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    Ilustração: Carvall

questões cronológicas

Pandemia que embaralha o tempo

Pesquisa inédita mostra que, durante o isolamento social, jovens e velhos perceberam de modo distinto a passagem das horas

Camille Lichotti | 22 dez 2021_10h08
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A cada duas semanas, o engenheiro naval Nicholas Dutra pega um helicóptero e se isola no meio do Oceano Atlântico. Ele trabalha embarcado em uma plataforma de petróleo, a 300 km da costa do Rio de Janeiro. Lá, é como se vivesse em outra dimensão temporal, num mundo separado. Desde 2019, Dutra trabalha catorze dias na plataforma, por doze horas seguidas, e fica outros catorze dias de folga, em casa. Ele já estava acostumado com esse regime de trabalho: os dias na plataforma, onde a rotina basicamente se resume a apertar botões e girar manivelas, duravam uma eternidade – e ele só pensava em voltar para casa logo. Mas os mesmos dias de folga, que Dutra usava para sair com os amigos, visitar a família e viajar, passavam voando. A pandemia de Covid-19 e, consequentemente, a imposição do isolamento social chegaram para embaralhar de vez a percepção que ele tinha sobre o tempo. “Eu não sinto o tempo passar rápido ou devagar”, explica o engenheiro. “Agora vejo o tempo inexistente, ele parou.”

Na vida real, no relógio da parede, o tempo é absoluto, matemático e transcorre uniformemente – não importa o que aconteça. Mas não é exatamente assim que funciona nossa consciência temporal. Na verdade, é como se cada pessoa carregasse seu próprio relógio no cérebro, um marcador temporal subjetivo. Em nossa mente, os ponteiros não necessariamente obedecem às leis da física clássica: podem correr mais rápido ou mais devagar, dependendo das nossas emoções e das atividades que realizamos durante o dia. “Ninguém sabe 100% por que isso acontece ou como isso funciona”, explica André Cravo, professor de neurociência e coordenador do Laboratório de Cognição e Percepção do Tempo da Universidade Federal do ABC. 

Os cientistas sabem que a sensação de passagem do tempo mais rápido ou mais devagar ainda é um mistério, mas a pandemia forneceu algumas pistas para ajudá-los a entender quais as condições que afetam essa percepção temporal. No começo de 2020, logo quando começaram as regras de distanciamento social, pesquisadores de todo o mundo começaram a reproduzir estudos para entender o que estava acontecendo com a cabeça das pessoas durante esse período. Eles chegaram à mesma conclusão: a pandemia distorceu o tempo e, para a maioria das pessoas, desregulou os ponteiros dos relógios subjetivos. 

Entre maio e agosto de 2020, o neurocientista Cravo e outros dez pesquisadores de várias universidades realizaram um estudo com mais de 3 mil brasileiros. A cada semana, os voluntários respondiam a uma série de perguntas relacionadas à passagem do tempo e a seus sentimentos quando o isolamento era mais restrito. Os participantes do estudo apresentaram mudanças na percepção temporal, e 65% deles sentiram que o tempo não passava. “Especialmente nas primeiras semanas, notamos uma forte expansão temporal, mas ainda não está totalmente claro o que a gente usa para fazer esse julgamento”, explica o neurocientista que conduziu o estudo, agora publicado em pré-print.

Apesar de não saber que mecanismos nosso cérebro utiliza para nos enganar, os pesquisadores conseguiram identificar quais fatores influenciaram nossa consciência temporal durante o isolamento. Os aspectos psicológicos foram os grandes responsáveis por modular nossa suposição temporal. A solidão e as emoções negativas, em especial, dilataram o tempo para os participantes do estudo. Ou seja, quanto mais tristes as pessoas, mais devagar elas sentiam o tempo passar. “Isso está relacionado à maneira mais negativa com que algumas pessoas lidam com a pandemia. Outras conseguiram, de certa forma, encaixar a vida e não sentiram o tempo se expandindo tanto”, explica ele. Os resultados indicam que, aparentemente, o cérebro usa essas emoções para fazer a conta temporal psicológica. 

Curiosamente, a habilidade cognitiva de sentir a passagem do tempo se mostrou independente da capacidade de estimar a duração real de algum evento. “É só pensar em uma reunião chata, que parece não acabar nunca, e você só pensa em ir embora logo. Você vai sentir o tempo passar mais devagar, mas se perguntarem quanto durou a reunião, provavelmente você vai dar uma boa estimativa numérica”, exemplifica o neurocientista André Cravo. Os participantes da reunião chata sabem dizer se ela durou vinte minutos ou uma hora, numa estimativa bem próxima do tempo real do relógio. Mesmo assim, a estranha sensação de que o tempo se arrastou muito mais ainda permanece lá. Isso indica que nosso cérebro é capaz de ativar habilidades diferentes relacionadas ao mesmo conceito. “O que a gente chama de tempo são muitas coisas diferentes”, lembra André Cravo, rindo.

 

A relação entre emoções negativas e consciência temporal, encontrada pelos pesquisadores brasileiros, explica por que o engenheiro Nicholas Dutra, de 27 anos, sentiu o tempo parar. Não é que a vida tenha pausado como num filme. Na verdade, o tempo para ele pareceu se arrastar cada vez mais lentamente – e, de tão devagar, é como se tivesse parado.

Dutra mora sozinho no Centro do Rio de Janeiro e cumpriu estritamente o isolamento social. Por catorze dias se isolava na plataforma de petróleo e nos catorze dias de folga se isolava para se proteger do vírus. “Eu não saía com meus amigos, não fazia nada prazeroso. Eu só ficava pensando no que eu ia fazer quando a pandemia acabasse, esperando para voltar a viver como vivia antes”, conta ele. “Eu esqueci do presente como uma possibilidade de viver e desloquei tudo para o dia em que a pandemia acabasse.” O engenheiro passou por momentos angustiantes durante o isolamento, e a ansiedade é um prato cheio para confundir o cérebro, dizem os especialistas. 

“Toda vez que a gente está prestando atenção no tempo ou não tem nada para se ocupar (uma rotina ou sequência de atividades), nosso cérebro começa a dar mais atenção para o circuito temporal”, diz Mario Miguel, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialista em fisiologia e cronobiologia. É isso que acontece quando alguém está no ponto de ônibus, por exemplo. Quanto mais queremos que ele chegue – e mais incertos estamos de quando isso vai acontecer –, mais atenção dedicamos a essa contagem. É aí que nosso cérebro começa a distorcer o tempo. “Se para uma pessoa pouco ansiosa um período de tempo dura meia hora, para a ansiosa pode durar o dobro. E o que importa não é o tempo absoluto, mas a nossa percepção dele”, explica Miguel. 

Os pesquisadores brasileiros acreditam que isso explica a distorção temporal durante o isolamento, quando todos voltaram sua atenção para o fim da pandemia – um evento incerto, importante e distante. Solitário e esperando ansiosamente para sair do isolamento social, Nicholas Dutra entrou para a estatística de quem dilatou tempo. Assim como para outros brasileiros, a vida durante a pandemia se tornou para ele uma espécie de plataforma de petróleo, a muitos quilômetros da terra firme.

 

O neurocientista André Cravo e sua equipe também mediram a consciência temporal na pandemia usando medidas objetivas: idade, número de pessoas em casa, rotina etc. Os resultados mostraram uma relação geracional. Nesse caso, os mais jovens sentiram mais a expansão do tempo. “A nossa interpretação foi que esse grupo sentiu mais a mudança de rotina. Foram eles que pararam de ir para a faculdade, deixaram de sair como antes, pararam de se relacionar tanto”, diz o pesquisador. “É bem especulativo, mas talvez para as pessoas mais velhas, a mudança não tenha sido tão grande.” O resultado é o oposto do encontrado em um estudo semelhante, realizado na Inglaterra. A metodologia e a amostra eram diferentes e, na pesquisa inglesa, 80% dos participantes sentiram a distorção temporal, mas foram os idosos que sentiram o tempo se arrastar mais. 

“A gente preferiu não afirmar muita coisa no estudo para não especular demais. Mas uma explicação possível é que os idosos são diferentes no Brasil e na Inglaterra”, diz Cravo. Talvez os idosos entrevistados no Brasil não tenham sentido a mudança de rotina como no país europeu. Diferenças na rotina e nas atividades realizadas entre grupos etários de países distintos – ou seja, diferenças culturais – podem ter provocado efeitos diversos na percepção de tempo transcorrido durante a pandemia. Mas os cientistas ainda não chegaram a um consenso. “No estudo inglês, a pesquisadora achou que os mais velhos sofreram maior expansão temporal. Para nós, no Brasil, foram os mais jovens. Uma outra pesquisa francesa não encontrou diferenças entre faixas etárias. Então essa história da idade ainda não está bem contada”, relata, resignado, o neurocientista André Cravo.

Mais importante do que a idade ou variáveis objetivas é como a pessoa estava se sentindo, reitera ele. Na mesma linha do que encontraram os pesquisadores brasileiros, o estudo inglês mostrou que pessoas socialmente satisfeitas sentiram o tempo passar mais rápido na pandemia. “É curioso porque o importante não é de fato o quão sozinho você está, mas o quão sozinho você se sente. E pessoas diferentes precisam de níveis de interação diferentes para se sentirem bem”, diz ele. 

 

A professora aposentada Neuza Guerreiro tem 91 anos e não sentiu nenhuma mudança na passagem do tempo. Ela mora sozinha em um apartamento na cidade de São Paulo. A pandemia trouxe restrições severas, mas não mudou tanto sua rotina. “Eu não deixei de fazer as coisas que eu gostava: leio o jornal, leio livros, invento receitas, assisto a concertos. Minha cabeça trabalhou muito”, conta ela. Ainda que não tivesse nenhum compromisso, Guerreiro continuou se vestindo diariamente com o mesmo capricho, usando roupas “de sair” e echarpes coloridas. Também continuou lecionando no curso Resgate de Memória Autobiográfica na USP 60+, um braço da universidade voltado às pessoas idosas. No projeto, ela incentiva outros idosos a escrever. “Senti falta do contato físico, mas não me senti solitária, meus livros me fizeram muita companhia”, diz.

Guerreiro é uma espécie de registradora do tempo. Ela mantém um diário e toda noite escreve em uma folha de papel tudo o que fez no dia. Mistura a descrição das atividades com algumas ponderações sobre arte e literatura. Também faz um breve relato sobre sua saúde e relacionamento social. No fim de cada ano, relê as páginas e faz uma retrospectiva anual. Tem toda a sua vida documentada, ano a ano, desde 1954. Toda a coleção fica guardada e catalogada em grossas pastas de plástico, separadas por ano. “Para mim, o tempo já fica registrado e sentido”, ela conta. A professora aposentada sabe exatamente o que aconteceu em 2020 e 2021, e o trabalho de posicionar as experiências em ordem cronológica lhe traz a sensação de ciclo fechado ao fim de cada ano. Não foi o que aconteceu com o engenheiro naval Nicholas Dutra, aquele que ficou isolado em casa vendo os dias se arrastarem. 

“Eu me perco às vezes pra saber qual é o ano em que as coisas aconteceram”, relata ele. “Eu falo do ano passado como se fosse 2019, de 2021 como se fosse 2020. Neste ano não teve Carnaval e eu passei o último Natal sozinho. Então tudo parece uma coisa só.” Como o isolamento social trouxe a sensação de vivermos sempre o mesmo dia – sem grandes eventos e acontecimentos pessoais marcantes – o cérebro encontra dificuldade para organizar as informações no tempo, explica o neurocientista André Cravo. Sem Réveillon, Carnaval, festa junina, viagem de férias e outros marcadores temporais, não conseguimos distribuir as memórias numa linha que faça sentido.

“Fica uma bagunça, parece que foi tudo meio junto”, diz o cientista André Cravo. “É bem provável que esses anos de 2020 e 2021 fiquem meio nebulosos na nossa percepção temporal.” É daí que vem a estranha e contraditória sensação de que, mesmo que os dias custassem a acabar durante o isolamento, hoje, em retrospectiva, parece que tudo passou rápido demais. Isso porque não conseguimos colecionar experiências pessoais marcantes que nos ajudem a calibrar a passagem do tempo. “Eu imagino que muitos outros pesquisadores vão olhar para isso agora”, diz André Cravo.

Pensar no tempo que passou é ainda mais complicado porque envolve o estudo da memória – um terreno ainda mais instável para os cientistas. A pandemia, em termos de estudo do tempo, trouxe um cenário inédito – estranho, mundial e longuíssimo. É a primeira vez que os cientistas do tempo poderão fazer estudos mais abrangentes. Antes, nas pesquisas clássicas, os voluntários – que geralmente tinham um perfil muito parecido – eram submetidos a ambientes muito controlados, como cavernas ou caixas de laboratório, simulando salas fechadas e isoladas. “Esses estudos eram estudos um pouco enviesados. Afinal, que tipo de pessoa topa ficar isolada, por meses, em uma caverna?”, brinca o neurocientista. “Na pandemia, não importa sua preferência ou personalidade, você teve que ficar em casa”.

É um desafio usar o isolamento social na pandemia para a pesquisa porque os cientistas retiram o aspecto de isolamento completo do laboratório. Em contrapartida, adicionam uma situação de incerteza generalizada num grupo muito maior – e mais representativo – da sociedade. Cravo acredita que a pandemia inaugurou uma época pródiga em estudos sobre psicopatologias, emoções e percepção temporal. “Acho que nos próximos anos a gente vai entender melhor como tudo isso funciona”, diz, esperançoso, o neurocientista. Uma resposta que só o tempo, matéria-prima de sua pesquisa, será capaz de trazer.

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