Petismo, antipetismo e o Centrão
Confusão entre polarização ideológica e polarização eleitoral faz com que partidos e políticos de direita sejam erradamente classificados como de centro
O título confunde, propositalmente, duas ideias distintas. Uma é a ideia de polarização ideológica, a outra é a ideia de polarização da disputa eleitoral, que pode ou não ser definida em termos ideológicos. Essa confusão tem nos levado a associar políticos e partidos que são claramente de direita a uma ideia de “centro”. É evidente que não cabe a ninguém tentar ditar o uso de termos na linguagem corrente. Mas não devemos ignorar que a linguagem não é inócua. Ela contribui para a normalização de ideias e para estratégias de marketing.
“Ideologia” é um termo contestado que tem usos e conteúdos diferentes em distintas tradições intelectuais. Do ponto de vista puramente empírico, que eu exploro aqui, tem prevalecido a noção de que ideologia é uma maneira de representar as diferentes posições que indivíduos (e partidos) podem ter nos mais variados temas políticos. Imaginemos um espaço político definido por temas diferentes que são relevantes para uma dada sociedade e que, para simplificar, em cada tema pudéssemos ter uma posição a favor e outra contra (por exemplo: taxação progressiva, aumento de gastos sociais, eliminação de tarifas de importação, aborto, porte de armas, laicidade da educação etc). Mesmo num exemplo simples onde existissem apenas dez temas relevantes, seria possível que existissem 1.024 perfis de preferências distintas. No mundo real a quantidade de temas políticos relevantes é muito maior, e cada um comporta muito mais do que apenas uma posição a favor e outra contra. Num mundo assim, seria quase impossível descobrir “quem me representa”. As demandas cognitivas sobre indivíduos e partidos seriam insuportáveis.
Mas o mundo não é assim. Por inúmeros mecanismos diferentes, na prática, a posição em um tema costuma prever a posição em outros, mesmo que eles não sejam obviamente relacionados. Na maioria das vezes, uma única “dimensão” ideológica resume bem, ainda que não perfeitamente, todas as diferentes posições que de fato existem. Por razões históricas e práticas, tendemos a descrever essa dimensão como uma reta horizontal conectando a esquerda e a direita. O conteúdo substantivo exato de cada campo varia entre sociedades e ao longo do tempo, mas posições à esquerda estão classicamente ligadas a apoio a maior taxação, mais gastos públicos, mais intervenção do Estado na economia, enquanto posições à direita representam o contrário. O centro, nesse esquema, é sempre residual, caracterizado por diferentes combinações de preferências em cada tema.
Quando é usada como adjetivo, ideologia muitas vezes assume uma conotação negativa, particularmente quando é contrastada com “pragmático”, um outro adjetivo muito em voga mas não muito bem definido para abarcar tanto quem não tem posição quanto quem muda de posição com facilidade. Por vezes, no entanto, ser ideológico é contrastado com a ideia de “fisiologismo”, e adquire, assim, uma conotação mais positiva. Independentemente do uso da palavra, a ideologia é uma heurística útil já que é impossível para qualquer eleitor ou mesmo para políticos determinar ex-ante todas as suas preferências em todos os temas atuais e futuros.
Existem sociedades ou momentos históricos em que os múltiplos temas do “espaço político” não são redutíveis a apenas uma dimensão. Num exemplo hipotético, poderíamos imaginar um espaço ideológico composto pela clássica dimensão econômica esquerda-direita, já mencionada, e uma outra dimensão definida pela clivagem entre seculares e religiosos. Num espaço assim, poderíamos ter seculares de direita e de esquerda, assim como religiosos de direita e de esquerda. Com múltiplas dimensões, há algum espaço de negociação. Os seculares de esquerda podem se aliar com os seculares de direita em alguns temas, e com os religiosos de esquerda em outro, por exemplo. Com mais dimensões independentes, as possibilidades (e os custos) de negociação aumentam.
Há diversos processos que podem gerar polarização ideológica. Mesmo num espaço unidimensional, as posições da maioria da população podem tender aos extremos. Isso seria o caso, por exemplo, de uma sociedade na qual a tradicional dimensão econômica esquerda-direita é a única relevante, mas onde as posições se radicalizam. Parte da população migra para posições completamente estatizantes, com expropriação dos ricos e alta redistribuição, enquanto outra parte para posições completamente privatistas e contrárias à taxação. Esse “esvaziamento do centro” ocorreu no Chile de Allende e, de certa forma, no Brasil de Jango, e, para tentar evitá-lo, grande parte dos países latino-americanos instituíram alguma variação de regra de “segundo turno”, que sabidamente incentiva posições mais moderadas.
As disputas ideológicas, no entanto, também podem se tornar mais perceptíveis e irreconciliáveis quando diferentes dimensões políticas se sobrepõem completamente. Retomando o exemplo hipotético anterior, isso aconteceria se todas as pessoas de esquerda tendessem ao secularismo e as de direita a preferências de cunho religioso — um processo que pode ser causado tanto por afinidade substantiva quanto, mais comumente, por estratégias de elites políticas e incentivos eleitorais. A consequência é que posições em um tema passam a prever quase completamente as posições em todos os temas relevantes. Essa é a realidade, hoje, dos EUA, onde basta perguntar para uma pessoa se ela é a favor ou contra o aborto para saber em quem ela vota e o que ela pensa sobre qualquer outro assunto. Isso não era assim há 40 anos.
Esse tipo de polarização pela sobreposição de temas também pode ocorrer quando “novos temas” (i.e. temas que não eram politizados) se tornam politicamente relevantes. No Brasil, tudo indica que o espaço político é bastante unidimensional. Questões identitárias, religiosas e de costumes não registravam como relevantes para a política eleitoral e partidária até a virada do século. A partir de então, foram incorporadas de forma a acentuar as diferenças entre esquerda e direita. O DEM, por exemplo, nunca havia sido um partido “moralista”, mas vimos recentemente um candidato como Eduardo Paes, que tinha posições progressistas porém não muito conspícuas nos costumes no início da sua carreira, “ser forçado” a assumir posições bem mais conservadoras. Em outro exemplo interessante: o PT, que nos anos 1980 e 1990 decidira não “fechar questão” contra o aborto por conta da importante “ala católica” do partido, suspendeu em 2009 deputados que era militantes contra o aborto . Ambos os movimentos ilustram tanto a crescente importância de novos temas quanto a sua sobreposição à tradicional clivagem esquerda-direita. Hoje, temas de identidade de gênero e racial são apoiados pela esquerda, enquanto identidades “cristãs” e a “preservação da família” estão alinhadas com a direita. Como nesses temas há menos espaço para “meios-termos” do que em questões econômicas, é mais difícil lidar com a polarização.
Esse longo prelúdio serve de introdução ao mapa ideológico dos partidos brasileiros, que é fruto das Pesquisas Legislativas Brasileiras, realizadas com congressistas há três décadas. O trabalho foi iniciado por Timothy Power (Oxford) em 1990, com quem colaboro desde 2009. Combinando a autoclassificação ideológica dos congressistas com a forma pela qual classificam todos os demais principais partidos, chegamos a uma escala ideológica que é compartilhada pela classe política. Inúmeras análises mostram também que essas estimativas preveem preferências dos congressistas em distintos temas substantivos como, por exemplo, nível de intervenção do Estado na economia, redistribuição de renda, meritocracia, e diversos outros. Ou seja, apesar de ser uma medida puramente “numérica” e autodeclarada, a escala tem um conteúdo substantivo relevante, o que sugere que capta razoavelmente bem a ideia de ideologia. Nesse mesmo esquema, Lula, Dilma e Temer, quando avaliados na época em que estavam no poder, foram localizados muito próximos aos seus respectivos partidos. Lula nunca foi visto como extremista.
A figura abaixo mostra como os partidos se situam nessa escala ideológica. Os pontos indicam a posição de cada partido estimada a partir de pesquisas com congressistas. As estimativas para cada partido estão dispostas cronologicamente de cima para baixo. As barras indicam os intervalos de confiança das estimativas, e a flecha vermelha ilustra a movimentação de cada partido ao longo do tempo.:
Nota metodológica: As pesquisas foram realizadas a partir de 1990, uma vez por legislatura, nas últimas 8 legislaturas. Alguns partidos não existiam, ou não foram avaliados em todas as edições das pesquisas. Sobre as mudanças nos nomes dos partidos: DEM inclui estimativas do o antigo PFL; PP dos antigos PDS e PPB; CID, dos antigos PPS e PCB; e PL do antigo PR. Depois da última pesquisa o PMDB virou MDB. Detalhes sobre o método de estimação e os dados utilizados podem ser obtidos em https://dataverse.harvard.edu/dataverse/bls.
Embora haja bastante estabilidade no posicionamento da maioria dos partidos, observa-se movimentos mais intensos em alguns partidos como o Cidadania (ex-PPS e PCB) e PSDB, bem como um processo de convergência gradual das posições até 2005. Isso quer dizer que, nesse período, as diferenças entre as posições ideológicas dos partidos diminuíram, e a maioria dos partidos se moveu para o centro. Na primeira década do século, os novos temas se tornaram relevantes no espaço político. Num primeiro momento, não estavam completamente alinhados com as tradicionais distinções entre esquerda e direita; embora a esquerda tivesse começado a propor pautas identitárias, a direita ainda não havia se alinhado claramente com temas religiosos. A partir de 2005, no entanto, vemos um aumento da polarização, que coincide com o alinhamento dos novos temas com o tradicional eixo esquerda-direita.
Note-se, no entanto, que a última dessas pesquisas foi realizada em 2017, antes da ascensão de Bolsonaro e seu ingresso no PSL. É bastante provável que, caso tivéssemos estimado uma posição ideológica do PSL, que o partido apareceria à direita do DEM. A entrada de um partido extremista poderia não ter tido um grande impacto (como não tiveram as entradas do PSTU e do Psol), não tivesse o Bolsonaro vencido a eleição presidencial. Numa analogia imperfeita, pois não temos evidência empírica, a vitória de Bolsonaro é o equivalente de direita a uma impossível vitória eleitoral de Rui Costa Pimenta (PCO).
Voltando à evidência, a figura deixa claro que o DEM (ex-PFL) é um partido de direita. Tanto seus membros quanto seus pares e adversários em outros partidos o reconhecem como tal. Ele é, inclusive, uma espécie de âncora do sistema partidário brasileiro, sendo o partido cuja posição menos mudou no período. Não há acepção possível do termo “centro” que possa abarcar o DEM. Da mesma forma, o Centrão também não é de centro, embora o termo seja um pouco mais adequado do que classificar o DEM como opção de centro.
Pensando na disputa presidencial que já se anuncia, a ideia de que qualquer partido que não seja o PT ou ligado a Bolsonaro é de centro vem da confusão entre polarização ideológica e polarização do processo eleitoral. Durante quase trinta anos, as eleições presidenciais foram disputas entre o PT e o PSDB. Como esses partidos ocuparam durante esse tempo (e ainda ocupam) a centro-esquerda e a centro-direita do espectro ideológico brasileiro, a polarização eleitoral acompanhava a estrutura ideológica do sistema partidário, sendo, na prática, bastante equivalente.
Só que durante esse tempo o PT conseguiu fomentar identificação partidária com bastante sucesso, conquistando a simpatia de uma parcela significativa do eleitorado brasileiro. De forma curiosa, e talvez inesperada, o PSDB não logrou nada parecido. Ao invés do surgimento do “tucanismo” como contraste ao petismo, tivemos o desenvolvimento de uma identificação partidária negativa que hoje conhecemos hoje como “antipetismo”. O que é menos notado é que o antipetismo não é uma invenção de Bolsonaro, nem das jornadas de julho de 2013, nem da Lava Jato, embora estes tenham contribuído para a sua visibilidade e para mudanças importantes na dinâmica eleitoral. A figura abaixo mostra as porcentagens da população brasileira que se declararam petistas e antipetistas desde o final dos anos 1990, e deixa claro que o antipetismo evoluiu conjuntamente com o petismo, e de forma gradativa até muito recentemente.
A dinâmica eleitoral presidencial, por sua natureza majoritária, comporta poucos competidores, e esse número tende a dois. Dessa forma, a disputa eleitoral presidencial quase sempre será “polarizada” entre duas opções. Com a crise que culminou com a derrubada do PT do poder, o antipetismo acelerou seu crescimento. Com o desfalecimento do PSDB, o espaço do antipetismo ficou vago e foi eventualmente ocupado por Bolsonaro. Conjecturo, sem evidência, que opções menos ideologicamente radicais poderiam ter ocupado esse polo do espaço eleitoral. Se até 2014 os polos da disputa eleitoral estavam na centro-esquerda e centro-direita, em 2018 tivemos a mesma centro-esquerda polarizando com a extrema direita. A dinâmica eleitoral, no entanto, não mudou o conteúdo do que é representado por cada competidor. O PT continua sendo um partido de centro-esquerda, claramente democrático. O DEM não é um partido de centro, mas de direita, também democrático. O fato de que um dos polos eleitorais – em que pese não termos dados – esteja ocupado hoje pelas franjas da extrema direita do espaço político brasileiro não coloca os demais no centro ideológico. Nem faz dos eleitores radicais. Eleitores que não votariam no PT, votaram na opção contrária – como sempre o fizeram – só que a opção contrária, dessa vez, era extremista.
O amálgama eleitoral que elegeu Bolsonaro pode se desfazer. O seu componente extremista, de fato, é muito provavelmente pequeno. O voto evangélico ainda pode acompanhar Bolsonaro, mas o alinhamento de questões identitárias e econômicas não é automático e necessariamente natural; é produto do árduo trabalho de comunicação e organização de elites religiosas e políticas. Evangélicos não votavam em bloco para presidente nem eram um grupo particularmente antipetista até 2018. Se costumes e identidade se tornarem menos relevantes do que a economia, o bloco pode se desfazer. Os eleitores da direita e centro-direita mais tradicionais são, em grande parte, os eleitores de Bolsonaro arrependidos. Estes não formam um grupo grande o suficiente para vencer a eleição, como bem sabem Alckmin e Serra. Chamar qualquer candidato que não seja Bolsonaro de centro é parte de uma estratégia inteligente para ocupar o espaço antipetista com um novo amálgama, talvez agregando os eleitores que não se sentem confortáveis com a ideia de direita e que não querem o PT, e talvez prescindindo do segmento mais religioso. É uma tentativa de se formar uma coalizão pan-ideológica, numa espécie de versão brasileira de uma “grand coalition” registrada em diversos países multipartidários em algum momento de sua história.
Parece que já aceitamos nos referir a essa estratégia como a “criação de uma opção de centro”, ainda que realmente não o seja. A nomenclatura importa porque é parte da estratégia eleitoral para 2022. Não é evidente que o antipetismo será um catalisador tão forte de grupos díspares em 2022 quanto foi em 2018. O PT terá estado fora do poder por mais de seis anos e talvez existam tantos ou mais antibolsonaristas do que antipetistas – não sabemos. O uso do termo “centro” sinaliza uma tentativa da direita de se afastar de Bolsonaro, ao mesmo tempo que revela uma incerteza implícita sobre a possibilidade ou desejabilidade de se manter o alinhamento religioso sobreposto ao econômico, bem como um reconhecimento de que, sem esse componente, o termo “direita” não é um bom marketing eleitoral num país majoritariamente muito pobre.
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