violentas, essas iniciativas foram medíocres do ponto de vista epistemológico. Continuam a ser.

Pode-se esquematizar a exploração da floresta em duas fases: Amazônia 1.0 e Amazônia 2.0. A primeira diz respeito ao ciclo extrativista; a segunda, ao avanço da lavoura e da pecuária. A primeira extrai recursos da floresta; a segunda os extrai daquilo que deixou de ser floresta.

O ciclo da borracha representa o apogeu da Amazônia 1.0. O Brasil se associava perifericamente à Revolução Industrial, fornecendo a matéria-prima que a tecnologia europeia e norte-americana transformaria nos pneus, correias, mangueiras e elásticos necessários aos processos fabris que descolariam de vez o mundo rico do mundo pobre.

As condições de trabalho nos seringais eram geralmente brutais. Empregados viviam sob o jugo do aviamento, termo que na Amazônia designa o sistema pelo qual o comerciante, ou aviador, adianta ao seringueiro provisões e ferramentas de trabalho, esperando que a dívida seja saldada com o látex. Inicia-se entre credor e devedor uma corrida interminável em que o segundo estará sempre atrás. No dizer do escritor Milton Hatoum, evocando o testemunho de Euclides da Cunha sobre a vida nos seringais, ali “os homens trabalham para virar escravos”.

Em 1910 o Ministério das Relações Exteriores britânico enviou Roger Casement, representante consular da Coroa no Rio de Janeiro, para a Amazônia peruana, com a missão de avaliar as condições de trabalho abusivas numa empresa borracheira registrada no Reino Unido. Casement testemunhou atos de estupro, tortura, mutilação e assassinato, além de constatar a escravização sistemática de indígenas. Descreveu o que viu como “crimes contra a humanidade”, um dos primeiros usos da expressão, incorporada ao direito internacional alguns anos antes. O relatório que escreveu transcende a natureza incolor dos documentos oficiais. Atravessado pela indignação moral de um humanista, o texto é considerado uma peça notável de jornalismo investigativo.

A fusão de miséria e riqueza nas fazendas de látex transformou a cara de Belém e de Manaus. Entre 1890 e 1920, as duas cidades passaram a gozar de benfeitorias públicas que outras capitais ao sul levariam anos para conhecer, como bondes elétricos e bulevares inspirados nas experiências de redesenho urbano em curso na Europa. Aterraram-se pântanos e construíram-se teatros e cinemas para uma burguesia que agora habitava palacetes art nouveau erguidos em bairros elegantes, dotados de luz elétrica, água encanada e rede de esgoto.

Foi um ciclo de desenvolvimento cruel, concentrador e paradoxal. Produziu miséria humana e cultura. Andando pelo centro de Belém, o fotógrafo Luiz Braga aponta o Cinema Olympia, a sala de cinema mais antiga em funcionamento no Brasil, inaugurada em 1912. Ele comenta: “O pessoal da borracha deixou a música, que veio com a ópera” – Carlos Gomes morreu em Belém, onde dirigia o Conservatório de Música do Pará. “Deixou a cultura visual, que veio com a cenografia, deixou os fotógrafos e o urbanismo. Uma família aqui tinha em casa um Ticiano, que hoje está no Metropolitan de Nova York.”

Esse contraste entre violência e civilização pode ser encontrado em outros momentos da história econômica brasileira, mas não em todos. Por exemplo: afora as florestas destruídas e os pastos abandonados, ainda não está claro qual será o legado dos atuais senhores do bioma. Não é de teatros, cinemas ou ações de embelezamento urbano que se está falando aqui (embora se possa lamentar que nem isso eles tenham construído). A dúvida diz respeito aos frutos que as gerações futuras colherão do trabalho de seus antepassados. Durante o apogeu do ciclo da borracha, entre 1879 e 1912, a Amazônia respondia por parte significativa das exportações do Brasil. A região cresceu em relação ao país. Hoje, no momento de glória do agronegócio, ela encolhe, empobrece.

Há um aspecto importante em que os ciclos de ontem e de hoje se assemelham: eles são tecnologicamente ineptos e historicamente míopes. O período de ouro da borracha se encerrou com o surgimento de alternativas mais competitivas ao produto brasileiro, situação para a qual as elites econômicas não se prepararam.

A história é conhecida. Por volta de 1875, um aventureiro inglês com uma longa coleção de fracassos atrás de si conseguiu escamotear sementes de Hevea brasiliensis a bordo do cargueiro SS Amazonas, que partia de Santarém com destino a Liverpool. Foi sua primeira tacada de sucesso e, quem sabe, o maior ato de biopirataria da história. Dali a pouco, a árvore da seringa brasileira seria plantada em fileiras por colonos ingleses no Sudeste Asiático. Por volta de 1910, mesmo ano da viagem de Roger Casement ao Peru, as fazendas da Malásia e do Ceilão já produziam látex com maior eficiência do que os seringais brasileiros. Era o fim dos teatros e dos palacetes da Belle Époque amazonense, antecipando a fragilidade que caracterizaria os modelos seguintes.

A borracha daria ainda dois suspiros de vida na Amazônia. O primeiro aconteceu na década de 1920, quando o industrial norte-americano Henry Ford comprou 1 milhão de hectares perto de Santarém, área equivalente a meio Sergipe, com a intenção de transformar a propriedade no polo fornecedor de borracha para os pneus de seus automóveis. Prova de que o Brasil já havia perdido o passo nessa história, as sementes usadas na empreitada não eram brasileiras, mas vinham de fazendas da Goodyear em Sumatra, onde haviam sido submetidas a processos de melhoramento genético. O país agora pagava por recursos naturais que haviam sido seus. E por uma razão; não eram exatamente os mesmos recursos, mas recursos transformados por avanços tecnológicos que não dominávamos.

Desenrolou-se a seguir um enredo que se tornaria tediosamente familiar na região: a consumação de um fracasso provocado pela ignorância. Os engenheiros da Ford desconheciam o ecossistema que pretendiam dominar. Milhões de árvores foram plantadas sem espaçamento adequado e em imensos bosques homogêneos, o que facilitou a vida das pragas. As plantações foram dizimadas.

O segundo suspiro exigiu um cataclismo histórico da dimensão da Segunda Guerra Mundial. Com o Sudeste Asiático dominado pelo Eixo, os Estados Unidos recorreram ao Brasil para obter a borracha necessária ao esforço de guerra. As áreas abertas por Ford voltaram a ser ativadas e o governo alistou compulsoriamente trabalhadores nordestinos na empreitada. Estima-se que entre 30 mil e 45 mil seringueiros tenham morrido na selva, vítimas de doença, maus-tratos e abandono. (A Força Expedicionária Brasileira sofreu 468 baixas nos campos de batalha da Itália.)

O término do conflito encerrou definitivamente o ciclo histórico da borracha na Amazônia. Inovações tecnológicas substituíram a matéria natural por borracha sintética derivada de petróleo. Um setor da economia que já sobrevivia por aparelhos foi jogado na obsolescência.

 

O experimento de Henry Ford deixou marcas. Foi ali que se promoveu a primeira grande queimada da Amazônia, uma das contribuições do norte-americano para o estabelecimento de um modus operandi de ocupação do bioma que nas décadas seguintes se tornaria regra geral. Tratava-se basicamente de substituir a selva pela monocultura e de não trabalhar mais com a floresta, mas contra ela. Num depoimento para o documentário Muito Além de Fordlândia, de Marcos Colón, o jornalista e escritor norte-americano Joe Jackson, autor de uma biografia do homem que contrabandeou as sementes de Hevea brasiliensis para a Inglaterra, afirma que o mais importante legado da iniciativa malograda de Ford foi a noção de que era possível mecanizar a floresta. E, com isso, transformá-la em fábrica.

O Projeto Jari é a apoteose desse sonho. Em 1967, o empresário norte-americano Daniel K. Ludwig conseguiu extrair do governo militar uma série de concessões legais, fiscais, financeiras e trabalhistas como condição para implementar na Amazônia a maior companhia florestal do planeta. Ao menos na papelada, o enclave esparramado entre o Pará e o Amapá era a mais vasta propriedade em extensão contínua do mundo. Equivalia a uma Bélgica.

Ludwig foi um dos primeiros bilionários da história, um self-made man que fizera fortuna como armador ao inventar uma nova classe de cargueiros, a dos superpetroleiros. Ao longo da segunda metade do século XX, expandira seus negócios para todos os continentes (com exceção da Antártica), chegando a controlar 200 companhias em 50 países. Apontado pela imprensa como um dos homens mais ricos do mundo, se não o mais rico, em 1967 não tinha mais nada a provar. E, no entanto, no ano em que se tornou um septuagenário, decidiu apostar seu legado na Amazônia. Intuiu, com presciência, que dali a duas décadas a economia mundial enfrentaria uma escassez de madeira e celulose – e ele estaria preparado para supri-la. Junto aos bosques plantados onde antes existira a selva, planejou cultivar também imensas lavouras de arroz que, segundo relatos da imprensa brasileira, atenderiam a 30% da demanda mundial. Dando certo, o Jari ofuscaria tudo o que ele realizara até então.

O norte-americano preferia a Nigéria ao Brasil, mas a guerra civil que estourou no país em 1967 inviabilizou os negócios. O governo brasileiro se mexeu, despachando para Nova York o ministro do Planejamento, Roberto Campos, com a missão de seduzir o empresário. Foram tantas as benesses oferecidas por Campos que o norte-americano desembarcou no Rio, onde foi recebido por um obsequioso presidente Castelo Branco: “Welcome to Brazil, mr. Ludwig. Hoje em dia temos aqui um país seguro.” O negócio foi fechado.

Foi na Nigéria que os botânicos de Ludwig – nenhum deles brasileiro – encontraram a espécie que julgaram perfeita para a operação florestal. A Gmelina arborea, ou gamelina, é nativa do Sudeste Asiático. Sua grande vantagem é a velocidade com que cresce; em condições ideais, 30 cm por mês. Seis anos depois de plantada já pode virar polpa para o fabrico de celulose; depois de oito anos, pode ser processada pela indústria madeireira.

A tarefa agora era trocar a floresta por bosques plantados. Anos depois, numa rara entrevista à imprensa, Ludwig diria: “Eu sempre quis plantar árvores como num milharal, em fila.” A ideia de uma selva “ofendia sua cabeça de engenheiro”, escreveu Jerry Shields numa biografia do empresário, The invisible billionaire (O bilionário invisível): “Aquilo era desarrumado demais, todas aquelas árvores, os cipós e o mato se alastrando caoticamente pela paisagem. Ele queria asseio – árvores perfiladas como soldados em colunas retas, à espera de serem cortadas e despachadas para o mercado.”

Ludwig estava ciente dos problemas que Ford havia enfrentado quase cinquenta anos antes. Apostava, porém, que 1960 era muito diferente de 1920. A ciência avançara, havia novos defensivos e fertilizantes. Confiava em ter os recursos, o arsenal químico e o engenho humano necessários para enfrentar a resistência da floresta. Passou os dois anos seguintes derrubando a selva. Seus botânicos nem se deram ao trabalho de fazer um levantamento florístico para saber o que estavam destruindo. Acharam mais prático queimar tudo.

Era o início de uma história de equívocos. O peso dos tratores usados no desmatamento compactou o solo, tornando-o impermeável ao esforço de raízes que precisavam se espraiar e vencer a terra para alcançar a luz. E não só. No trabalho de mastigar o chão, as imensas pás do maquinário rasparam a fina camada de húmus, empobrecendo ainda mais um solo já por si muito pobre.

Repetia-se o clássico erro da incompreensão ecológica. Onde Ludwig enxergava apenas desordem, havia um complexo sistema de interdependências em que cada parte dependia da outra – animais de plantas, plantas de animais, fungos de plantas, plantas de fungos, animais de animais, plantas de plantas, fungos de fungos. Tudo vivia de tudo. “Sendo incapaz de perceber isso”, escreve Shields, “[Ludwig] destruiu os próprios elementos que poderiam ter feito do Jari um sucesso.”

A gamelina se revelou um fiasco. Na Amazônia profundamente transformada de Ludwig, as árvores cresciam pouco e mal, magras demais para os imensos tratores comprados para manipulá-las. Quando vingavam, eram atacadas por fungos. Os engenheiros agrônomos sugeriram misturar a espécie plantada com árvores nativas, o que levaria a revista Fortune a registrar anos mais tarde: “Depois de uma década queimando boa parte da floresta original e gastando milhões numa espécie importada, essa manobra ultrapassa toda tentativa de ironia.”

Levaria uma década para o projeto florestal entrar nos trilhos. Ao longo da segunda metade dos anos 1970 a gamelina foi sendo substituída com sucesso pelo eucalipto e também pelo pínus, uma árvore da família dos pinheiros mais adaptada ao solo arenoso do Jari. “Ludwig era um homem de ideias”, diz o holandês Johan Zweede, engenheiro florestal que por nove anos dirigiu toda a operação madeireira e agropecuária do empreendimento. “Viu que nos Estados Unidos a terra para produção de papel era muito cara. No Canadá, a rotação dos bosques é lentíssima. Ele só precisava de sol e chuva, isto é, de bens que você não compra. Já o adubo se compra, o que significa que o solo não precisa ser rico.”

Em 1978 Ludwig deu o passo que o marcaria para sempre. Contratando os estaleiros japoneses dos seus tempos de armador, construiu duas gigantescas instalações fabris, rebocou-as pelo mar e as fez avançar por águas fluviais até o seu destino final, no interior da floresta. A primeira, uma fábrica de celulose; a segunda, uma usina elétrica. No dia 1º de fevereiro daquele ano, as duas estruturas flutuantes, grandes demais para as dimensões do Canal do Panamá – cada uma chegava a quase vinte andares de altura –, deixaram os estaleiros da cidade de Kure, perto de Hiroshima, e começaram a viagem de 25 mil km rumo ao Jari. “As fábricas foram sendo feitas em alto-mar”, diz ainda abismado Aurelio Wackslavowski, atual diretor industrial da Jari Celulose, caminhando por dentro da mesma estrutura que atravessou o Índico, passou ao largo da Cidade do Cabo, cruzou o Atlântico Sul, subiu a costa do Brasil, entrou pela boca do Amazonas, subiu o Rio Jari e, quarenta anos depois, segue produzindo celulose. A revista National Geographic conta que, ao ver uma das fábricas surgir numa dobra do Jari, um menino que pescava gritou: “Tem uma cidade subindo o rio!”

As fábricas deslizaram até a margem do rio, onde flutuaram acima de 2 mil estacas de maçaranduba submersas no leito de uma laguna artificial. Durante três dias, na presença de Ludwig, trabalhadores manejaram essas estruturas flutuantes até ajustá-las no grau máximo de precisão – o alinhamento dos orifícios perfurados no casco pelo estaleiro japonês não podia desviar mais que uns poucos milímetros dos encaixes no fundo da laguna. Quando os engenheiros julgaram que elas estavam em posição, os cascos foram inundados. Lado a lado, como uma dupla de atletas do nado sincronizado, a fábrica de celulose e a usina elétrica, cada qual pesando 32 mil toneladas, começaram a afundar em perfeita linha vertical até encontrar as estacas de maçaranduba, madeira amazônica extraordinariamente densa e resistente à água. Estão ali até hoje.

A fábrica de celulose e a usina elétrica eram apenas a primeira etapa do projeto de industrialização do Jari imaginado por Ludwig. Haveria uma terceira fábrica, essa de papel, também rebocada do Japão. Mas não só. Para beneficiar os imensos depósitos de bauxita encontrados em suas terras, seria construída uma refinaria de alumínio, e isso o punha diante de um grande obstáculo: a operação demandaria muito mais energia do que a produzida pela caldeira japonesa. Ludwig tinha a solução: construir uma hidrelétrica privada no Rio Jari.

Nos tempos de Castelo Branco e Roberto Campos talvez conseguisse a aquiescência do governo. No início da década de 1980, não mais. “A opinião pública começava a contar”, lembra Zweede. O Jari se tornara um exemplo da subserviência brasileira aos interesses dos Estados Unidos; os militares, logo eles, nominalmente tão ciosos da soberania nacional, eram acusados de entregar em regime de porteira fechada um pedaço do país a um barão do imperialismo norte-americano. Hidrelétricas eram questão de segurança nacional. Pertenciam ao Estado, não a entes privados. Não demoraria muito até que A AMAZÔNIA É NOSSA  e FORA LUDWIG começassem a ocupar os muros das capitais brasileiras. No Rio, o nome do empresário recebia vaias sempre que pronunciado durante a peça Jari, o país de Mister Ludwig.

O projeto se desfazia em várias frentes. Maus-tratos contra funcionários terceirizados ganharam o noticiário nacional. No campo econômico, embora a demanda global por celulose de fato tivesse aumentado como Ludwig previra, regiões fora da Amazônia conseguiram oferecer o produto a preços mais competitivos do que os do Jari. No front agropecuário, a produção de arroz decepcionava, e a silvicultura, joia da coroa, sofrera um golpe do qual Ludwig não se recuperaria.

Era um problema de natureza diferente daquele enfrentado por Henry Ford décadas antes. Não fungos e pestes, mas outro tipo de nó produzido pela ocupação desordenada do bioma: a questão fundiária. Ludwig imaginava ter comprado uma propriedade de 32 mil km², uma Bélgica. Era o que dizia a papelada de 1967, afiançada pelo governo militar. Ao mensurar efetivamente as terras compreendidas nos limites do Jari, verificou que era dono de metade disso, 17 mil km². O território era o mesmo, a área é que não correspondia à documentação. A Bélgica tinha virado um Arquipélago de Fiji. Furioso, Ludwig reivindicou o direito de explorar recursos madeireiros num raio equivalente ao consignado no papelório. Como precisava alimentar sua fábrica de madeira nativa enquanto os bosques plantados não crescessem, era essencial dispor dessas florestas.

O governo tergiversou. Em agosto de 1980 Ludwig escreveu uma carta ao general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do presidente João Baptista Figueiredo e homem forte do regime, afirmando que, se o governo não se comprometesse a regularizar as terras do projeto e a assumir os custos sociais impostos ao Jari pelas autoridades trabalhistas, ele desistiria do negócio. Politicamente eram demandas impossíveis de atender, ainda mais depois do evento trágico ocorrido em janeiro de 1981, quando uma balsa com mulheres e filhos de trabalhadores naufragou perto de Monte Dourado, deixando pelo menos 120 corpos no Rio Jari. O governo entendeu a carta como um ultimato e não aceitou os termos do norte-americano. Ludwig jogou a toalha.

“Era o projeto favorito dele”, diz Zweede. É também o único que não vingou. Em 1981, quando desistiu do negócio, Ludwig tinha 84 anos e fracassara pela primeira vez. Zweede o viu antes do fim: “Foi em Nova York. Eu estava na cidade de férias e ele me chamou no escritório dele. Tudo escuro, a luz apagada, ele lá sentado, com mais de 90 anos. Era um homem acabado. O sonho final dele não tinha dado certo.”

O país herdou o prejuízo. O Jari passou para as mãos de um empresário amigo de Ludwig, Augusto Azevedo Antunes, que aceitou o negócio a pedido do governo. Teve condições de compra bastante favoráveis, uma vez que as dívidas contraídas pelo projeto ficariam penduradas no Banco do Brasil e no BNDES.

Foram muitos os erros e desacertos do Projeto Jari durante os anos de Ludwig. Nada muito diferente das chagas usuais impostas ao bioma por forasteiros, sejam eles estrangeiros (alguns) ou brasileiros (inúmeros), ontem e hoje. Por outro lado, havia um tipo novo de ambição. Não apenas a corriqueira, que planeja destruir para pôr coisas medíocres no lugar – essa é uma volúpia que também requer muito trabalho, e nisso o Brasil tem se mostrado trabalhador. A substituição da floresta por uma coisa mais simples era sem dúvida um dos aspectos do Jari. Mas não só. Tratava-se também de imaginar o impensável. As duas fábricas não eram apenas as duas maiores instalações industriais já movidas pelos mares. Instalá-las prontas nas barrancas de um rio amazônico não se resumia a um feito inédito de engenharia. Acima de tudo e à parte o aspecto Fitzcarraldo da empreitada, o fato novo é que Ludwig tomou a direção contrária ao consenso da época, ao dizer que a matéria-prima de países subdesenvolvidos não tinha de ser levada ao mundo rico para ser transformada.

No auge, o Projeto Jari empregava 1,4 mil engenheiros. No momento da instalação das fábricas, mais de quarenta idiomas eram falados na empresa. Compare-se isso com a intenção de reautorizar a exportação de madeira in natura. O encolhimento dos sonhos é humilhante.

E uma ironia final: é o projeto desmesurado de um bilionário norte-americano que ainda hoje mantém as florestas da região relativamente protegidas. Ludwig desmatou bastante, mas numa propriedade daquelas dimensões foi pouco o que se cortou, se comparado ao todo. Da área original de 17 mil km², a empresa que atualmente comanda o Jari tem autorização para abrir 1 280 km², dos quais 430 km² já foram efetivamente replantados com bosques. Cerca de 80% do restante é constituído de floresta nativa. Sendo os desmates ilegais responsabilidade do dono da terra, a empresa controla a grilagem, o corte ilegal de madeira, o fogo e o garimpo, tão comuns fora dos limites da propriedade. Ludwig jamais imaginou que seu maior legado no Jari seriam as florestas que ele não derrubou.

 

9. ONTEM, HOJE, AMANHÃ

A versão 2.0 da Amazônia – a Amazônia dos bois e da soja, dos tratores e dos fertilizantes, da produção de proteína animal e de ração para animais que serão convertidos em proteína – é o modelo que existe hoje. “Nós não temos outro”, admitiu o governador do Pará, Helder Barbalho, durante uma conferência sobre a Amazônia na Universidade Princeton, em Nova Jersey. Nesse modelo, a floresta compete com a produção. Perde sempre.

A capa de uma publicação de 1971 da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, Sudam, é uma representação exemplar desse fato.

Duas imagens idênticas ocupam a área abaixo do título. É a figura da “Amazônia ontem, hoje, amanhã”. Lê-se a ilustração de cima para baixo. No alto, fazendo as vezes de ontem, uma floresta; logo abaixo, no papel de hoje, um trator na mata já desbastada; no pé da página, representando o amanhã, um prédio de vários pavimentos e uma fábrica cujas chaminés expelem orgulhosamente a fumaça da civilização industrial. As árvores se foram – todas elas. Uma linha sinuosa liga as três ilustrações: pode ser o caminho que o trator tomou para construir o futuro, pode ser a figuração simbólica do progresso, que, embora forçado a fazer desvios, avança sempre, até a utopia final de um mundo urbano e sem florestas. A única diferença entre as duas imagens é a cor. A da direita é verde; a da esquerda, marrom. Se levarmos em conta que 25% de tudo o que foi destruído na Amazônia está abandonado, a imagem da esquerda representa melhor o progresso decantado pela Sudam em Revista. É a cor da terra nua.

Em conversa via Zoom em setembro do ano passado, o economista Juliano Assunção faz uma observação importante: “Nenhuma das grandes cadeias produtivas desenvolvidas na região se beneficia do fato de estar na Amazônia.”

Centenas de milhares de pessoas foram atraídas para o bioma com a promessa de riqueza fácil, sem que o Estado brasileiro tivesse um plano para se valer das vantagens comparativas do lugar. Do que a floresta é capaz? Essa pergunta não foi feita em momento algum.

Isolados das outras partes do país, distantes dos mercados, vivendo numa região imensa em que toda infraestrutura é necessariamente dispendiosa e de difícil manutenção, esses brasileiros foram incentivados a tirar a madeira e trocar a selva por pastos e alguma lavoura. Um dia o Estado os alcançaria. No futuro, diziam, a Amazônia alimentaria o mundo. Era esse o seu destino. O pecuarista Mauro Lúcio de Castro Costa, cuja fazenda se situa no município de Tailândia, no Nordeste Paraense, tem um bom comentário a esse respeito: “Dizem que a vocação da Amazônia é a produção agropecuária. Mentira. A vocação da Amazônia é a produção de mato. Eu sei o custo danado que tenho pra impedir que a floresta tome conta de tudo.”

No plano estritamente produtivo, ou seja, sem levar em conta o custo ecológico e a violência contra populações originárias,[4] a aposta agropecuária foi bem-sucedida nas zonas mais secas da Amazônia Legal, que representam 17% do território. Nos 83% restantes, área que na prática encerra todo o bioma amazônico – a floresta propriamente dita –, estudos dos anos 2000 indicam que a melhor opção de uso do solo é o manejo florestal sustentado. Muitas empresas se especializaram nessa área – o Serviço Florestal Brasileiro foi criado com a finalidade de cuidar da atividade –, mas elas nem de longe representam o modelo dominante na região. Faltam recursos, estratégia e, nos últimos anos, repressão às atividades ilegais que sabotam a competitividade do manejo sustentável.

A primeira área de concessão florestal na Amazônia foi estabelecida em Rondônia e adquirida em 2008 pela Amata,[5] empresa sediada em São Paulo. Os primeiros quatro anos transcorreram sem dificuldades. Entre o quarto e o oitavo ano, os madeireiros ilegais foram chegando cada vez mais perto dos limites da concessão. Em abril de 2019, Ibama e ICMBio deflagraram várias operações de repressão contra esses grupos. As ações aconteceram tanto no interior da área da Amata quanto fora dela, e nos dois casos houve prisões e destruição de maquinário usado na atividade ilegal, procedimento previsto nas leis ambientais.

Uma dessas ações repressivas, executada bem próximo ao perímetro da área de concessão, provocou a reação imediata de Jair Bolsonaro e de seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Por exigência do presidente, foi aberta uma ação administrativa contra os fiscais do Ibama. Salles determinou que, dali por diante, estava proibida a destruição de equipamento confiscado. A situação não seria diferente se uma plataforma pirata de petróleo começasse a sugar óleo na fronteira de um bloco do pré-sal concedido à Petrobras, à Shell ou à BP e se o fato suscitasse no presidente da República e no ministro das Minas e Energia não uma declaração enérgica de apoio aos concessionários – que, afinal, pagam ao governo pelo direito de estar ali –, mas um destampatório contra quem reprimiu o delito.

Em 2020 a empresa devolveu a concessão. A ação de criminosos tirou de operação a primeira concessionária de um sistema criado para demonstrar a viabilidade do manejo em florestas nacionais.

O que nos traz de volta à observação do economista Juliano Assunção sobre como as grandes cadeias produtivas na Amazônia não se beneficiam de estar onde estão. Pelo contrário, até. Hoje, suas coordenadas geográficas se tornaram um ônus.

Em Capitão Poço, a 200 km de Belém, o fazendeiro Luiz Gonzaga diz: “Eu acho que o prejuízo nem começou. Você tá na Amazônia…” Ele é produtor de teca, árvore transplantada do Sudeste Asiático, de grande aceitação nos mercados internacionais. Tentou vender para uma empresa norte-americana, mas o fato de estar no Pará foi um obstáculo insuperável. “Eles não acreditam nos nossos documentos.”

Num distrito industrial de Belém, Leônidas Dahás e o pai, Leônidas Souza, os donos da madeireira Ebata, também se viam obrigados a prestar contas. Numa manhã daquele mês de setembro, baixou um holandês na porta da empresa. Havia chegado naquele mesmo dia e batera lá sem aviso. Era um cliente. “Não veio comprar, queria vistoriar o nosso pátio e compreender o que está se passando na Amazônia”, disse Leônidas filho. O homem estava com dificuldade para revender a madeira importada da Ebata: “Nunca tinha acontecido uma visita dessas. Nós usamos agentes para comercializar a madeira, agora foi o cliente direto que veio”, disse Leônidas pai. Leônidas filho acrescentou: “O problema é que o cliente olha a madeira e só vê o desmatamento. Mas ninguém olha pro plástico e pensa no petróleo.”

Até pensa, mas ele não deixa de ter certa razão. Quando um governo encampa uma política antiambiental, é muito difícil que a floresta em chamas não se materialize na cabeça de um norte-americano ou de um europeu prestes a decidir se forra ou não o piso da sala com assoalho de madeira amazônica.

Piorou a situação? “Só para os legais”, lamentam os dois Leônidas em uníssono. “Para os ilegais, nada”, confirma o filho. “Você liga pra quem se quiser falar com o ilegal? Ele não tem telefone. Somos nós que aparecemos.”

Em Novo Progresso, um pecuarista que não quis dar o nome por receio de represália dos pares – na época da conversa, também setembro de 2019, o Sindicato dos Produtores Rurais do município era dirigido por Agamenon Menezes, acusado de liderar o Dia do Fogo[6]– fez um desabafo: “A vida está ficando cada vez mais difícil porque a região está adquirindo a fama de só ter bandido, o que complica cada vez mais o escoamento da produção.”

Não é uma opinião solitária. Osvaldo Romanholi, o ex-prefeito de Novo Progresso, diz coisa parecida: “Sem investimento isso aqui não avança e não tem investimento por causa da desordem. A mineradora chega e pergunta: ‘O que tem aqui?’ ‘Ouro.’ ‘E como é?’ ‘Garimpo.’ ‘Opa, então não quero.’”

Entre 2011 e 2017, quando dirigiu um programa de regularização ambiental na Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Pará, o advogado Justiniano de Queiroz Netto tentou convencer os grandes fundos internacionais a investir na região. “Ninguém se comoveu. Fiz rodadas de prospecção em São Paulo, fui no Carlyle, em vários outros. Empresas que já estão aqui querem desinvestir. Pôr dinheiro na Amazônia é um problema.”

Vários grupos empresariais consolidados desistiram da região. Só no ramo madeireiro, a dinamarquesa Nordisk Timber desfez os investimentos na Amazônia e foi embora por não conseguir assegurar a origem da madeira comprada. “Venderam tudo”, diz Netto, referindo-se aos donos estrangeiros. Uma subsidiária da multinacional francesa Saint-Gobain também partiu. E a Eidai, do grupo Mitsubishi, que chegou a ser a maior madeireira da Amazônia, jogou a toalha depois de ser achacada. A empresa reagiu gravando o achacador, um superintendente do Ibama que foi preso em maio de 2000. Feita a denúncia, a Eidai arrumou as malas e se despediu da Amazônia.

 

Em janeiro de 2021, o banco norte-americano J.P. Morgan publicou um relatório de 63 páginas intitulado Grow, Forest, Grow (Cresça, floresta, cresça), em que analisa os riscos financeiros a que estão expostos os grandes frigoríficos brasileiros que operam na Amazônia. O texto começa com a afirmação de que a destruição da floresta comporta dimensões geopolíticas e econômicas, pois põe em dúvida tratados comerciais e pode acarretar sanções aos produtos brasileiros. O quarto parágrafo aponta o principal responsável: “A pecuária é um grande vetor do desmatamento no Brasil […] 88% do desmatamento no bioma amazônico entre 2010 e 2015 ocorreu em áreas potencialmente destinadas à atividade.” O banco afirma em seguida que nenhum dos principais frigoríficos em atividade na área – JBS, Marfrig, Minerva e BRF – “encontrou ainda uma solução para rastrear toda a cadeia de fornecedores indiretos”.

O pano de fundo do relatório está bem estabelecido. Não basta certificar-se de que o boi que acaba de chegar ao frigorífico foi embarcado numa fazenda em dia com a legislação ambiental. É preciso conhecer toda a história do animal, de modo a evitar que o último pouso não seja apenas uma escala astuciosa para apagar as marcas do desmatamento. É uma prática comum. Vamos chamá-la de lavagem bovina: nascido e engordado em área irregular, o animal só é transferido para uma propriedade acima de qualquer suspeita meses antes do abate. O problema se resolveria facilmente com o rastreamento eletrônico de 100% do rebanho. Uruguai, Austrália, Namíbia, Botsuana e todos os países da União Europeia já adotam a tecnologia. Os ruralistas brasileiros sempre se opuseram a qualquer legislação nesse sentido.

A ratificação do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul vem enfrentando resistências em vários parlamentos nacionais. Um estudo de 2020 conduzido pelo Imazon, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, em parceria com universidades norte-americanas, atestou que, se validado sem salvaguardas ambientais mais consistentes, o acordo gerará um desmatamento adicional de até 260 mil hectares nos países do bloco sul-americano (os territórios somados das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo), estando 55% dessa área nos biomas Cerrado e Amazônia. Assim que a informação veio à luz, uma eurodeputada alemã tuitou: “Em qualquer cenário atual, o acordo levará a um possível desmatamento de até 173 mil hectares só no Brasil = mais que toda a área de desmatamento anual da UE.”

Ruralistas e governo rechaçam essas resistências. Dizem que não passam de cortina de fumaça para defender com tinturas ambientais as práticas protecionistas da agricultura europeia. Seria ingênuo negar que existe protecionismo. Igualmente míope é refutar a existência de razões climáticas, ecológicas, morais e civilizatórias para nos preocuparmos com a floresta. De todas as burrices em curso, talvez a maior seja não perceber que, para os concorrentes do Brasil, a razão econômica – a defesa de interesses protecionistas – converge perfeitamente com a razão ambiental. Quanto mais o Brasil desmata, mais os produtores europeus se sentem seguros. “No mercado só tem gente sabida”, diz Mauro Lúcio de Castro Costa, o pecuarista de Tailândia. “Qualquer ferramenta que puderem usar para desvalorizar o meu produto, eles usarão.” O Brasil tem sido pródigo em fabricar essas ferramentas. Marcello Brito, presidente do Conselho Diretor da Associação Brasileira do Agronegócio, resume o problema: “As três palavras que mais ocorrem nas pesquisas sobre o agronegócio brasileiro são desmatamento, indígena e agrotóxico.”

Essa combinação de ilegalidade, degradação ambiental e fuga de grandes empresas é letal. “O risco da Amazônia está se tornando grande demais”, lamenta Adalberto Veríssimo. “O perigo é que não vamos ter bons investidores, os caras grandes, que têm grandes estruturas e precisam prestar contas. A empresa que vem para cá tem que se haver com o drama social, a criminalidade e o problema ambiental num território sem Estado. Isso afugenta. O perigo não é a [multinacional de alimentos] Bunge ou a Eidai, mas o grileiro e o garimpeiro amparados pelo crime.” O perigo é uma Amazônia entregue aos bandidos.

 

10. CHEGA DE LENDAS

Cerca de 22 milhões de brasileiros vivem no bioma amazônico. A Índia tem 1,3 bilhão de habitantes. A Amazônia brasileira é maior do que a Índia (para chegar lá, é preciso anexar mais uma Espanha e uma Alemanha). Isso significa que o bioma não tem um problema demográfico. O problema é de ordem econômica. O país não encontrou soluções para gerar renda e criar condições de vida dignas para quem está na região. As pessoas ali estão desalentadas, são pobres – cada vez mais pobres, se comparadas a seus compatriotas do restante do país. O modelo de desenvolvimento para o bioma fracassou. É o único que existe.

As grandes mensagens que nos chegam hoje da Amazônia falam de uma região de baixíssimo vigor econômico. A situação é especialmente grave para os jovens. Quase 60% das pessoas entre 18 e 24 anos não têm ocupação. Na faixa dos 24 aos 29 anos, o índice é de 40%, dez pontos percentuais abaixo do resto do Brasil. Por trás desses números existe uma realidade preocupante. É o desalento.

Para quem tem entre 25 e 29 anos e vive na Amazônia Legal, a taxa de participação no mercado laboral – pessoas em idade de trabalhar que estão empregadas ou à procura de emprego – é onze pontos inferior ao índice nacional. Significa que é na Amazônia que estão os jovens brasileiros menos propensos a trabalhar ou a buscar emprego. É gente que desistiu. De fato, como mostra um estudo publicado em novembro de 2020 pelos economistas Flávia Alfenas, Francisco Cavalcanti e Gustavo Gonzaga, fonte dos dados mencionados aqui, sob efeito da pandemia “a proporção de desalentados nessa faixa etária [de 25 a 29] subiu e atingiu 8% na Amazônia Legal, mais que o dobro da taxa observada no resto do Brasil (3%). Trata-se de um efeito perverso da falta de dinamismo do mercado de trabalho”. A Amazônia 2.0 é escassa em oportunidades.

A população no bioma é majoritariamente urbana: chega a 79% segundo os últimos levantamentos. Se 4 de cada 5 moradores na região vivem em cidades, quantos de fato dependem da mata para a sobrevivência? Como visto no terceiro artigo desta série, a distribuição salarial da população ocupada tem pouca conexão com a floresta. Quase 50% da renda das pessoas vem do Estado, via empregos públicos, aposentadorias e pensões ou programas de transferência e auxílios governamentais.

Diante desse quadro, o que esperar de uma Amazônia do futuro? Quem estará lá gerando emprego e renda? Talvez seja útil separar o bioma em cidade e não cidade. Em relação à Amazônia não urbana, o retrato é relativamente claro.

Depois de sessenta anos de colonização feita na pata do boi, parece incontornável que a realidade inclua a pecuária e a lavoura. Mas não essa pecuária improdutiva e predatória, extensiva no passado e no presente – aliás, cada vez mais extensiva no presente, como demonstrou recentemente o grupo do economista Juliano Assunção. Seria essencial que ela se modernizasse, o que não acontecerá enquanto a fronteira permanecer aberta, estimulando o uso improdutivo do solo.

A exploração de madeira nativa está em declínio. Seu auge foram os anos 1980 e 1990. Hoje, representa metade do que já foi. Novos processos industriais de beneficiamento e mudanças tecnológicas na construção civil vêm alijando a madeira nativa em favor da madeira plantada, mais homogênea, e de materiais como cerâmica, alumínio e PVC. A atividade madeireira só terá futuro se seguir os passos de empresas como a Ebata, organizadas para atender ao mercado externo com produtos certificados do manejo sustentável. E ainda que faça tudo direito, não será capaz de sobreviver se tiver de competir com a ilegalidade. Hoje compete, e perde.

Estando a floresta assentada numa das grandes províncias minerárias do planeta, a mineração industrial – não confundir com garimpo – é outra cadeia produtiva que permanecerá no bioma. Não são poucos os episódios de danos ambientais provocados pela atividade ao longo das décadas. Contudo, se comparados aos impactos da pecuária, da agricultura e da exploração madeireira, os efeitos da mineração não fazem dela uma adversária da floresta (em relação aos rios, a história é mais complicada). De toda a área já aberta no bioma, menos de 1% se deve diretamente à mineração.

O problema da atividade é outro. Diz respeito à distribuição desigual da riqueza. A legislação tributária brasileira é extraordinariamente favorável a empresas exportadoras. O minério vendido sem nenhum beneficiamento, submetido a nenhum processo industrial passível de tributação, só paga impostos federais. Muito pouco retorna aos estados e municípios. “Nada!”, esbraveja Simão Jatene, ex-governador do Pará. Com isso, parte substancial da receita gerada pela mineração não beneficia o lugar onde estão as minas. Adnan Demachki, ex-prefeito de Paragominas, município com grandes reservas de bauxita, explica: “Em 2017, o Pará gerou 10,5 bilhões de dólares com exportação de minérios. Toda essa produção representou apenas 3% dos impostos arrecadados. Não é possível.” O resultado são empresas ricas cercadas de pobreza.

No campo florestal não madeireiro, ainda há muito a ser feito. Na Amazônia Legal, considerando a população empregada formalmente no setor agropecuário, 60,7% trabalham na pecuária, 34% na agricultura e apenas 5,4 % na produção florestal. Qualquer modelo que se pretenda uma alternativa ao que existe hoje terá de ampliar a participação desse último setor na economia da região.

Recentemente, o especialista em desenvolvimento Salo Coslovsky, professor da Escola de Serviço Público da Universidade de Nova York (NYU), fez um levantamento dos produtos que a Amazônia exporta. Os achados são notáveis. Os homens que ocuparam a maior floresta tropical do planeta enxergaram pouquíssimas coisas nela. O baixo dinamismo econômico da região se concentra em um número irrisório de produtos: soja, milho, algodão, carne, minérios. Entretanto, a lista de itens vendidos lá fora é muito mais extensa. Em 2018, a pauta de exportações da região incluiu 662 produtos, boa parte deles oriundos da floresta.

Não são necessariamente produtos de nicho. A pimenta, por exemplo, movimenta anualmente mais de 1 bilhão de dólares. Contudo, é medíocre a participação do Brasil nesse mercado. Coslovsky observa que os principais concorrentes do país não são potências tecnológicas ou industriais. “Dependendo do produto, a Amazônia perde para o Vietnã (pimenta), a Bolívia e o Peru (castanha), e para Uganda, Tanzânia e Guiana (grude de peixe)”, [7] escreveu. O fato de países mais pobres dominarem esses mercados multibilionários evidencia como o Brasil até agora não soube desenvolver uma economia da floresta. A demanda global pelos produtos não madeireiros que a Amazônia já exporta chega a 150 bilhões de dólares por ano. O bioma participa com menos de 1% disso. Na avaliação de Coslovsky: “Empresas de alimento da Amazônia não exportam mais porque não têm escala, contatos, conhecimento, constância e controle de qualidade.”

Uma das razões para isso é que produtos florestais não madeireiros não são objeto de políticas consistentes de desenvolvimento econômico. O potencial é enorme; o apoio do Estado, quase nenhum. No máximo, remove-se um obstáculo aqui, como fez a tributação via sistema Simples, ou se estende um recurso acolá a título de assistência social, a exemplo do auxílio aos catadores de castanha. Não se pensa o setor de forma sistêmica. Cada empresa precisa resolver sozinha o seu problema. Ações coletivas para prover bens e serviços, criar normas de qualidade, melhorar espécies e abrir mercados são inexistentes.

A pimenta, o açaí, o cupuaçu, o cacau, os óleos vegetais, as essências, a castanha, as frutas amazônicas, o mel, os peixes ornamentais e os que servem à alimentação – bens que a Amazônia exporta (na maioria dos casos, pouco e mal) – não darão conta, é claro, dos problemas econômicos do bioma. Igualmente claro é que essas cadeias produtivas podem ter uma participação muito maior na economia da região, o que, além de representar mais renda e emprego, alinha a atividade produtiva com a vocação natural do bioma, que é ser floresta.

O problema da Amazônia não será resolvido sem a melhoria das suas cidades. É nelas que moram 4 de cada 5 habitantes da região. Em que pese um mercado de trabalho bem menos estruturado do que no resto do Brasil – na Amazônia Legal, 56% das pessoas ocupadas estão na informalidade, contra um índice nacional de 37% –, a distribuição dos empregos acompanha o que se espera de um país essencialmente urbano. Cerca de metade das pessoas está no setor de serviços e outras 20% trabalham no comércio.

Melhorar a vida delas não passa por aumentar o desmatamento, como sugerem os que pregam o afrouxamento das leis ambientais e uma conversão ainda maior da floresta em área produtiva. As pessoas precisam de cidades melhores, de escolas e universidades melhores, de melhor infraestrutura de telecomunicação. “Na Amazônia, muito em razão de decisões ruins que nós tomamos, a população é muito dispersa”, diz Juliano Assunção. “O remédio contra a distância é a progressiva digitalização. A economia se torna mais complexa e os serviços vão ganhando importância. A criação de serviços pode resolver o problema da distância, ou seja, a questão é explorar a vantagem comparativa de estar longe. A Índia fez isso com os call centers, e daí partiu para soluções digitais em escala. Já existem grupos tecnológicos organizados em torno da Zona Franca de Manaus. Pode ser o germe de uma mudança.”

Um exemplo é a Terras App Solutions, fundada em 2014 por dois engenheiros da computação, um geólogo e um agrônomo. Sediada em Belém, a empresa se apresenta como uma startup de tecnologia geoespacial com aspectos de fintech. Em síntese, é uma plataforma que provê serviços de monitoramento e rastreabilidade da produção agropecuária para bancos.

A consciência cada vez maior do drama climático deixou as instituições financeiras mais sensíveis ao risco de ver sua reputação associada a clientes que desmatam. O crédito concedido a esse ou àquele produtor rural irá financiar a derrubada da floresta? Usando inteligência espacial, a Terras ajuda a responder. Faz isso monitorando a propriedade com tecnologia de sensoriamento remoto, ou seja, analisando imagens de satélite. É capaz de aferir se o tomador de empréstimo realmente plantou, se ocupou apenas área permitida, se invadiu reserva legal ou se a pecuária que pratica é mesmo intensiva como consta do contrato.

A rigor, a empresa tem condições de oferecer a rastreabilidade completa, do nascimento do boi ao abate, da soja colhida à soja embarcada. É preciso apenas combinar com os russos, que, no caso, são os produtores. “Alguns entes na cadeia não querem compartilhar dados”, explica o geólogo Carlos Souza Jr., um dos fundadores da empresa. Quem se nega a fornecer essas informações corre o risco de não receber crédito, conforme determinação do Banco Central que nem todo o sistema financeiro segue à risca. Ainda assim, nem tudo pode ser escondido. Desmate e invasão de áreas de proteção permanente são coisas que um bom analista é capaz de identificar do alto, e Souza Jr. é um dos melhores no mercado. Em parceria com o Google, é ele o principal responsável pela implantação de uma das mais importantes plataformas de vigilância ambiental do país, o Serviço de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon, instituição que também ajudou a fundar e à qual continua ligado como pesquisador.

A Terras já fechou 30 mil contratos com o Banco da Amazônia, cada um deles correspondendo a um empréstimo cuja conformidade legal, social, ambiental e de produção será validada ou não. Tem histórico de infrações trabalhistas? Arregimentou mão de obra infantil ou em condições similares à escravidão? “Monitorar a parte ambiental é mais simples, as fotos de satélite dão conta, desmatamento a gente vê. A parte social é mais difícil”, diz Souza Jr. No futuro a plataforma também avaliará o risco climático, tema a que ele vem se dedicando nos últimos anos. Onde haverá seca? Onde haverá fogo? Em que partes do território as condições climáticas indicam provável queda de produtividade?

Todo esse trabalho é feito em meio andar de um prédio comercial de Belém. A empresa poderia estar em qualquer parte do país, mas se beneficia do fato de ser sediada na Amazônia. Viver no coração do problema concentra a atenção. Souza Jr. e seus sócios trabalham com desmatamento, pensam desmatamento, convivem com desmatamento. É uma realidade que pode ser alcançada com meio tanque de gasolina no carro. São dezesseis funcionários, a maioria deles desenvolvedores de tecnologia, todos da região. “Nosso maior problema é que a gente perde essa garotada para os centros do Sul”, lamenta Souza Jr.

Empresas como a Terras apontam uma alternativa para a Amazônia muito mais interessante do que as soluções 2.0 à mão. Zelo com o meio ambiente, apoio à produção responsável de alimentos e base tecnológica formam uma combinação poderosa para jovens. Contudo, para que iniciativas assim floresçam e se multipliquem não basta o entusiasmo de alguns pesquisadores-empreendedores. Sem aplicação rigorosa da legislação ambiental, sem investimentos em educação, ciência e tecnologia, dificilmente surgirá uma Amazônia 3.0 ou mesmo uma Amazônia 2.0 que se beneficie da floresta de pé. Teremos apenas esse projeto velho de cinquenta anos.

 

Chega de lendas, vamos faturar!, propunha, com exclamação e tudo, um anúncio de 1970 do Ministério do Interior, da Sudam e do Banco da Amazônia. No mapa do Brasil, a parte onde a Amazônia deveria estar é ocupada por gado, torres, instalações industriais, concreto e operários. “Muitas pessoas estão sendo capazes, hoje, de tirar proveito das riquezas da Amazônia. Com o aplauso e o incentivo da Sudam”, diz o texto, convidando o leitor a também vir tirar a sua lasquinha do bioma. “A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro.”

Difícil imaginar destilação mais precisa dos sonhos brasileiros em relação à Amazônia. Para o Estado nacional, a serventia do mais complexo repositório de vida do planeta é se metamorfosear em dinheiro. O bom brasileiro é o que sabe transformar biologia em moeda, coisa viva em matéria morta. É obsceno e penosamente atual.

Pequena ilustração disso: o Museu Emílio Goeldi ocupa uma área de 5 hectares em Belém. É um pedaço da Floresta Amazônica fincado no centro de uma cidade árida que eliminou sua paisagem original. Numa manhã de setembro, uma família estava parada diante de um mogno, uma das árvores mais magníficas da floresta. Em silêncio, olhavam como que para o céu, hipnotizados. Alta feito um prédio de dez andares, era uma árvore de mais de trezentos anos. Passados alguns instantes, o filho pequeno quebrou o encanto: “Pai, dá fruta?” O pai pensou antes de responder: “Não. Serve pra fazer compensado.” E seguiram adiante.

 

11. AMAZÔNIA 3.0

O francês Charles-Marie de La Condamine foi o primeiro cientista a descer o curso do Rio Amazonas. Filho da Ilustração, amigo de Voltaire, fez a viagem com os olhos postos na floresta. Assim que voltou a Paris, em 1745, começou a organizar os apontamentos de viagem. Numa comunicação à Academia de Ciências da França citada pela escritora argentina Beatriz Sarlo, descreveu o que tinha visto:

As gomas, as resinas, os bálsamos, todos os sucos que supuram das incisões de diversas árvores, assim como os diferentes óleos, são inumeráveis. O azeite que é extraído do fruto de uma palmeira chamada unguravé é, segundo dizem, tão doce e bom quanto o de oliva. Outro, como o da andiroba, exala uma luz muito elegante, sem nenhum odor desagradável.

E também:

A resina chamada cahuchu, nos países da província de Quito perto do mar e das margens do Marañón, quando está fresca, aceita a forma que se deseja dar a ela; é impermeável à chuva, mas o que a torna mais extraordinária é sua enorme elasticidade […] Os índios fabricam garrafas, botas e bolas ocas, que se achatam quando apertadas, mas que tornam a sua primitiva forma desde que livres.

É a descrição de uma bioeconomia. La Condamine é mais moderno do que a Sudam, o Banco da Amazônia e o Ministério do Interior. Quinino, curare, látex – o naturalista sabia que os europeus se espantariam com as possibilidades desses produtos florestais. Havia ali fármacos, especiarias, novos materiais. A mata era um prodígio.

Maurício Lopes, o ex-presidente da Embrapa, imagina uma Amazônia em que a agricultura e a pecuária se integram à floresta. O boi e a soja conviveriam com a silvicultura, de modo que a pegada de carbono dos dois primeiros fosse anulada pela última. Em 2018, quando ainda presidia a Embrapa, em palestra num centro de estudos sobre segurança alimentar de Washington, Lopes descreveu esse modelo como “a segunda revolução da agricultura brasileira”, depois daquela primeira provocada pelo choque do petróleo de 1973. Para que ela se tornasse realidade, era essencial que os produtores rurais se adequassem ao Código Florestal. Em 2018, falar em ação regularizadora do Estado na área ambiental não soava descabido. Hoje soa. A segunda revolução terá de esperar.

“O que está acontecendo na Amazônia é questão de polícia, não de economia nem de pesquisa”, disse Lopes recentemente, por telefone. “É impressionante: nós temos a marca mais conhecida do planeta” – a Amazônia – “e ela é constantemente usada contra nós.” Hoje mais do que nunca, é certo, mas a origem do problema antecede o atual governo: “O Estado brasileiro nunca teve uma agenda para a Amazônia.”

Uma bioeconomia mais robusta baseada em produtos florestais seria um avanço em relação ao que existe hoje. Entretanto, ao menos teoricamente, ela é apenas uma dentre as muitas possibilidades oferecidas por uma floresta de pé. “Na minha cabeça, sabe o que gera mais negócio para a Amazônia?”, pergunta Lopes. Ele mesmo responde: “PSA: pagamento por serviços ambientais.” Trata-se de um mecanismo econômico que busca compensar a natureza pelos benefícios que ela produz. Florestas em eterna renovação, por exemplo, capturam carbono da atmosfera; pagamento por carbono capturado é um exemplo clássico de PSA.

“Mas não só carbono”, esclarece Lopes. “Esses serviços ecossistêmicos representam uma reserva de oportunidades muito mais extraordinária do que tudo o que a gente é capaz de imaginar. O mundo todo olha para a Amazônia em função disso. Ali existe algo que tem valor para toda a humanidade, que transcende o espaço do Brasil. A floresta é protetora de serviços que atendem ao planeta Terra, está ligada ao equilíbrio hidrológico, à captura de carbono, à produção de água.”

Sem a Amazônia o esforço das nações para se adequar às metas do Acordo de Paris se torna fútil, uma vez que o desaparecimento da floresta – ou mesmo de metade dela – lançaria o mundo numa rota de aquecimento cujas consequências desastrosas seriam difíceis de contornar.

Acontece que, ao menos por enquanto, não existe um mercado consolidado para PSA. Lopes tem um ponto de vista curioso sobre o problema: a falha seria em parte do Brasil. “Enquanto nós ficamos aqui falando que a Amazônia é provedora de serviços essenciais e que o mundo deveria pagar por eles, esse blá-blá-blá que a gente ouve tanto, não fazemos nada para compreender a natureza desses serviços. Você não consegue gerir o que não mede. É preciso identificar, descrever, qualificar e, aí, sim, valorar cada um desses serviços: Esse presta pra isso, aquele presta pra outra coisa. Isso nós não fizemos, não aprendemos a descrever. Deveria ser o dever de casa do Brasil e da Embrapa.”

É uma tarefa tão ambiciosa quanto aquela que o país enfrentou quando decidiu se inventar como potência agrícola. Nas próximas décadas a conta da interferência humana na biofísica da Terra será cobrada em parcelas cada vez maiores. Pode-se bem imaginar o valor intrínseco da maior floresta tropical do planeta. Não está claro como (e se) o mundo remunerará quem for capaz de preservá-la, mas também é certo que nenhum país se encontra tão bem posicionado quanto o Brasil para oferecer soluções de estabilização climática baseadas na natureza.

“Quem resolve isso é o cinturão tropical do globo”, diz Lopes. “Dos países localizados nessa faixa, o Brasil é de longe o mais bem estruturado e com mais conhecimento para fazer isso.” Mas nada disso se tornará realidade por ser inevitável. O cinturão tropical é grande, e se o Brasil não assumir o papel de protagonista desse novo mundo, as florestas subsaarianas e do Sudeste Asiático poderão prover os mesmos serviços. “Não vai acontecer só porque nós, brasileiros, queremos. Essas cadeias de valor surgem dos embates travados em ambientes multilaterais. Por exemplo: o mercado de carbono nasce das discussões nas conferências do clima. Por isso é tão importante uma diplomacia inteligente, que entre nas negociações com uma visão de negócios.”

A perspectiva de Lopes se choca frontalmente com a estratégia atual do Itamaraty, que, na figura de seu chanceler, repele a existência do aquecimento global. Estranha missão, visto que ajuda a afrouxar as metas climáticas dos acordos internacionais e, assim, dificulta o estabelecimento de mecanismos econômicos para remunerar os virtuais provedores de serviços ecossistêmicos. Como diz o economista e cientista do clima Bernardo Strassburg, é como se a Alemanha trabalhasse para atrapalhar o comércio internacional de automóveis. “Quanto mais rígidos forem os acordos, mais o Brasil tem a oferecer”, ele explica.

A diplomacia brasileira sempre desempenhou um papel de destaque nas reuniões multilaterais sobre meio ambiente. É a única frente da geopolítica global em que o país conquistou o direito de se sentar na cabeceira da mesa. “Não tinha acordo sem a nossa participação. O Brasil era o proponente ou era o país-chave a ser convencido”, lembra Strassburg, frequentador dessas conferências desde 2007.

O embaixador André Corrêa do Lago chefiou a divisão do Itamaraty voltada para o tema ambiental e entre 2011 e 2012 foi o negociador-chefe do Brasil para mudança do clima. Segundo ele, a posição oficial do país foi sempre a de associar metas de conservação a mecanismos para financiar quem preserva. “Tudo bem, vamos conservar as florestas, mas cadê os recursos, cadê a tecnologia?”, diz, falando via Zoom de Nova Delhi, onde ocupa o posto de embaixador junto ao governo indiano. “Todos os artigos sobre florestas que aparecem nas declarações da ONU, tanto os progressistas quanto os outros, são obra da diplomacia brasileira”, garante.

Uma das contribuições brasileiras decisivas para a arquitetura dos acordos na ONU se deu na concepção de instrumentos de mercado para financiar a captura de gases do efeito estufa. “Era uma exigência dos americanos nas negociações do Protocolo de Kyoto. Pela lógica deles, a coisa tinha que ser resolvida pelo mercado. Foi nesse contexto que se inventou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo [CDM na sigla em inglês]. Funcionava assim: os Estados Unidos precisavam reduzir a emissão deles para se adequar às metas do protocolo. Digamos que não quisessem ou não pudessem fazer o esforço para chegar lá. Então, uma maneira de ficar em dia é financiar um projeto na Índia que substitua uma termelétrica a carvão por uma hidrelétrica pequena. Pronto: a redução vai para a conta do país que financiou. Os Estados Unidos acabaram não assinando Kyoto, mas aí é outra história. O essencial é que o CDM passou. E quem desenvolveu o mecanismo? Brasil e Estados Unidos. Só os dois”, conta Corrêa do Lago.

O CDM se tornaria a base da legislação de carbono da União Europeia. O mecanismo é de difícil monitoramento – um filtro instalado numa fábrica de cimento no Sri Lanka continua em funcionamento um ano depois? – e por isso acabou não ganhando escala. Em 2013, na Conferência de Varsóvia, criou-se um novo instrumento para prover incentivos financeiros a países em desenvolvimento que reduzam seus níveis de emissão de gases pela via do combate ao desmatamento. Chama-se REDD+, sigla para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal. (O sinal de + se refere a outras ações que também podem se beneficiar do mecanismo, como restauração e manejo sustentável das florestas.)

A principal inovação do REDD+ é o pagamento por desempenho, isto é, transferem-se recursos de acordo com os resultados já alcançados. À diferença do CDM, remunera-se o passado, não o futuro. Quem reduziu o desmatamento no ano zero é recompensado no ano um. “A primeira proposta de REDD+ foi apresentada pelo Brasil na época da Marina Silva. Depois o mecanismo foi aprimorado na gestão da Izabella Teixeira à frente do Ministério do Meio Ambiente, entre 2010 e 2016. É uma invenção brasileira”, diz Corrêa do Lago. (Em 2005, Papua-Nova Guiné e Costa Rica tiveram atuação decisiva na defesa de uma versão anterior do instrumento.)

O Fundo Amazônia foi criado antes de o mecanismo REDD+ ter sido ratificado pela comunidade internacional. Contudo, sua arquitetura financeira é a mesma. Compõe-se de doações da Noruega (93,8%), da Alemanha (5,7%) e da Petrobras (0,5%), sendo os aportes condicionados aos resultados obtidos. Durante dez anos pelo menos, esses recursos financiaram ações de preservação da Floresta Amazônica. Geraram emprego, apoiaram o desenvolvimento de tecnologia nacional de monitoramento e ajudaram o Estado brasileiro a se aparelhar para proteger o bioma. Com o crescimento das taxas de desmatamento em 2019, tanto a Noruega como a Alemanha suspenderam os investimentos. Como se não bastasse, os recursos que já haviam sido depositados no Fundo estão parados, uma vez que o governo se recusa a liberá-los.

Ao longo de décadas a diplomacia brasileira ajudou a criar instrumentos de valorização do patrimônio ambiental do país. Fez isso sem abdicar da defesa dos interesses do agronegócio nacional. Entendia que acordos sobre mudanças climáticas podiam favorecer o Brasil. Não mais. De 2018 para cá, o país deixou a cabeceira da mesa e perdeu influência no único fórum internacional em que tinha peso. Com isso, abriu mão de participar como interlocutor privilegiado das discussões sobre como aprimorar os instrumentos de compensação pela natureza preservada.

Isso complica ainda mais o surgimento de um mercado robusto de PSA, o que já seria difícil mesmo com o país remando a favor. Transformar mecanismos do gênero em cadeias relevantes de valor é uma questão que divide especialistas. Juliano Assunção, colega de Strassburg na PUC-Rio, é da turma dos céticos. Sua hesitação diz respeito a um problema clássico da economia: como fazer para que alguém pague por algo que lhe é oferecido de graça? Bens públicos, categoria a que pertencem os serviços ecossistêmicos, são aqueles que, se disponíveis a um indivíduo, estarão disponíveis a todos. Ar puro, por exemplo. O mercado não consegue lidar de forma eficiente com isso, dada a impossibilidade intrínseca de excluir do usufruto do bem alguém que não pagou por ele.

“Foi muito mais fácil o Brasil se organizar para desenvolver uma economia do agronegócio. A gente compreende o mercado de soja, sabe quem compra e quem vende”, afirma Assunção, acrescentando o essencial: “Soja você consegue não produzir.” Para ele, a agenda dos serviços ambientais deveria ser levada adiante sem atrelá-la à solução dos problemas ambientais, econômicos e sociais da Amazônia. “É uma pauta que se justifica por si só.”

Certo: entender como uma floresta de pé sustém a biodiversidade é um fim em si mesmo; prescinde do amparo de razões utilitárias. Existe algo de intrinsecamente obsceno em atribuir um preço à natureza. Os próprios termos da discussão são degradantes: por exemplo, converte-se o respiro da mata em contrato mercantil, reduz-se esse processo bioquímico a um serviço passível de ser cobrado porque útil. O problema é que essas objeções não resolvem a questão: como proteger a floresta? O madeireiro Leônidas Souza gosta de repetir uma frase que atribui a Marina Silva: “As florestas públicas só vão ficar de pé se tiverem valor. Do contrário, não serão públicas nem serão florestas.”

À complicação política se soma a complicação bioquímica. O sequestro anual de CO2 nas florestas tropicais vem diminuindo, o que significa que a resiliência desses biomas ao aquecimento global pode estar chegando ao fim. Segundo alguns estudos recentes, o limite de tolerância térmica das florestas é de até 32ºC. Acima disso, as matas começam a definhar. A mortandade das árvores aumenta e um sistema que antes capturava carbono passa a emiti-lo. Se nas próximas décadas essa inversão do ciclo de carbono se confirmar, o mercado de PSA será afetado.

“Algumas discussões sobre a Amazônia lembram muito os planos soviéticos”, diz Assunção. “A cada par de anos surge uma solução: ‘Esses aqui são os setores que representam o futuro do bioma.’ Desenvolvimento econômico não funciona assim. É frustrante, mas a literatura especializada é silenciosa em relação a receitas acabadas para desenvolver uma região específica.”

O dirigismo não produziu boa coisa na Amazônia. Assunção tem mais fé num cardápio variado de iniciativas pautadas em boas práticas ambientais. Agricultura e pecuária que respeitem o Código Florestal, por exemplo. Mineração responsável. Turismo verde. Serviços. Apoio ao desenvolvimento das cadeias produtivas identificadas por Salo Coslovsky que, além de terem surgido organicamente na região, já deram provas, ainda que incipientes, de poder chegar a mercados internacionais multibilionários.

Esse quadro não exclui a contribuição econômica de alguns serviços ecossistêmicos. Assunção defende que o país aprenda “a jogar o jogo”, como ele diz, de um ou dois desses serviços. “Carbono, por exemplo. Esse é um produto para o qual já existe um mercado em estruturação. Não é simples entender como se tornar competente nele. Quer ver uma complicação? A floresta madura não se encaixa direito nos compromissos de compensação” – ou seja, nos esquemas de compra de créditos de carbono por países ou empresas que precisam compensar sua emissão de gases do aquecimento. “Isso porque ela de fato estoca muito carbono, mas, como já está totalmente formada, não captura mais. Do ponto de vista do fluxo, é uma floresta essencialmente neutra.” Tendo deixado de retirar carbono da atmosfera, ela já não cumpre o serviço buscado pelos que recorrem a esse mercado. Assunção acredita mais no modelo de restauração de florestas: árvores em crescimento sequestram carbono. “Mas nem aí a coisa é simples. Um levantamento do Imazon mostrou que existem 7 milhões de hectares em diferentes processos de regeneração na Amazônia [os estados do Rio de Janeiro e de Sergipe somados]. É terra abandonada que a floresta está retomando. Não custou nada, é regeneração natural.” Uma vez mais, é o dilema dos bens públicos.

“Discordo ligeiramente do Juliano”, diz Bernardo Strassburg. “Você pode, sim, parar de prestar serviços ecossistêmicos. Basta queimar a floresta e jogar carbono na atmosfera. É o que nós temos feito.” Sendo possível reduzir a provisão desses serviços, pode-se cobrar para que sejam mantidos. O REDD+ se baseia nisso.


Strassburg é professor do departamento de geografia e meio ambiente da PUC-Rio. Ele e a engenheira de proteção ambiental Agnieszka Ewa Latawiec, pesquisadora polonesa que conheceu durante o doutorado em ciências ambientais no Reino Unido e que se tornou sua mulher, fundaram no Rio de Janeiro o Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), um centro de pesquisa sobre uso sustentável da terra, conservação da biodiversidade, provisão de serviços ecossistêmicos e adaptação às mudanças climáticas. Strassburg foi o autor principal de um importante artigo de 2020 sobre recomposição ecológica. Publicado na revista britânica Nature com o título Global Priority Areas for Ecosystem Restoration (Áreas prioritárias globais para a restauração de ecossistemas), o estudo teve repercussão mundial.

Usando um algoritmo desenvolvido pelo grupo de pesquisa que lidera, Strassburg identificou as regiões do globo que apresentam melhor custo-benefício para ações ambiciosas de mitigação climática e preservação da biodiversidade. De acordo com uma das principais conclusões a que chega o trabalho, “restaurar 30% das áreas degradadas do planeta pode salvar 71% de espécies da extinção e absorver quase metade do carbono acumulado na atmosfera desde a Revolução Industrial”.

Onde restaurar é o ponto crítico. O grande achado do artigo é demonstrar como benefícios ecossistêmicos e climáticos variam drasticamente de lugar a lugar. “Um investimento de 1 bilhão na Noruega salva duas espécies de grama e uma borboleta. Esse mesmo esforço, se feito em Madagascar ou no Brasil, tem um efeito quatro ordens de magnitude acima”, explica Strassburg. Segundo quase todos os critérios importantes – captura de carbono, manutenção da biodiversidade, custo da restauração, segurança alimentar –, o Brasil é ideal. Um hotspot. O que é outro modo de dizer que, por fim, descobriu-se uma atividade em que a Amazônia conta com uma vantagem comparativa notável em relação a quase todas as outras regiões do planeta.

Capital natural é um conceito econômico que se refere às terras, águas e diversidade de vida sem cujos serviços não haveria sociedade humana. “O mundo é um free rider do capital natural do Brasil. A gente exporta os serviços prestados por ele sem que ninguém pague por isso”, explica Strassburg. Alguns desses serviços têm caráter local: estabilização dos solos, polinizadores, a evapotranspiração que regula as chuvas. Outros têm abrangência global: captura de carbono e biodiversidade. O mundo não está disposto a pagar pelos primeiros, mas pelos outros, sim. “Não é à toa que existem duas convenções da ONU sobre os dois temas de abrangência global e nenhuma convenção sobre polinizadores”, diz Strassburg, referindo-se à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e a Convenção sobre Diversidade Biológica.

Cabe então a pergunta: como esses pagamentos têm se materializado? Para quem acompanha esse debate há tempos, já se tornou cansativa a promessa de que os mercados de PSA serão uma realidade na próxima década – sempre na próxima, a década que nunca chega. Strassburg contesta: “Eu vejo a realidade desses pagamentos acontecer no futuro, mas, sobretudo, vejo acontecer no passado. O Brasil é o maior beneficiário do mundo em REDD+, fruto do acordo bilateral com a Noruega: 1 bilhão de dólares recebidos de um só país.”

Alguns sinais justificam o otimismo de Strassburg. Grandes empresas, e não só países, também têm se comprometido a mitigar suas taxas de emissão de gases do efeito estufa. A Amazon declarou que será neutra em carbono em 2040. A Apple, em 2030, mesmo ano em que a Microsoft se comprometeu a ser negativa em carbono. A exemplo das três gigantes, cresce mais e mais a lista das grandes corporações que assumem compromissos semelhantes de mitigação climática. Segundo Strassburg, “quando a conta das metas globais começar a chegar – por exemplo, a Europa anunciou que atingirá a neutralidade das emissões em 2050 –, a busca por alternativas que otimizem custo e eficácia vai se intensificar muito. E aí entram os serviços ecossistêmicos, porque as soluções baseadas na natureza são as mais baratas e eficientes”. Ainda não se inventou tecnologia melhor do que uma árvore para capturar carbono da atmosfera. Ou do que uma floresta para conservar a biodiversidade.

 “Partindo da hipótese de que o mundo levará a sério o problema do aquecimento global, dá pra prever que, sim, o PSA será uma realidade”, afirma Strassburg. “As soluções baseadas na natureza são óbvias.” Numa conta que fez, o bioma Amazônia poderá captar anualmente até 10 bilhões de dólares em REDD+. “É bem mais do que o custo de oportunidade de converter as florestas em agricultura, ou seja: transformar a mata em pasto e lavoura é mau negócio, gera menos renda.”

Se há um aspecto em que Bernardo Strassburg se alinha com o colega Juliano Assunção é na certeza de que não existe uma forma única para solucionar os problemas da Amazônia. “PSA não é para sempre. Tem que ser compreendido como uma ponte para implantar um modelo de desenvolvimento mais sustentável no bioma. Os recursos do REDD+ deveriam ir para o fazendeiro que não incorreu em desmatamento legal – ele tinha autorização para derrubar a floresta, mas decidiu manter – e para a ciência, a tecnologia, a inovação, tudo o que seja necessário para criar um bioma sustentável.”

É uma observação importante. No futuro, o mundo talvez prescinda da Amazônia. E não só por causa da eventual inversão do ciclo carbônico. Há hoje toda uma indústria em gestação para enfrentar com meios artificiais a crise do aquecimento global. De usinas para extrair carbono da atmosfera a esquemas de refração da luz solar, essas iniciativas compõem um novo campo da ciência aplicada, a geoengenharia. Soa perigoso, e provavelmente é, mas isso não equivale a dizer que seja ineficiente. Talvez seja até inevitável. “Digamos que a economia dos países desenvolvidos chegue à neutralidade de emissões em 2050”, especula Strassburg. “Eles vão precisar menos da Amazônia. E, se ainda precisarem, o preço terá caído, porque outras soluções estarão competindo com os serviços ecossistêmicos naturais.”

Se acontecer, o Brasil terá perdido mais uma vez o bonde da história.

 

12. EPÍLOGO

A despeito da retórica nacional-populista, o Brasil é pouca coisa. Não é potência econômica, nem científica, nem tecnológica, nem geopolítica. Longe disso. Quinhentos anos depois da chegada dos portugueses ao litoral baiano, não temos muito que mostrar ao mundo. O cenário à frente também não é promissor. Num século que se organiza cada vez mais não em torno de coisas, mas de conhecimento, nossas perspectivas parecem medíocres. Países como a China importam cérebros; o Brasil tem escolhido exportar os seus. Para que haja cientistas é preciso haver ciência. A cada novo corte de verbas para a pesquisa, a cada criacionista indicado para cuidar das escolas e bibliotecas do país, o Estado brasileiro reafirma que não trilha esse caminho.

Produzimos alimentos, o que é importante. Ocorre que a soja do Centro-Oeste brasileiro é idêntica à soja cultivada no continente africano ou na Sibéria. Se o Brasil soube fazer a sua revolução agrícola, outros países podem fazer a deles, como prenunciam as mudanças climáticas e as transformações tecnológicas em curso. Resta saber se a concorrência mais forte virá das novas fronteiras de plantio ou dos laboratórios.

O que sobra, então? O que distingue o país e o torna único? É simples. Temos a maior biodiversidade e a maior quantidade de carbono estocado em matéria orgânica do planeta (a Rússia nos ultrapassa, se incluído o carbono capturado no solo). Mais do que importante, esse é um patrimônio crucial. Num mundo fadado a enfrentar a emergência climática que se avizinha, preservar a maior floresta tropical do mundo é, antes de tudo, um dever de civilização. Para um país que contribuiu tão pouco com a felicidade do planeta, cumprir essa tarefa já seria imenso. Mas não para por aí, pois os benefícios não se resumem à responsabilidade moral: até segunda ordem, esse patrimônio vital que nos foi legado arbitrariamente pelas vicissitudes da química e da física da Terra é o único em condições de nos dar alguma relevância global.

Como observa Bernardo Strassburg, o capital natural foi sempre um ativo estratégico para o Brasil. O país vem sendo explorado assim desde o pau-brasil. Com o tempo, o que passou a nos caracterizar foi o que substituiu o capital natural: o café, o gado, a soja. Com 17 mil km2 de terras abandonadas na Amazônia (um Kuwait), não há por que abrir nem mais um palmo de floresta para plantar uma couve. O futuro está no que ficou de pé.

Um projeto de país digno do nome seria compreender essa riqueza e, a partir daí, transformar o Brasil naquilo que pouquíssimos países estão habilitados a ser: uma potência ambiental. Isso se faz fortalecendo o conhecimento, investindo em cientistas, levando as inovações para fora dos laboratórios, encampando uma política internacional de defesa das práticas sustentáveis como princípio econômico essencial. E, inevitavelmente, interrompendo a destruição. Enquanto existe, um bem natural perdura e não se deprecia. A floresta que sustenta a biodiversidade hoje sustentará a biodiversidade amanhã. O rio que movimenta uma turbina elétrica em 2021 provavelmente movimentará uma turbina elétrica diferente em 2121; a máquina precisará ser substituída, o rio não. Porém – e essa é a diferença entre um bem natural e todos os outros ativos –, se o rio secar, se a floresta for cortada, se a abundância de vida desaparecer, terá sido para sempre. O que retorna é outra coisa, diferente e mais pobre. A extinção é irreversível.

Levada adiante, a ideia de um Brasil que retira do seu patrimônio natural, e da Amazônia em particular, o fundamento de sua identidade e de seu destino, que transforma o arrabalde em nossa casa, por assim dizer, impõe ao país uma tarefa magnífica. No limite, a de desenvolver em terras brasileiras o Vale do Silício da biodiversidade. É um sonho que já habita a imaginação de alguns cientistas. Fazer daqui um centro de referência mundial para a agricultura de baixo carbono, para os novos materiais extraídos da natureza, para a engenharia baseada nas formas vivas, para a identificação de moléculas que curam, para o estabelecimento de novos marcos legais de remuneração das comunidades que preservam esse vasto patrimônio genético, para a prestação de serviços ecossistêmicos – em suma, para nichos importantes de tudo o que possa ser chamado de biotecnologia.

Pouco importa se o objetivo é fantasioso e difícil de alcançar. O que importa é o rumo. Para um país que sempre sonhou baixo, é uma linda ambição, apta a evitar que, no futuro, uma criança olhe para um mogno e aprenda que está diante de uma pilha de tábuas de compensado.


[1] A Rússia é um país muito frio.

[2] Eram duas as condições para que um nome saísse da lista: reduzir o desmatamento anual a menos de 40 km², mantendo por dois anos consecutivos uma taxa média de desmatamento inferior à registrada entre 2005 e 2008, e promover a atualização cadastral de pelo menos 80% dos imóveis rurais do município, para melhor monitorá-los contra futuros desmatamentos ilegais.

[3] Terras não destinadas são áreas que não foram delimitadas como unidade de conservação, área quilombola ou terras indígenas, mas pertencem ao poder público.

[4] De um fazendeiro na Amazônia citado na biografia de Daniel Ludwig: “Veja bem, eu sou cristão. Não acho que índio bom é índio morto, como dizem os gringos. Mas acredito, sim, que o único índio bom é o índio sem-terra.”

[5] O autor possui ações da Amata.

[6] Em 2019, fazendeiros, empresários, advogados e pessoas ligadas ao setor agropecuário de Novo Progresso (PA) combinaram dia e hora para começar incêndios florestais. A data marcada foi 10 de agosto, o Dia do Fogo.

[7] Extraído das vísceras de peixes, é usado como fixador pela indústria de cosméticos e bebidas. Além disso, é matéria-prima para linhas de sutura cirúrgica, colas de precisão e alguns remédios.

João Moreira Salles

Documentarista, é editor fundador da piauí. Dirigiu Santiago, Entreatos e Nelson Freire, entre outros

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