Perigo à vista! – razões de sobra para nos preocuparmos
Ancine atravessa a crise como se navegasse em águas tranquilas, com medidas insuficientes sobre os efeitos da pandemia
Na lista de 62 filmes que teriam moldado a arte do documentário entre 1930 e 2020, recém-publicada por Richard Brody, nenhum é brasileiro. A omissão desmerece mais o crítico da revista The New Yorker do que documentários feitos no Brasil. Mas temos questões mais importantes com as quais nos preocuparmos, mesmo sem deixar de ser chocante ver confirmada outra vez nossa irrelevância no cenário internacional.
Mais relevante do que filmes brasileiros estarem ou não entre os selecionados por Brody é a possibilidade de que a segunda onda da pandemia, se não acontecer antes, venha a ocorrer, no Brasil, a partir de março de 2021, à medida que o inverno se aproximar. Quem fez essa advertência foi a infectologista Rosana Richtmann, do Hospital Emílio Ribas, em entrevista recente a José Roberto Burnier, na GloboNews. Perspectiva nada animadora diante dos meses que temos pela frente até lá. Mesmo com a tendência de queda no número de óbitos nos últimos dias, o patamar em que continuam a ocorrer é alto. Até aqui acumulamos mais de 153 mil mortes e passamos de 5,2 milhões casos de Covid-19 diagnosticados, e a população restante, de mais de 200 milhões, continua sujeita a ser contaminada. Isso sem menosprezar a dificuldade enfrentada durante sete meses de isolamento, as incertezas do país, e o deboche do traficante e do senador – um sumiu após obter habeas corpus; o outro, de quem o capitão agora tenta se distanciar, escondeu dinheiro na cueca.
Na área do cinema, preocupa sobremodo a paralisia da produção desde que os diferentes mecanismos de fomento à atividade, geridos pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), foram interrompidos com a posse de você sabe quem na Presidência da República. Estamos vivendo situação paradoxal em que há participação marcante e numerosa de produções brasileiras nos festivais de cinema realizados no país, alguns desses filmes sendo exibidos também em festivais no exterior, ao mesmo tempo em que se aproxima o momento no qual não haverá mais títulos inéditos para estrear, o que poderá acontecer a partir de 2021 e ainda mais nos anos seguintes.
Diante da gravidade desse quadro, causa espécie o diretor-presidente substituto da Ancine, Alex Braga, ter dado ênfase a aspectos pessoais e administrativos do início de sua gestão, ao falar em 15 de outubro no painel de abertura da Expocine 2020 – “foi um período de atuação solitário”; “houve uma ênfase nas decisões colegiadas e uma potencialização dessa troca de informações, experiências e opiniões entre os diretores”, Braga declarou.
Segundo o relato de Mariana Toledo na publicação online Tela Viva (15/10), Braga reconheceu “a importância do Conselho Superior de Cinema como espaço de debate; do Comitê Gestor do FSA como ambiente de centralização de decisões e definições de metas e resultados e diretrizes específicas das políticas de financiamento, além do papel fundamental da Secretaria do Audiovisual e da Secretaria Especial da Cultura”.
Por louvável que seja o reconhecimento dessas instâncias formuladoras e decisórias, chama atenção a falta de sentido de urgência das colocações iniciais de Braga, face à asfixia da produção causada de forma deliberada pelo governo federal. A Ancine vem atravessando a crise como se estivesse navegando em águas tranquilas, tomando uma medida insuficiente com relação aos efeitos da pandemia e sendo omissa diante da crise do setor produtivo.
Ao deixar de questionar o acúmulo das atribuições de regulação e fomento por parte da Ancine e, pelo contrário, acatar essa duplicidade como se fosse inalterável, Braga desconsidera uma das principais razões de ineficiência da Agência, que não regula, como deveria, nem fomenta, como seria preciso.
A neutralidade burocrática de Braga é alarmante. Ele admite que a Ancine “é uma Agência que tem como premissa o estímulo à produção audiovisual, mas que tem tido dificuldade de dar conta desse número tão expressivo de projetos”. Haveria um passivo de prestação de contas de 10 mil projetos audiovisuais – “e, apesar das medidas adotadas pela Agência, esse passivo segue em curva de crescimento.” Faltou esclarecer que a responsabilidade por esse passivo é da própria Ancine, cuja diretoria vem tratando problema dessa gravidade com medidas administrativas que demonstraram ser ineficazes, mantendo paralisada, em consequência, a atividade de fomento.
Segundo Toledo, Braga afirmou ser importante fazer uma avaliação sobre quais seriam as metas desejadas para a atividade em termos de audiência, ingresso e ocupação de espaço e “um processo de remodelagem da política pública do audiovisual para que a gente dê conta de uma perspectiva de um horizonte virtuoso”, dando a entender, escreveu Toledo na Tela Viva “que sua visão prevê uma política baseada em métricas e resultados”.
Colocações como essas são alarmantes. Ouvir isso do diretor-presidente substituto da Ancine, a esta altura da história do cinema brasileiro, é desanimador. Ou se trata de uma cortina de fumaça para ocultar políticas tenebrosas, como as que este governo é capaz de pretender implementar, ou são palavras vazias de alguém que acredita ter inventado a roda. Há um conhecimento acumulado sobre essas questões ao longo de pelo menos quarenta anos que está sendo ignorado, enquanto servidores da Ancine, alçados a diretores da Agência, parecem acreditar que estão dizendo algo novo e propondo soluções originais para problemas crônicos. Não se trata de “fazer política audiovisual olhando pelo retrovisor”, como Braga insinua, trata-se de não perder tempo chovendo no molhado.
A respeito de fomento, o que Braga tem a dizer é que “fizemos um processo de reestruturação dedicado à capacidade operacional da Agência”. Como sempre, a ótica é a da reorganização administrativa. Enquanto isso, o cinema brasileiro agoniza.
A respeito do efeito da pandemia no cinema, o que o diretor-presidente substituto tem a declarar é que a Agência abriu uma linha de crédito emergencial para atender o parque exibidor – “Do ponto de vista dos pequenos exibidores, tivemos um cuidado e uma preocupação de que logo no lançamento do programa houvesse um auxílio financeiro específico a eles.” Sem desconsiderar o prejuízo havido com o fechamento das salas de cinema, fica claro que a Ancine atuou como se fosse um braço auxiliar do parque exibidor, ignorando a gravidade da crise enfrentada por empresas produtoras e pela mão de obra profissional, técnica e artística, que trabalha na realização de filmes.
Ao ter notícia do mais recente filme sobre Glauber Rocha (1939-81) e depois, ao assistir a Glauber, Claro (2020), de César Meneghetti, dois meses após ter visto Antena da Raça (2020), de Paloma Rocha e Luís Abramo, centrado também em Glauber, ocorreu-me acrescentar algumas palavras às de Paulo Emílio (1916-77), escritas em dezembro de 1975 e já citadas aqui, na coluna de 29 de julho: “Glauber tornou-se uma personagem mágica de quem não é fácil ser contemporâneo e conterrâneo. Ele é uma de nossas forças, e nós, Brasil, a sua fragilidade.” Eu acrescentaria agora que tampouco é fácil ter sobrevivido a Glauber e assistir à visão retrospectiva de Meneghetti, diretor da geração seguinte à sua, centrada em Claro (1975), um de seus filmes menos conhecidos. Em Glauber, Claro (2020), é registrado o encontro, promovido em Roma para ser gravado, de um grupo de participantes da filmagem realizada em meados da década de 1970.
Das poucas cenas de Claro incluídas no documentário, filme ao qual nunca assisti, a impressão que resta não é animadora. De modo geral, os depoimentos colhidos por Meneghetti são complacentes, com algumas intervenções lúcidas, e o clímax constrangedor da celebração nostálgica é a entrevista em que Glauber dá vazão, sem meias palavras, à sua fúria, no Festival de Veneza, do qual participou com Idade da Terra, em 1980, sem receber prêmio. Na diatribe feita na Avenida do Lido, ele protesta contra “os critérios meramente comerciais de premiação”, chama os diretores premiados – John Cassavetes e Louis Malle – de serem de “segunda classe”, e acusa o júri de “ser pago pela Columbia, pela Gaumont e pela RAI…”. Presidido por Gillo Pontecorvo, faziam parte do júri, entre outros, Umberto Eco, Suso Cecchi D’Amico, Michel Ciment, Andrew Sarris e Margareth Von Trotta. Para Glauber, “esta premiação é uma vergonha. Vergonha para a Bienal de Veneza, vergonha para o Partido Comunista, o Partido Socialista e a intelectualidade italiana” – é um Glauber raivoso e destemperado que não gostaria de guardar na memória.
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Glauber, Claro foi exibido sábado passado (17/10) no Festival de Roma e estreará, no Brasil, na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa amanhã, 22 de outubro, e vai até 4 de novembro, realizada na maior parte online para todo o Brasil. Em dezembro, Glauber, Claro estreará no canal Curta!. A programação inclui 198 filmes de 71 países, apresentados nas seções Perspectiva Internacional, Competição Novos Diretores, Mostra Brasil e Apresentação Especial. Participam da Mostra Brasil dezesseis filmes. Entre outros, #eagoraoque, de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald; Ana. Sem título, de Lucia Murat; Luz Acesa, de Guilherme Coelho; Nas Asas Da Pan Am, de Silvio Tendler; O Lodo, de Helvécio Ratton; Sobradinho, de Marília Hughes e Cláudio Marques; e Verlust, de Esmir Filho.
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Na próxima terça-feira, 27 de outubro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Paloma Rocha e Luís Abramo, codiretores de Antena da Raça, exibido no encerramento da 9ª edição de Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba (15/10), na Mostra Cannes Classics, no Festival Lumière, em Lyon (10 e 18/10) e que terá nova exibição em novembro, no Rencontres Cinématographiques de Cannes, entre 23 e 26 de novembro. O documentário recupera diálogos, excertos, cenas dos filmes e entrevistas de Glauber Rocha. O acesso à conversa de terça-feira, dia 27, poderá ser feito através do link https://youtu.be/dPkt9eBRN0s.
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