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    Santos, durante as gravações na Amazônia Foto: Reprodução

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O ufanismo anacrônico de Silvino Santos

Exibido pela primeira vez no Brasil depois de ter ficado perdido por nove décadas, Amazonas, o Maior Rio do Mundo trata o ser humano como figurante

Eduardo Escorel | 06 dez 2023_07h49
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Filmados durante três anos, começando em 1918, os 6 mil metros de negativo original de Amazonas, o Maior Rio do Mundo, de Silvino Santos (1886-1970), foram vendidos, em Londres, em 1920, para uma empresa de turismo, como relata Selda Vale da Costa no livro Eldorado das Ilusões, Cinema & Sociedade; Manaus (1897/1935). Dado como perdido na década seguinte, o filme foi encontrado no início deste ano no Arquivo Nacional de Cinema da República Tcheca. A descoberta, considerada milagrosa, causou furor e comprova a importância de existirem instituições sólidas de preservação da memória audiovisual.

O filme foi exibido pela primeira vez no Brasil há poucas semanas, em 22 de novembro, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, sonorizado com música original de Luis Henrique Xavier. Depois houve uma sessão em João Pessoa. Nesta quinta-feira, 7 de dezembro, o filme poderá ser visto na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, estando programadas em seguida exibições em Fortaleza e Manaus.

Santos ficou conhecido por apenas um dos títulos de sua vasta filmografia compilada por Selda Vale da Costa – No Paiz das Amazonas, de 1922 – e pelas filmagens que fez da Exposição Internacional do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, entre 1922 e 1923. Agora, os 66 minutos de Amazonas, o Maior Rio do Mundo oferecem a inesperada oportunidade de reavaliar a contribuição do diretor para o nascente cinema brasileiro da época. Ocasião favorecida pelo bom estado de conservação e aparente integridade da cópia, além de sua qualidade fotográfica.

A carência de tradição em países novos, como o Brasil, resulta por vezes em distorções ao se procurar estabelecer nexos entre momentos da produção cultural e artística do passado. Isso pode ser constatado até em atividades surgidas na modernidade, como o cinema, mesmo levando em conta a estimativa de que mais de 90% da produção de filmes silenciosos do país foi destruída pela combustão espontânea da película de nitrato, além de inundações e incêndios resultantes da incúria humana. A lacuna resultante desse extermínio parece contribuir para ofuscar o juízo crítico e confundir valor documental com mérito estético.

Se, de um lado, devemos reconhecer os méritos de Santos por seu pioneirismo, de outro, é preciso não esquecer que foi preciso romper com os pressupostos dos filmes que realizou para que o cinema feito no Brasil conquistasse algum reconhecimento efetivo.

Na acepção hodierna, Amazonas, o Maior Rio do Mundo não pode ser considerado um documentário. É, sem dúvida, um filme de propaganda, cujo propósito publicitário explícito é persuadir o espectador, exaltando as maravilhas da natureza para promover o comércio. Parece mais um catálogo de ofertas à venda, pretendendo também, em breves incursões, servir de chamariz turístico.

Como não podia deixar de ocorrer, a origem de Amazonas, o Maior Rio do Mundo transparece no próprio filme. “Em 1917”, escreve Costa em Eldorado das Ilusões (p.162), citado acima, “a Amazônia descobriu o cinema como meio eficaz de propaganda para atrair capitais.” Contando com incentivo do governo estadual, foi criada a Amazônia Cine-Film, “aliança bem-sucedida entre Estado e capitais privados”, segundo Costa, que, no ano seguinte, produziu o filme dirigido, fotografado e montado por Santos.

Agregue-se à deliberada intenção persuasiva o domínio algo rudimentar de Santos da linguagem cinematográfica. O uso ocasional e arbitrário de efeitos como cortinas, íris e fades não chega a dar forma própria ao filme.

Apresentadas por legendas informativas, em geral redundantes com relação às imagens e com durações variadas, as sequências de Amazonas, o Maior Rio do Mundo se sucedem, na tentativa frustrada de retratar uma jornada. A câmera percorre rios, paisagens, cidades e atividades produtivas, da borracha à madeira, passando pela pesca, caça, castanha-do-pará, cana-de-açúcar, algodão, mandioca, pássaros etc., culminando, para terminar, nas orquídeas, borboletas e vitórias-régias. O Rio Amazonas é o “mais poderoso do mundo”; “o território é rico em recursos naturais”; “a carne é bastante saborosa”; “gado significa riqueza”; em Santarém “a terra se torna mais civilizada”; “as florestas são enormes, as árvores gigantescas”; “o centro da indústria madeireira fica em Manaus, que é um centro cultural e comercial” etc. – legendas que pretendem enfatizar a grandiosidade do mundo retratado.

O ser humano, por sua vez, é mero figurante em Amazonas, o Maior Rio do Mundo. O olhar de Santos não se volta para homens e mulheres que estão mais ausentes do que presentes, quer sejam trabalhadores braçais ou proprietários. Há um instante, talvez único, em que a hierarquia social é indicada através do movimento da câmera. Aos 25’40”, uma panorâmica vertical, de baixo para cima, passa dos trabalhadores, alguns sem camisa, que estão acomodando com suas pás a carga de castanhas-do-pará no porão do navio, para dois homens no convés, observando o trabalho de cima. Parecem saber estarem sendo filmados. Sorridentes, ambos vestem terno branco e chapéu; um usa gravata, o outro chapéu de palha. O plano dura apenas 4 segundos, mas é revelador, talvez por acaso.

Onde Santos falha de modo cabal é nas referências aos povos indígenas. As duas primeiras menções, feitas em legendas no início de Amazonas, o Maior Rio do Mundo, aos 5’42” e 6’20”, são equívocas, não sendo seguidas de imagens correspondentes; as duas seguintes, aos 43’52” e 44’51”, apresentam cenas rápidas relacionadas ao hábito alimentar de comer peixe e à atividade artesanal das mulheres de trançar esteiras de palha – os homens seminus parecem ter sido vestidos para a filmagem, enquanto a mulher que tece está vestida, observada por outras despidas da cintura para cima, algumas com crianças no colo.

Próximo ao final, uma legenda aos 59’32” informa: “Aqui, vivem tribos selvagens que, há apenas cinquenta anos decoravam suas ocas com os crânios de seus inimigos.” Alguns segundos depois, outra legenda insiste: “Como todos os selvagens, eles decoram seus narizes e orelhas.” Parecendo constrangidos, indígenas posam para a câmera, servindo de ilustração ao texto. Santos se permite ainda, antes da “grande festa das meninas” que encerra o filme, tentar ser irônico: “Usar calças também está na moda hoje em dia”, comenta a legenda, ao que segue duas duplas de indígenas vestidos dançando, seguido de outros rituais nos cinco minutos finais.

Em retrospecto, em especial frente à realidade atual da Amazônia, o ufanismo de Santos e sua atitude frente aos povos indígenas resultam inaceitáveis. Passado um século, Amazonas, o Maior Rio do Mundo demonstra ter sido um imenso equívoco e, com o tempo, se tornou anacrônico. 

 

* Versão anterior do texto dizia que, segundo estimativas, mais de 90% da produção de filmes brasileiros foi destruída por combustão espontânea da película, inundações e incêndios. O dado, no entanto, se refere apenas aos filmes silenciosos. A informação foi corrigida em 07/12/2023.

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