Ilustração de Paula Cardoso
Pandemia atrasa fila de espera por transplantes
Vírus contaminou pacientes transplantados em São Paulo; no Ceará, procedimentos caíram 70% e doze pessoas morreram sem conseguir um órgão
Aos 42 anos, a auxiliar de restaurante Zilda Iara Guadalupe Rocha descobriu que tinha rins policísticos: os órgãos aumentavam de tamanho graças à proliferação de cistos, o que causava a perda progressiva da função renal. Zilda fez vários tratamentos, sem sucesso. Aos 50 anos, a moradora de Florianópolis, casada e mãe de dois filhos, recebeu sua sentença: sem um transplante, teria pouquíssimas chances de sobreviver por mais de doze meses. Desde então faz hemodiálise três vezes na semana. Por três a quatro horas fica ligada à máquina que filtra seu sangue, fazendo o trabalho dos rins. Em uma sala que divide com cerca de outros vinte pacientes, Zilda vê a vida de muitos se esvaindo e sofre com a inquietude de não saber se será a próxima. “Se aparecer um rim compatível e você me perguntar: ‘prefere fazer o transplante, mesmo sabendo que, por mais cuidados que sejam tomados, sempre pode existir um risco de contrair a Covid-19? Ou prefere aguardar uma nova chance?’ Sem piscar, eu respondo: façamos o transplante, e logo. Ninguém, ninguém faz ideia do que é ficar preso naquela máquina”, afirma.
Em Santa Catarina, quase quinhentos pacientes estavam na fila de espera por um rim. Antes da pandemia, muitos desses doentes conseguiam fazer o transplante em cinco, seis meses. Hoje, segundo o presidente da Associação dos Pacientes Renais (SC), Humberto Floriano Mendes, não há como estimar quanto tempo Zilda terá que esperar. “Foi como um banho de água fria na esperança desse pessoal. Até o começo deste ano, eram 500 todos os pacientes esperando por um órgão na fila. Agora, o número total já passou dos 700”, observa ele. A epidemia de Covid-19 deixou mais longa a fila de 40 mil pessoas à espera de um órgão no Brasil, país cujo programa de transplantes é referência mundial. Os números de transplantes e de doadores vêm caindo semana a semana. De março até 30 de abril foram 17% a menos de procedimentos. Ainda assim, é menos que na França, onde a queda chegou a quase 92% nos dois últimos e piores meses da pandemia, e dos Estados Unidos, que, no mesmo período, fez quase 60% menos procedimentos.
O InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), um dos três maiores centros de cardiologia do mundo e o maior da América Latina, descobriu casos de coronavírus entre pacientes transplantados ou aguardando um transplante. O programa foi suspenso por alguns dias para que sejam implementadas medidas de contenção do coronavírus. A assessoria de imprensa do complexo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) confirma pelo menos cinco casos de contaminação de pacientes renais. Segundo médicos do hospital ouvidos pela piauí, seriam oito casos entre doentes renais e dois em transplantes de coração, além de contaminação de pacientes de transplantes de fígado.
Segundo a assessoria do HC, os transplantados renais que se contaminaram passam bem. De acordo com médicos do hospital, os pacientes ficaram em uma condição grave, e a contaminação foi descoberta quando um deles começou a apresentar sintomas. O InCor pôs em ação um dos protocolos previstos caso uma situação como essa acontecesse: o andar foi isolado e todos que passaram por ele foram testados. Os pacientes foram transferidos para um andar específico. “Nosso programa foi suspenso por alguns dias para que houvesse essa readequação. Mas não está e nem estará paralisado. Não seremos nós os médicos que vamos furtar a vida dos pacientes. Ele, sua família e os que estão em volta, como sempre fizemos, vão decidir”, afirma Fabio Jatene, vice-presidente e diretor da Divisão de Cirurgia Cardiovascular do InCor, que engloba os transplantes cardíacos.
“Tratando-se do coronavírus, não foi uma surpresa a contaminação. Ela é praticamente impossível de conter”, explica Fabio, filho do ex-ministro da Saúde Adib Jatene. “Aprendemos nesta pandemia que não é possível determinar condutas a longo prazo. No caso da Covid-19, praticamente todos os dias é preciso rever protocolos e procedimentos”, acrescenta ele. No hospital foi realizado em 1968 o primeiro transplante de coração da América Latina e o segundo do mundo pela equipe do cirurgião Euryclides Jesus Zerbini. Fabio, mesmo com décadas de experiência, não esconde a apreensão. “Cercamo-nos de todos os cuidados possíveis e imagináveis, mas nunca podemos esquecer que enfrentamos um vírus desconhecido, cuja ação também não é totalmente desvendada até agora, apesar dos esforços mundiais da ciência”, pondera. Entre esses cuidados está a adoção de novos protocolos de segurança.
No complexo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), especificamente no InCor, já havia sido estabelecida uma área “livre da Covid-19” . Os pacientes infectados são tratados no Instituto Central do Hospital das Clínicas, onde há cerca de novecentos leitos entre UTI e enfermarias. No InCor ficaram apenas os casos de transplantes e também a emergência. Se o InCor se tornou área livre da Covid-19, o que aconteceu? Jatene explica que, assim como nos demais casos no mundo inteiro, é difícil estabelecer o foco da contaminação quando ela passa a ser comunitária e dizer com certeza como os pacientes foram contaminados. Há suspeitas de que o vírus possa ter chegado por meio dos profissionais que atendem os doentes, mas também de que alguns pacientes possam ter chegado ao hospital já com o vírus e os testes – caso a infecção fosse muito recente – não terem detectado.
“Quando identificamos pacientes contaminados, imediatamente testamos e fechamos todo o andar para conter o surto”, conta Jatene. Dentro do InCor foi separada uma área para outros casos de Covid-19 que possam aparecer e, no HC – onde estão os pacientes infectados –, haverá UTIs e áreas específicas para pacientes transplantados que possam ter sido contaminados e, ainda, para aqueles que passaram por procedimentos cardíacos que precisam de um suporte diferente ao destinado aos casos do novo coronavírus.
No InCor, além dos doadores, todos os receptores também são testados e, quando possível, permanecem em casa. Segundo Jatene, os pacientes que já estão em casa e são chamados se aparece um doador só serão hospitalizados em última instância. Os que se encontram em condições graves vão continuar no hospital. “A rotina não será mais a mesma e o planejamento terá que ser reavaliado caso a caso”, acrescenta ele.
O novo coronavírus conseguiu paralisar o Programa Nacional de Transplantes brasileiro em regiões específicas. Alguns serviços de transplantes, como o do Ceará, fazem hoje 70% de transplantes a menos do que faziam no início deste ano. “Todos os nossos recursos estão dedicados integralmente à pandemia. Sobra quase nada para outros procedimentos, incluindo aí emergências de todo tipo e os transplantes”, explica o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), o cirurgião José Huygens. Cearense, nascido no município do Crato, Huygens trabalha no maior centro de transplantes de Fortaleza, onde coordena o serviço de transplantes de fígado do Hospital São Carlos (credenciado pelo SUS). O Ceará, que aparece em terceiro lugar no ranking de casos de Covid-19 confirmados pelo ministério da Saúde, chegou a mais de 18 mil casos, e, pelos registros oficiais, 1.280 mortes até esta quarta-feira (13). As UTIs colapsaram, e os transplantes também. Em todo o Estado, desde março, doze pessoas morreram na fila de espera por um órgão do Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará.
No ano passado, foram feitos mais de 1.500 transplantes (entre órgãos e tecidos) no Ceará. Na estatística da ABTO, de 2019, o estado figura com o terceiro maior número de doadores por milhão de habitantes. São 28,3, bastante acima da média brasileira, que é de 18 por milhão. Na região Sul, há 36 doadores por milhão. Santa Catarina e Paraná lideram esse ranking, com 47,2 e 43,8, respectivamente. “São números europeus. Países como a Espanha não tinham esses números”, compara o nefrologista Gustavo Ferreira, vice-presidente da ABTO e diretor do Programa de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora (o hospital onde o então candidato Jair Bolsonaro recebeu os primeiros socorros após ter sido esfaqueado em um comício na campanha).
Um estudo realizado pela ABTO com os dados do país inteiro mostra que existe uma possibilidade de que o pior momento da queda de doadores e receptores esteja sendo superado. A curva de doadores, que despencou entre o final de março e a primeira quinzena de abril, começou a subir muito lenta e gradativamente a partir do final de abril. O Sudeste seguiu essa linha, e o Sul teve aumento de doadores. A tragédia, ou como Ferreira chama, “o apagão” aconteceu nas regiões Norte e Nordeste, onde alguns estados simplesmente tiveram que suspender os programas.
Em 2019, foram feitos 9.187 procedimentos (órgãos e tecidos), segundo o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do Ministério da Saúde. Um número que vinha em curva ascendente nos últimos anos. “A expectativa para este ano era de bater todos os recordes”, informa Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião do aparelho digestivo do Hospital Albert Einstein e um dos pioneiros nos transplantes de fígado no Brasil, confessando que ficou abatido ao ver que os números de procedimentos e doadores desabavam. Ele já fez mais de 2 mil cirurgias como essa ao longo das quatro décadas de profissão. Dedicou-se aos transplantes de fígado, órgão que, como ele mesmo diz, nunca conseguiu conquistar o “glamour do coração”, mas cuja importância é vital aos seres humanos. “A evolução do Brasil nessa área foi fenomenal. Até hoje não perdemos para praticamente nenhum outro país. Se considerarmos que cada paciente doente teria sobrevida média de dez a doze meses e, com o transplante, pode viver décadas, veja a dimensão da tragédia originada pela Covid-19”, diz Ferraz Neto.
Há poucos dias, em uma live realizada semanalmente com coordenadores de serviços de transplantes de diferentes estados, os médicos analisaram causas e perspectivas da atual situação. Concluíram que a redução de transplantes está muito além da sobrecarga dos serviços de saúde causado pela Covid-19 e a falta de leitos e UTIs. O primeiro indicador a cair foi o número de possíveis doadores com morte encefálica, quando os órgãos continuam funcionando, mas o cérebro já não emite os comandos que mantém mantêm as funções essenciais do ser humano, como a respiração. Essa situação é irreversível, e a vida do paciente passa a ser mantida por aparelhos, permitindo, durante um curto espaço de tempo, retirar pulmões, coração, fígado, rins, córneas e transplantá-los em outras pessoas. “Por mais cruel que possa parecer, o isolamento diminuiu o número de acidentes fatais cujas vítimas tiveram morte cerebral. Da mesma forma, caíram os casos de pacientes com Acidente Vascular Cerebral (AVC) fulminante, que também sustentavam as listas de doadores”, observa Ferraz Neto.
Depois vieram os impactos provocados nos serviços hospitalares. A atual situação no Brasil, onde os contaminados pelo novo coronavírus se aproximam dos 200 mil e os óbitos passam de 12 mil, está levando ao colapso o sistema de saúde. Em capitais como Manaus, Belém, Fortaleza e Rio de Janeiro há filas de espera por vaga para internação, e as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) estão trabalhando além do limite de sua capacidade com taxas de ocupação acima de 90%. “Não existe a menor possibilidade de liberar leitos para transplantados. Por isso, muitas cidades paralisaram seus programas”, observa o diretor da Divisão de Cirurgia Torácica do InCor, Paulo Pêgo-Fernandes.
O Sistema Nacional de Transplantes regulamenta e normatiza os transplantes no país, credencia instituições e organiza os procedimentos, as listas de doadores e receptores. Se existe um doador em um estado em que não existe um receptor compatível, a estrutura permite transportar o órgão doado ao receptor compatível. “Agora mesmo (na manhã de uma quinta-feira, durante a entrevista) está sendo feito um transplante de rim em outra cidade, com órgãos doados aqui no hospital” conta Ferreira. O Brasil tem o maior sistema público de transplantes do mundo, com 95% das cirurgias feitas gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). Perde apenas para os Estados Unidos, com a diferença de que lá é pago. “É um programa que concentra a filosofia do SUS. Tem relação direta com os conceitos de igualdade e justiça”, acrescenta ele.
A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) conseguiu, há cerca de duas semanas, a edição de uma norma que obriga possíveis doadores e receptores a serem testados para o novo coronavírus. A medida tem reduzido alguns problemas, mas esbarra nas necessidades próprias dos procedimentos para transplantes. Por exemplo: entre serem retirados de um corpo e transplantados em outro, órgãos nobres como o coração e o pulmão têm sobrevida de seis, sete horas, em média; o fígado pode ser mantido durante doze horas. O exame mais seguro para resultado de Covid-19 demora algumas horas. É uma corrida alucinada contra o tempo. Outra dificuldade é que, abarrotados com a pandemia, os hospitais brasileiros sequer conseguem avisar as famílias sobre mortes das vítimas ou suspeitos de terem adquirido a Covid-19. Famílias vão enterrando corpos sem saber resultados de testes, que demoram e continuam sendo insuficientes para todos. Como conseguir testar, avisar a família e pedir a doação, retirar os órgãos e transplantá-los a tempo? “Por mais agilidade, boa vontade e profissionalismo, além da coordenação do Sistema Nacional de Transplantes, é bastante difícil”, afirma o presidente da ABTO. Para quem aguarda um órgão, a espera fica ainda mais longa.
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