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questões ambientais

Passarinho vira radar de poluição

Pesquisadores usam sangue de pardais para medir estrago de fumaça de carros e caminhões em seres vivos

Bernardo Esteves | 13 set 2019_14h40
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Os pardais carregam no sangue as marcas da poluição emitida pelos carros e caminhões que circulam pelas cidades brasileiras. Isso foi o que concluíram pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e da Universidade de Reading, no Reino Unido, num estudo feito em Rondonópolis, cidade de 230 mil habitantes que é um importante ponto de chegada e distribuição da produção de soja no Brasil. “As consequências da falta de planejamento de transporte no Brasil estão escritas no sangue dos pardais”, diz o título do artigo que apresenta os resultados do estudo, recém-publicado na revista Urban Geography.

Os efeitos da poluição podem ser notados em duas características fáceis de medir no sangue dos animais. O gás carbônico produzido pela queima dos combustíveis provoca um aumento na quantidade de hemoglobina, as moléculas presentes nos glóbulos vermelhos que transportam o oxigênio para os demais tecidos do corpo. Além disso, a exposição das aves ao material particulado emitido pelos veículos também afeta a quantidade de heterófilos, um tipo de glóbulos brancos, as células de defesa do sangue.

Os pardais são pássaros pardos pequenos que vivem em meio urbano, alimentando-se de restos de lixo encontrados junto às casas. Por serem sedentários, são ideais para o estudo da poluição, explicou o ecólogo Fabio Angeoletto, que idealizou a pesquisa. Como o raio de deslocamento dos pardais é de no máximo 500 metros, é possível ter certeza de que alterações observadas em laboratório se devem a mudanças ambientais no bairro em que eles circulam. “Se o local estiver poluído, vai acusar no sangue”, disse Angeoletto.

Quem conduziu os experimentos foi Deleon da Silva Leandro durante seu mestrado em geografia pela UFMT. Leandro – um biólogo de 34 anos nascido em Rondonópolis – capturou cerca de 240 pássaros em quatro localidades diferentes. Duas delas eram áreas verdes pouco afetadas pela poluição, dentro da cidade e no limite da Zona Rural. As outras duas eram pontos críticos: um no polo industrial de Rondonópolis, voltado para o processamento de grãos, e o outro no entroncamento de duas estradas federais, a BR-163 e a BR-364, onde o tráfego diário é de 26 mil veículos.

Situada no Sul do Mato Grosso, Rondonópolis é um ponto de convergência ao qual chegam caminhões trazendo soja de todo o estado. Ali fica o terminal ferroviário de onde os grãos são despachados até os portos de Santos ou Paranaguá, para serem exportados. Mas a poluição se deve também ao crescimento explosivo da frota de carros e motos em Rondonópolis. Enquanto a população da cidade aumentou 25% entre 2005 e 2015, impulsionada pelo agronegócio, o número de veículos quase triplicou. O padrão se repetiu em todo o país, como fruto dos incentivos fiscais dados pelos governos Lula e Dilma à indústria automotiva. “Quem pode comprar uma moto prefere isso a usar o transporte público de Rondonópolis, que é horroroso”, disse Angeoletto.

Para capturar os pássaros, Deleon da Silva Leandro ia a campo equipado com uma rede especial. A cada vez que pegava um pardal, ele pesava e media o animal e coletava uma amostra de seu sangue, antes de soltá-lo. “Eu tentava não passar mais de cinco minutos manipulando a ave”, disse o biólogo. Isso não impediu que sua presença fosse notada, e mais de uma vez ele foi abordado pela polícia. “Alguém me denunciou achando que eu estava fazendo um ritual de magia negra”, contou. “Houve também um cidadão que me abordou querendo saber se eu estava fazendo maldade com os bichos.”

Os resultados confirmaram a hipótese dos pesquisadores: no sangue dos pássaros capturados na região industrial e junto às estradas foi possível notar as assinaturas típicas da exposição à poluição. Os resultados mais alarmantes foram obtidos no entroncamento rodoviário: no sangue das aves coletadas ali, havia 24% mais hemoglobina e 50% mais heterófilos, em comparação com os animais que viviam nas áreas verdes.

A ideia de usar os pardais para monitorar a poluição urbana é do biólogo José Ignacio Aguirre, da Universidade Complutense de Madrid. Convidado por Angeoletto, o espanhol passou uma temporada em Rondonópolis e treinou os pesquisadores brasileiros para capturar pardais e tirar seu sangue. O protocolo experimental foi simplificado para que pudesse ser feito com os equipamentos disponíveis no campus de Rondonópolis da UFMT. “Você pega a gota de sangue, faz a lâmina, põe no microscópio e conta”, resumiu Angeoletto.

O ecólogo tem 49 anos e nasceu em Maringá, no Paraná – uma cidade que, como Rondonópolis, é considerada média, ou seja, com população entre 100 mil e 500 mil habitantes. Um em cada quatro brasileiros vive em cidades como essas (são 54 milhões de pessoas no total). As pesquisas de Angeoletto buscam soluções para tornar essas cidades mais amigáveis para a biodiversidade. A gestão ambiental desses municípios costuma ser precária, disse o pesquisador. “Há poucos quadros qualificados nas secretarias de meio ambiente e baixa capacidade de formular políticas públicas.”

Angeoletto defende que a coleta de sangue dos pássaros se torne uma alternativa para avaliar a qualidade do ar. “Há pardais em praticamente todas as cidades do Brasil, mas só 11% dos municípios médios têm uma estação de monitoramento da atmosfera.” O ecólogo notou que os indicadores medidos no sangue das aves permitem acusar a presença dos poluentes, mas não determinar sua quantidade. “Isso nos basta para confrontar a prefeitura e mostrar que a poluição em Rondonópolis é um problema que precisa ser abordado.”

Em novembro, o pesquisador vai apresentar os resultados a autoridades municipais numa audiência pública solicitada pelo Ministério Público de Mato Grosso, que ajudou a financiar o estudo com 20 mil reais tirados de um fundo arrecadado com multas ambientais.

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