Ilustração de Carvall
Passado escravista que o mar não levou
Como Rio, Nova Orleans e Bristol buscaram apagar, mas viram reaparecer os vestígios do tempo em que se dedicavam ao tráfico negreiro
Quem perdeu huma negrinha de nação Angola, vestida com um vestido de duquesa, riscado de azul e encarnado (…) huns xinellos nos pés, e hum lenço. A quem esta pertencer, annuncie por este Diário ou dirija-se a rua do Valongo no armasen de escravos novos. (Jornal do Commercio, 04/01/1831)
“O seu trabalho atingiu os objetivos?” Fui surpreendido com a pergunta de Lúcia quando retirava a última placa da exposição Anúncios da Escravidão, em uma manhã de outubro de 2018. Lúcia, uma mulher branca de seus 30 anos, muito magra, os cabelos desgrenhados e os dentes amarelados, era moradora de rua. Ela costumava dormir debaixo de uma figueira no Jardim Suspenso do Valongo, um híbrido de mirante e área de lazer incrustado no Morro da Conceição, em plena Zona Portuária do Rio de Janeiro. Construído em 1906, o jardim em estilo rococó – que abriga um casarão antigo e quatro estátuas em gesso de divindades greco-romanas – serpenteia o lugar onde funcionou, quase dois séculos atrás, o maior mercado de escravos do Brasil, chamado justamente de Valongo, à beira da Baía de Guanabara.
A exposição, financiada via crowdfunding, durou oito semanas e reunia 33 placas coloridas de PVC presas a estacas de madeira. A artista paulista Beá Meira e eu assinávamos a curadoria. Um pouco maiores do que folhas A4, as placas exibiam anúncios de compra, venda ou fuga de escravos, como o da epígrafe que abre este ensaio. Eram reproduções de jornais cariocas da primeira metade do século XIX e sempre citavam o Valongo, em uma linguagem que, a olhos atuais, seria considerada explicitamente racista, embora corrente na imprensa da época. Um anúncio do gênero serviu de mote para um celebrado conto de Machado de Assis, Pai contra Mãe. Nele, um homem branco, Cândido, busca uma escrava fugida, a “mulata Arminda”, em troca de recompensa. Era uma atividade comum no Rio oitocentista, capital colonial e imperial, e principal porto escravista das Américas.
Lúcia acompanhou a mostra desde a instalação, olhando de longe e pedindo cigarros toda vez que eu aparecia para fazer a manutenção do material. O Jardim do Valongo era um lugar sem referências visuais à escravidão quando o visitei pela primeira vez em 2009 e continuou praticamente do mesmo jeito até a exposição, quase dez anos depois. Esse apagamento no cenário urbano do maior mercado brasileiro de escravos foi tema de uma série de textos que publiquei em um blog pessoal e a pedra fundamental de uma extensa pesquisa sobre a ambígua, e frequentemente desconcertante, relação do país com seu passado escravista. Também representou para mim, jornalista paulistano, formado em história e morador do Rio desde 2002, uma oportunidade de me aprofundar na questão do racismo.
O problema não me era indiferente. Em 2004, eu havia coordenado a assessoria de imprensa de uma campanha nacional chamada Onde Você Guarda o Seu Racismo?. Promovida por quarenta organizações não governamentais, envolveu a produção de peças publicitárias exibidas em tevês abertas e a realização de vários debates em escolas públicas cariocas sobre o preconceito ligado à cor de pele. A campanha me impactou profundamente. Pela primeira vez, pude me colocar, diante de mim mesmo, como um homem branco e privilegiado em uma sociedade racista, da qual, até então, não percebia fazer parte nessa condição. Foi, digamos assim, e com a licença do lugar-comum, uma “tomada de consciência”.
Meu envolvimento com o Valongo acabou rendendo uma tese de doutorado no departamento de letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RJ), defendida em março de 2015. O trabalho discorria não apenas sobre o silenciamento em relação àquele lugar, mas também sobre sua revitalização, pois no transcorrer da minha investigação o cais adjacente ao antigo mercado negreiro foi redescoberto arqueologicamente e o próprio jardim suspenso, até então abandonado, passou por uma reforma capitaneada pela prefeitura.
Minha relação com o Valongo me levou, ainda, a morar em Nova Orleans, no Sul dos Estados Unidos, e em Bristol, na Costa Oeste da Inglaterra. Ambas são cidades portuárias que, como a capital fluminense, estão ligadas à chamada “escravidão moderna”, aquela patrocinada por europeus a partir de meados do século XV e que envolveu a migração forçada de 12,5 milhões de africanos para as Américas, sendo que quase 2 milhões deles morreram durante a travessia. Tanto em Nova Orleans quanto em Bristol, me deparei com o mesmo problema que identifiquei no Rio: a memória abafada.
Uma memória que, ironicamente, de tempos em tempos, dá um jeito de invadir o presente com mais intensidade. Foi o que ocorreu em junho do ano passado, quando ativistas derrubaram estátuas de figuras relacionadas ao escravismo e ao colonialismo em diversas cidades dos Estados Unidos e da Europa, a começar justamente por Bristol. As quedas ocorreram em meio às manifestações do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que eclodiram depois do assassinato de George Floyd, um norte-americano negro asfixiado por um policial branco em Mineápolis, no dia 25 de maio.
RIO, 2009
Em junho de 2009, quando conheci o Valongo, procurava um tema sobre o qual escrever e que me levasse a conhecer melhor a cidade onde escolhera viver e em que nasceram meus dois filhos. Eu pensava que minha busca poderia, inclusive, me dar o mote para um possível segundo livro. O de estreia, resultado de um mestrado em ciência política, havia sido sobre corrupção e lavagem de dinheiro. Foi concluído quando eu ainda morava em São Paulo e trabalhava como repórter no hoje extinto Jornal da Tarde. Li pela primeira vez sobre o antigo mercado de escravos ao folhear o Diário de uma Viagem ao Brasil, redigido por uma viajante inglesa chamada Maria Graham, que esteve no país entre 1821 e 1823. Ela descrevia o Val Longo (grafado separadamente no original) como uma “longuíssima rua” e as pessoas colocadas à venda em seus armazéns como “pobres criaturas”. Lembro-me de minha imensa surpresa ao descobrir que um mercado como aquele, e sobre o qual eu nunca ouvira falar, havia funcionado na área portuária carioca. À época, uma busca no Google por Valongo não trazia referências à escravidão brasileira. Remetia somente ao município português de mesmo nome, que fica nas proximidades do Porto.
Em um domingo de manhã, munido de um mapa do século XIX, fui investigar se ainda havia alguma marca do passado escravista no Valongo. O mapa estava reproduzido no livro A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850, da historiadora norte-americana Mary C. Karasch, e trazia a localização do antigo mercado na orla. A “longuíssima rua” — que se chamou Rua do Valongo, depois da Imperatriz e é a atual Rua Camerino — se situa entre os morros da Conceição e do Livramento. Levei um tempo para encontrar o caminho estreito que, da Camerino, leva, por degraus de granito e alguns trechos em paralelepípedo, ao topo do Morro da Conceição, uma das ocupações mais antigas da cidade. Quase do alto, pude vislumbrar, no lado oposto, a Ladeira do Livramento, tal como indicava o mapa oitocentista, e concluir ter o mercado funcionado naquele vale.
Olhando para baixo era possível ver, a uns 200 metros, o que parecia um obelisco no centro de uma pequena praça, lugar a que antigamente o oceano chegava. Aquele trecho do litoral fora aterrado no início do século XX para as obras do atual porto, cujos armazéns ficam a cerca de meio quilômetro dali. Imaginei se tratar de um marco do local onde aproximadamente 700 mil africanos desembarcaram na condição de escravizados, entre meados do século XVIII e 1831, vindos sobretudo das regiões que hoje correspondem a Angola, Congo e Moçambique. Ao descer o morro, porém, me deparei, na praça, com um cenário perturbador. Cercado por uma grade, pichado e com aspecto de abandono, havia um pilar de pedra, não um obelisco, que ostentava uma bola de ferro no topo. Mais tarde, descobri que aquilo fazia parte de um chafariz do século XIX. Uma placa afixada na pequena ruína trazia os dizeres: “Neste local, existiu o Cais da Imperatriz. Em 1843, o antigo Cais do Valongo foi alargado e embelezado, para receber a futura imperatriz Teresa Cristina.” Oriunda da Itália, a princesa desembarcou ali para se casar com o então imperador Dom Pedro II. Naquele momento, o cais vizinho ao já extinto mercado de escravos mudou de nome, assim como o logradouro, que virou Rua da Imperatriz.
Em 2009, me espantou não haver nem sequer uma citação à escravidão, para não falar de um museu inteiro, em um lugar de evidente significação histórica. Na verdade, senti bem mais do que espanto: uma contração de músculos e uma secura na garganta tomaram conta de mim. Dois anos mais tarde, naquele ponto exato, a terra se abriria para as escavadeiras nos primórdios das obras do Porto Maravilha, um megaprojeto urbanístico de revitalização de toda a Zona Portuária. As escavações revelariam ambos os cais soterrados: o da Imperatriz, com suas pedras retangulares, e, 60 cm abaixo dele, o do Valongo, com suas pedras irregulares, chamadas de pés de moleque. Os dois também haviam sido aterrados no começo do século XX durante a construção do porto moderno, que ainda está em operação.
“Nossas ruínas romanas”, declarou o então prefeito carioca Eduardo Paes, em março de 2011, quando as pedras antigas foram desnudadas e um passado voltou à superfície da cidade, como marco turístico, pedagógico e de memória. O próprio prefeito deu a notícia em primeira mão no Twitter: “Cais da Imperatriz e do Valongo. Aqui chegavam os escravos. História que vamos preservar.” Depois de quase duzentos anos de soterramento, o Valongo saía do esquecimento.
No momento da redescoberta, o Rio vivia uma fase eufórica. Em outubro de 2009, a cidade fora escolhida para sediar a Olimpíada de 2016. Pouco antes da escolha, em junho, um raro alinhamento entre os governos federal, estadual e municipal havia permitido o lançamento do Porto Maravilha. O objetivo do megaprojeto era converter os 5 milhões de metros quadrados da região portuária, tida como “degradada”, em um “novo e surpreendente polo de turismo, negócios, moradia e lazer”, conforme a definição de um encarte publicitário veiculado nos jornais. Com investimentos iniciais públicos de 3,5 bilhões de reais, a área se modificou rapidamente.
Veio abaixo o Elevado da Perimetral, um viaduto de concreto com quatro pistas e cinco km de extensão que “sobrevoava” o porto. Inaugurado em 1960, ligava, pelo alto, as zonas Sul e Central da cidade às zonas Norte e Oeste, além de facilitar o acesso à movimentada ponte Rio-Niterói. No lugar da via, surgiram dois túneis e as linhas do VLT, o Veículo Leve sobre Trilhos, espécie de bonde que passou a interligar a região ao Centro. Os antigos galpões do porto, antes encobertos pelo viaduto, agora enfeitam um largo calçadão chamado de “boulevard olímpico”. A área ganhou ainda dois novos museus, o de Arte do Rio, conhecido como MAR, e o do Amanhã, ambos na Praça Mauá, no início da Avenida Rio Branco.
Na região da Saúde, um dos quatro bairros que formam a Zona Portuária, as obras começaram pela construção de uma galeria de água subterrânea. Foi nesse momento que as escavadeiras toparam com as pedras do antigo Cais do Valongo. Embora o prefeito tenha se declarado “absolutamente chocado” com a aparição das rochas e dado à “descoberta” um caráter de acaso, a localização do velho porto já era conhecida. Trinta e cinco anos antes de seu renascimento, o Valongo havia sido, inclusive, tema de um samba enredo do Salgueiro, com letra do compositor Djalma Sabiá. No carnaval de 1976, a escola ficou em quinto lugar entoando versos como: “Seguiu do Cais do Valongo/ No Rio de Janeiro/ Quando o tumbeiro chegou/ O negro se libertou/ Foi o chão cultivando/ Sob o céu brasileiro/ Ôôô.”
O Cemitério dos Pretos Novos também compunha a região. Ali foram enterrados mais de 6 mil africanos que desembarcaram mortos na Baía de Guanabara, depois de atravessarem o Atlântico em péssimas condições (não à toa, os navios recebiam o nome de tumbeiros), ou que morreram antes de sua venda no mercado. Do tamanho de um campo profissional de futebol, o necrotério, que ficou por muito tempo soterrado e esquecido, foi redescoberto acidentalmente em 1996, durante a reforma de uma casa na Rua Pedro Ernesto. Os pedreiros, ao quebrarem o piso da cozinha, encontraram um punhado de ossos. Os donos do imóvel, o casal Petrúcio e Ana Maria de La Merced Guimarães, resolveram, então, transformar a residência em ponto de visitação e sede do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN).
Atualmente, o antigo cais, o cemitério e o Jardim Suspenso do Valongo compõem o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, criado pela prefeitura. Em novembro de 2018, o cais recebeu o título de Patrimônio Mundial da Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A distinção, conferida a outros 22 lugares no Brasil, não impediu que o sítio arqueológico enfrentasse problemas básicos de conservação. Em julho de 2020, o conjunto sofreu um alagamento por causa da quebra de uma bomba de sucção de água, que operava em estado precário de manutenção.
Se eu pudesse criar um verbete sobre o Valongo como um lugar de memória, seria algo assim, em duas entradas:
Valongo. A palavra resulta da contração de “val” e “longo”. Vale longo, literalmente. Conjunto de armazéns e lojas que negociavam pretos novos (escravos recém-desembarcados da África), o mercado funcionou até 1831, quando o comércio transatlântico foi declarado ilegal. O destino dos escravizados eram os engenhos de cana-de-açúcar no interior fluminense, as plantações de café no Vale do Paraíba, as jazidas de ouro de Minas Gerais e os portos distantes de Buenos Aires e Montevidéu, além da própria cidade do Rio de Janeiro, capital colonial e imperial. 1829 foi o ano de pico do comércio negreiro, com 40 mil desembarcados. No Rio, a escravidão estava por toda a parte. Dos 4,8 milhões de africanos trazidos para o Brasil, ao longo de mais de trezentos anos, 1,8 milhão chegou à cidade, superando o número de desembarcados em Salvador (1,5 milhão) e Recife (854 mil), para citar os três principais portos da época. Em alguns momentos do século XIX, metade da população carioca era formada por cativos, o que a transformava numa capital negra. As vendas e leilões de pretos novos ou ladinos (nascidos no Brasil) ocorriam continuamente. Os jornais anunciavam a mão de obra a ser comprada: amas de leite, lavadeiras, engomadeiras e pedreiros, “para todo o serviço”.
É também o lugar de uma memória em movimento. Em uma tarde de 2017, durante uma aula pública do departamento de história da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), realizada a céu aberto nas pedras do cais, um aluno que se apresentou como moçambicano sugeriu que a palavra “valongo”, na verdade, seria o plural do vocábulo banto “malungo” — “camarada de barco; nome com que os escravos tratavam seus companheiros de infortúnio no navio negreiro”, conforme registra a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. O aluno foi o mais aplaudido naquela tarde. (fim do verbete).
Calculei que, em agosto de 2018, transcorridos praticamente dez anos desde que eu conhecera o Valongo, o ato de assentar as placas da mostra que lembrava a escravidão fosse o ponto final de meu envolvimento com aquele lugar. Mas percebi que não quando fiquei sem resposta diante da pergunta à queima-roupa de Lúcia, sobre se eu havia atingido meus “objetivos”. Diz-se que pesquisar é como construir um labirinto para si próprio. Entramos nele com certa inocência e, de repente, queremos sair, mesmo que voando.
NOVA ORLEANS, 2013
“Sou descendente dos rebeldes de 1811”, me disse Leon Waters, enquanto dissolvia mais uma colher de açúcar na xícara de café. Waters, um senhor negro de bigodes grisalhos e óculos, aparentava menos do que seus 64 anos naquela manhã chuvosa de novembro, em uma mesa da lanchonete Ted’s Frostop, em Nova Orleans. Situada na Louisiana, às margens do Rio Mississippi e na boca do Golfo do México, a cidade não é grande. Tem cerca de 390 mil habitantes, 21 vezes menos do que Nova York, onde moram 8,3 milhões de pessoas. É um dos lugares mais negros dos Estados Unidos: 60% de sua população se define como afro-americana. Considerada o “berço do jazz”, Nova Orleans foi arrasada pelo furacão Katrina em 2005.
A cidade só se integrou ao país em 1803, depois que a Louisiana deixou de ser colônia francesa e espanhola. A partir de então, Nola, como os locais a chamam, virou um importante mercado negreiro, condição que abandonou em 1862, quando foi derrotada e ocupada militarmente no início da Guerra de Secessão. O conflito aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Os cativos que chegavam a Nova Orleans tinham como destino primordial as plantations de algodão, índigo e cana-de-açúcar que ficavam à beira do extenso Mississippi. Muitas dessas plantations, cujo formato retangular nos mapas históricos lembram o desenho das capitanias hereditárias do Brasil Colônia, podem ser visitadas nos tempos atuais como pontos turísticos, com suas big houses (casas-grandes) e slave pens (cabanas de escravos), agora reformadas.
Waters foi um dos meus primeiros contatos em Nola, indicado por um professor da Universidade de Tulane, onde estudei em 2013, durante seis meses, enquanto preparava minha tese de doutorado. Espécie de guia turístico, o senhor quis me conhecer pessoalmente antes de realizarmos um tour pelo centro histórico da cidade. O passeio se chamava Histórias Escondidas. Aquela era a segunda vez que eu ia à Ted’s Frostop. O estabelecimento com mesas de fórmica serve lanches e cafés da manhã ao som de Supertramp e Carlos Santana. Uma semana antes, Waters não tinha aparecido no primeiro encontro. Seu neto de 14 anos havia sido assassinado alguns dias antes, ele me disse ao celular, em uma conversa breve e cifrada, tanto pela minha dificuldade com o inglês como pela qualidade ruim da ligação. Assim que nos encontramos, Waters não quis tocar no assunto. Apenas assentiu com a cabeça quando perguntei se estava tudo bem. Vestindo um casaco com a inscrição de “voluntário”, contou que vinha de uma reunião em uma escola. “Lá servem comida fria às crianças, você acredita?”
Ele ouviu, curioso, as razões da minha estadia, em meio a toscos esboços de mapas da África, da América do Sul e dos Estados Unidos, que fiz em guardanapos de papel, com setas indicando rotas de navios. Eu procurava pistas que me ajudassem a compreender melhor alguns sinais encontrados nas escavações do Rio de Janeiro, particularmente os associados à Cruz Bacongo. Trata-se de um símbolo que remonta aos povos originários do antigo Reino do Congo pré-colonial, localizado no atual Norte de Angola. O ícone pode ser visto em cerâmicas de sítios arqueológicos na Carolina do Sul. Também está presente em rituais religiosos de Cuba, no vodu do Haiti e no Valongo. Existiriam sinais semelhantes em algum lugar de Nova Orleans? Waters nada sabia, mas se intrigou. “Há um estudo forense sobre esse objeto? Algo que consiga precisar a data dele?”, perguntou.
Não havia. Naquele ponto, me dei conta de que, até então, eu nunca tinha visto uma Cruz Bacongo, a não ser como tatuagem no braço direito de Celina Rodrigues, a Mãe Celina de Xangô, uma das sacerdotisas que interpretaram para os arqueólogos do Museu Nacional os objetos de matriz africana retirados das escavações do Valongo. Somente mais tarde, em 2015, quando tive acesso parcial às peças encontradas sob a terra, pude me deparar outra vez com o símbolo. Estava talhado em um par de lascas de ossos, se não me falha a memória (cometi o lapso de não o fotografar). Guardados em plástico e manipulados com luvas, os ossos — ou algo que o valha — se encontravam em uma antiga garagem de trens da Central do Brasil, aos pés do Morro da Providência, na região central do Rio. Lá jazem as toneladas de materiais descobertos na Zona Portuária em sua fase de revitalização, entre 2011 e 2013.
Depois de inquirir sobre a minha pesquisa e o que eu procurava em Nova Orleans, Waters passou a falar da revolta de 1811. “Rebeldes de 1811”, ele escreveu no meu bloco de anotações. “Um brasileiro participou. Talvez do Rio, talvez de Pernambuco, não sei.” Agora era Waters quem pedia indicações. Não pude ajudá-lo. Desconhecia aquela revolta na Louisiana de duzentos anos atrás. Fugidos de diversas fazendas nas margens do Mississippi, os escravos se muniram de facões, machados e algumas armas de fogo para resistir aos senhores. Foram derrotados às portas de Nova Orleans, que naquele tempo ainda mantinha seu formato retangular de cidade colonial espanhola. Waters pesquisava o levante em viagens pelo Sul do país. Ele ouvira falar do conflito ainda criança, nos idos de 1950, pela boca de uma prima mais velha. “A revolta não constava dos livros. Histórias escondidas…”, me disse. Por isso, decidiu investigá-la sozinho.
O material que ele recolheu, incluindo uma série de depoimentos, ajudou a compor o livro On to New Orleans! Louisiana´s Heroic 1811 Slave Revolt (Até Nova Orleans! A heroica revolta escrava de 1811), do historiador Albert Thrasher, editado em 1995. Waters me entregou uma cópia xerox da obra alguns dias depois, quando voltamos a nos encontrar para realizar o tour pela cidade. No livro, há uma foto do próprio Waters, de camisa social e gravata, apontando para o lugar onde ficavam as “cabanas dos escravos” na antiga Andry Plantation, fazenda a 40 km de Nova Orleans. De lá saíram, em janeiro de 1811, os cativos rebelados que, durante quatro dias, marcharam em direção à cidade até serem derrotados por tropas oficiais. Cerca de quinhentos negros participaram do motim. Entre eles, alguns vinham do Haiti, país caribenho onde uma revolução escrava (1791-1804) colocou fim ao domínio colonial francês.
O objetivo dos amotinados era conquistar Nova Orleans. No caminho, ocuparam várias plantations. Em uma delas, morava uma mulher escravizada de nome Manette, mãe da tataravó materna de Waters. “Quando eu era bem jovem, minha prima e outros da região falavam daquela revolta e de como as cabeças dos rebeldes foram cortadas e postas em estacas ao longo do rio”, relembrou o guia. O livro de Thrasher exibe uma foto em que a prima de Waters carrega uma bolsa na mão esquerda. A legenda diz: “Clara ‘Kizzie’ Duncan (18 de outubro, 1880 – 22 de fevereiro, 1977), uma das (…) que passaram adiante a orgulhosa história da revolta de 1811.” O episódio é reconhecido atualmente como um dos maiores levantes escravos dos Estados Unidos.
Somente quando Waters me conduziu por seu tour é que pude compreender que a expressão “histórias escondidas” também tinha a ver, na visão dele, com algo mais específico: as poucas referências visuais a um passado tão cruel como o que provocou a rebelião de 1811. Na Rua Chartres, que se estende pelo chamado Quarteirão Francês, antigo núcleo colonial de Nova Orleans, o guia se deteve diante de uma fachada. Na parede, mal se distinguia a inscrição ‘& Co’. Tratava-se, segundo ele, dos restos de um anúncio colocado por uma firma que negociava escravos naquela mesma rua, onde inúmeras casas do gênero operaram durante o século XIX.
O passeio começou e terminou debaixo de uma árvore na Praça Congo, que fica dentro do Parque Louis Armstrong e marca o local onde os escravos se reuniam aos domingos para gozar suas folgas (há um relato oitocentista sobre um espaço semelhante no Campo de Santana, no Rio de Janeiro). Viajantes da época presenciaram ali cenas de danças e trocas de produto, no “estilo de mercados do Oeste da África”, conforme registra o livro Congo Square, African Roots in New Orleans (A Praça Congo, raízes africanas em Nova Orleans), da historiadora negra Freddi Williams Evans.
O termo “Congo”, porém, é controverso. Nos Estados Unidos do século XIX, foi usado frequentemente com sentido pejorativo para designar qualquer pessoa negra vinda da África. Segundo Evans, não se sabe se, em relação à praça, o termo permaneceu por força de um estereótipo ou como referência aos muitos africanos que, de fato, vieram dos territórios ocupados pelo antigo Reino do Congo. Seja como for, em 2010, a prefeitura contratou o escultor Adewale Adenle, norte-americano de origem nigeriana, para confeccionar um monumento que remetesse àquele passado. Na escultura de bronze, quinze mulheres e homens negros, acompanhados de uma criança, cantam, tocam e dançam a bambula, ritmo de origem africana comum nos Sul dos Estados Unidos e nas Antilhas. Em uma placa, lê-se que as celebrações realizadas na Praça Congo fundam “as tradições musicais únicas de Nova Orleans, incluindo o jazz”.
BRISTOL, 2020
“Fuck off slave trader!” “Vá se foder, negociante de escravos!” Em janeiro de 1998, a pichação em tinta vermelha maculou a estátua de Edward Colston (1636-1721) na área central de Bristol, na Costa Oeste da Inglaterra. Foi o primeiro de uma série de ataques que o monumento viria a sofrer ao longo das últimas duas décadas. Certa manhã, o notório comerciante inglês apareceu acorrentado a uma bola de ferro. Em outra ocasião, em 2007, uma fina mancha de tinta vermelha sugeria sangue na placa comemorativa que ocupava a base do pedestal. Era uma intervenção atribuída ao artista Banksy, morador da cidade.
Até que no dia 7 de junho de 2020, um domingo, em meio à onda mundial de protestos que se seguiu ao assassinato de George Floyd, uma multidão se formou ao redor da estátua e a derrubou com a ajuda de cordas. As cenas da rebelião viralizaram na internet. Em um dos vídeos, de um minuto, vê-se que, logo após a queda do monumento, um homem negro subiu ao pedestal, vibrando. Na sequência, deu a mão a um segundo homem. Ambos comemoraram no pódio com o povo.
Já no chão, a peça de bronze, erigida em 1895, foi rolada e encontrou seu destino nas águas dos canais que cortam o Centro da cidade, e de onde acabaria içada três dias depois pela prefeitura, que anunciou a intenção de acomodá-la em um dos museus locais. A queda de Colston revelou-se a primeira de várias derrubadas de monumentos ligados ao passado colonial e escravista do Primeiro Mundo. Em Londres, o Museu das Docas retirou de sua entrada uma estátua de Robert Milligan, outro comerciante de escravos. Em Antuérpia, na Bélgica, veio abaixo uma escultura de Leopoldo II, monarca ligado à sangrenta colonização do Congo entre o fim do século XIX e o início do XX. Nos Estados Unidos, caíram imagens do navegador Cristóvão Colombo, bem como de diversos generais “confederados” do Sul, em cidades como Richmond, Nashville, Montgomery, Miami e Boston.
Situada perto do Oceano Atlântico, na confluência dos rios Avon e Frome, Bristol foi, durante as três primeiras décadas do século XVIII, o principal porto inglês envolvido no comércio transatlântico de escravos. Dos 12,5 milhões de negros levados forçadamente para as Américas ao longo de quatro séculos, cerca de 3,3 milhões estavam em navios britânicos. Ao lado de Londres e Liverpool, Bristol formou um dos vértices do chamado “comércio triangular do Atlântico Norte”.
Os navios saíam dos portos ingleses carregados de tecidos e outros produtos manufaturados em direção à costa ocidental africana, uma faixa de terra que se estendia do atual Senegal até Angola. Lá as mercadorias eram trocadas por escravos, que rumavam para o Caribe e a América do Norte, de onde as embarcações voltavam cheias de riquezas coloniais, como açúcar, tabaco e algodão. Completava-se, assim, após o período de um ano ou mais, o comércio triangular. O esquema perdurou por dois séculos, até 1807, quando os próprios ingleses aboliram o “infame negócio”, primeiro em suas colônias e depois em todo o Ocidente. Em um livro clássico, Capitalismo & Escravidão, o historiador Eric Williams pontua que o comércio escravista triangular gerou parte significativa do capital que possibilitou, no século XIX, a Revolução Industrial britânica. Gerou também fortunas pessoais, como a de Colston.
Ele era considerado um cidadão exemplar, que deixou largas somas em dinheiro para hospitais, igrejas e escolas, algumas das quais carregam seu nome até hoje. Na estátua derrubada, o rico comerciante veste uma túnica do século XVII, tem os cabelos compridos e exibe um olhar contemplativo enquanto segura um bastão, com uma das mãos apoiada no queixo. “Um dos mais virtuosos e sábios filhos desta cidade”, lê-se na placa comemorativa que, certamente por ser difícil de retirar, continua a enfeitar o pedestal, agora vazio, do monumento. Praticamente ninguém contestou a frase até que, em 1998, durante uma consulta pública para uma exposição em um museu local, espalhou-se a notícia de que o “virtuoso filho da cidade”, além de ser um filantropo, acumulara boa parte de sua fortuna graças ao tráfico negreiro. A história simplesmente não constava do repertório britânico habitual. Estava obscured (obscurecida), segundo Madge Dresser, historiadora e professora da Universidade de Bristol.
A docente é autora de vários livros sobre a cidade, entre eles Slavery Obscured (Escravidão obscurecida). A obra, lançada em 2001, traz na capa a imagem de uma pintura a óleo de 1844 intitulada A Morte de Edward Colston, que o retrata moribundo, deitado em uma cama e amparado por um sacerdote anglicano. De joelhos, uma mulher negra lhe beija a mão. É o tipo de representação benevolente que a historiadora define como parte do apagamento dos reais significados que a escravidão teve para a Inglaterra, cujos livros, museus e currículos escolares costumam valorizar o papel do país na libertação dos cativos, mas se esquecem dos duzentos anos precedentes de lucros advindos do escravismo colonial.
Em março de 2020, me apresentei à professora como um pesquisador que estuda a escravidão em cidades portuárias do Atlântico. Falei do Rio de Janeiro, do Valongo, do cemitério de escravos, de Nova Orleans. “Busco pistas para continuar o trabalho”, expliquei. Como tem certa dificuldade de audição, Dresser pediu que me aproximasse. Rabiscou notas enquanto tomávamos uma sopa na cafeteria do centro comunitário de Saint Pauls, bairro de população majoritariamente negra, na região central de Bristol. Ela ouviu com atenção tudo que lhe contei. “Um autêntico trabalho de detetive”, me disse. Aquele seria meu último encontro na cidade, onde fiquei por três meses, dando prosseguimento à minha investigação, agora em uma espécie de pós-doutorado independente.
Ela anotou os termos “Valongo”, “Cemitério dos Pretos Novos” e “Rio de Janeiro”. Perguntei a respeito do que me parece ser um crescente interesse do público inglês pelo passado escravista da Grã-Bretanha. A Universidade de Bristol, por exemplo, anunciou em 2019 seu primeiro curso sobre a história do escravismo na cidade, ministrado por uma professora negra de origem camaronesa, Olivette Otele. O tema já havia atraído a atenção nacional em 2007, ano do bicentenário da abolição do comércio escravista transatlântico. A efeméride levou a uma enxurrada de lançamentos de livros, exposições e documentários de tevê. Naquela ocasião, foi inaugurado o Museu Internacional da Escravidão, em Liverpool, que ocupa um pavilhão nas docas centrais da cidade.
“Tudo isso é resultado de muito ativismo”, avaliou a pesquisadora. Ela mencionou o Rhodes Must Fall (Rhodes deve cair), movimento de estudantes da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Em 2015, os jovens conseguiram retirar do campus uma estátua de Cecil Rhodes (1853-1902). O magnata inglês, que explorava a mineração de diamantes e ouro no continente africano, virou símbolo tanto do colonialismo como do racismo. O movimento foi seguido por alunos de Oxford, na Inglaterra, onde também há uma estátua de Rhodes, que continua em pé, apesar dos protestos.
A professora ajudou a organizar, em 1999, a exposição A Respectable Trade? Bristol & Transatlantic Slavery (Um negócio respeitável? Bristol e o comércio escravista transatlântico). Instalada no museu de arte local, a mostra foi a primeira a reunir um vasto acervo sobre a participação da cidade no tráfico negreiro. Depois de atrair 160 mil visitantes, o evento se transferiu para o M Shed, museu na área portuária que conta a história de Bristol, onde se tornou permanente. Nas discussões públicas que precederam essa exposição, começaram a circular as informações sobre a origem da fortuna de Colston que motivaram a pichação “fuck off slave trader!” na estátua dele.
Em anos posteriores, no entanto, as críticas ao monumento estiveram longe de ser consensuais. Uma enquete realizada em 2014 pelo jornal Bristol Post mostrou que, enquanto 44% dos moradores da cidade eram favoráveis à remoção da escultura, outros 56% não eram. Em fevereiro de 2018, uma comissão foi nomeada a fim de elaborar uma nova redação para a placa que identifica a estátua. Dresser participou do grupo e sugeriu incluir na placa a informação de que o patrono de Bristol, além de ter sido parlamentar pelo Partido Conservador, exerceu “papel ativo na escravização de 84 mil africanos (incluindo 12 mil crianças), das quais 19 mil morreram na rota para o Caribe e a América”.
Um membro local do partido contestou o dado sobre a filiação do comerciante à legenda. A associação comercial, que gerencia uma escola, um hospital e um asilo com o nome de Colston, também fez objeções ao texto. Em determinado momento da controvérsia, o prefeito de Bristol, Marvin Rees, que é negro, interveio. Ele declarou que reabriria a consulta sobre a redação da placa para que toda a comunidade pudesse participar do debate. Sem consenso, o texto “corretivo” não havia encontrado seu ponto final até a eclosão do Black Lives Matter.
No dia em que a estátua veio abaixo, diversos manifestantes tiveram a mesma ideia: subir no pedestal vazio. Entre eles, estava Jen Reid, estilista negra que vestia uma jaqueta, uma saia com um cinto de fivela larga e uma boina. Ela posou para fotos com o punho direito erguido. “Não sou ativista. Um amigo me disse ‘sobe lá!’, e eu subi. Foi um momento poderoso”, diria mais tarde à rede de tevê Channel 4. A imagem da jovem no pedestal viralizou e chamou a atenção do artista gráfico Marc Quinn, de Londres, que decidiu fabricar uma estátua em resina para reproduzir a cena que viu nas redes sociais e considerou “icônica”. Feita em tamanho natural, com a ajuda de uma impressora 3D, a nova escultura foi colocada no pedestal em 15 de julho de 2020. No dia seguinte, a prefeitura removeu a estátua da moça aguerrida e afirmou, em nota, que não havia dado permissão para aquilo e que caberá à população de Bristol decidir sobre quem será homenageado no lugar de Colston.
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