Ilustração de Paula Cardoso sobre fotos/reprodução de internet
A polícia não pode tudo
Decisão do STJ obriga policial a gravar em áudio e vídeo autorização do morador para entrar numa casa
Decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) desta semana, a partir de ação proposta pela Defensoria Pública de São Paulo, determinou que caberá aos policiais provar que tiveram autorização para entrar na residência de um suspeito a fim buscar provas ou efetuar prisão, caso não tenham mandado judicial. Os ministros acolheram na íntegra o voto do relator, ministro Rogerio Schietti, no HC 598.051, estabelecendo que compete aos policiais responsáveis pela prisão registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, provando que a entrada na residência se deu sem coação. O colegiado fixou prazo de um ano para que as polícias adotem as providências para cumprir a determinação, tais como comprar equipamentos de gravação e treinar os policiais.
A decisão do STJ é um enorme avanço. De acordo com o direito à inviolabilidade previsto na Constituição Federal, a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é autorizada em casos de flagrante delito ou desastre, para prestar socorro ou com autorização do morador. É comum no entanto que, sob o pretexto de averiguar denúncia de tráfico de drogas ou outro ilícito, a polícia invada residências sem autorização prévia válida. Isso dá margem a uma série de ilegalidades e desrespeita direitos fundamentais.
Não dispomos de dados oficiais sobre o tema, mas é sabido que a polícia não entra em uma residência de bairro de classe média no meio da noite. Não ocorrem invasões de domicílio no Leblon ou nos Jardins. Essas ações invariavelmente ocorrem nas periferias e sob pretexto da apreensão de drogas. Como o tráfico de drogas é um crime permanente, é comum que os policiais justifiquem a entrada forçada no domicílio com base em denúncias anônimas, alegando o consentimento do morador, ainda que a ação tenha se dado no meio da noite e contado com policiais fortemente armados.
É razoável imaginar que, numa comunidade mais pobre, poucas pessoas se arriscariam a negar a entrada de policiais armados em suas casas no meio da noite, ainda mais considerando o perfil violento de parte das polícias brasileiras. Mesmo assim, o Judiciário vinha acolhendo as alegações de autorização, sem proporcionar maiores debates ou questionamentos a respeito de sua validade.
O que o acórdão do STJ finalmente estabelece é que ações policiais devem ter limites e que, no caso da entrada em domicílio, especificamente, não há que se acatar argumentações baseadas na mera suspeita ou nas tais denúncias anônimas sobre as quais, muitas vezes, nada se sabe. De acordo com a decisão, “o contexto fático, portanto, deve servir de suporte para justificar a ocorrência de uma das situações de flagrante que autorize a violação de domicílio”.
O Supremo Tribunal Federal já havia se debruçado sobre esse assunto ao concluir que a entrada em domicílio sem mandado judicial só é lícita quando amparada em fundadas razões. Não há, porém, manifestação do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre critérios determinantes da validade do consentimento do morador que, na prática, muitas vezes é fruto de intimidação.
A decisão do STJ inova fundamentalmente ao questionar a versão de que houve “autorização do morador” e derruba a possibilidade de que ela se sustente somente na palavra dos policiais que afirmam terem recebido essa autorização. Com o novo entendimento, é necessário que essa autorização seja revestida de formalidades que vão além da documentação escrita, já que exige o STJ que ela seja registrada em vídeo e áudio.
Em seu conjunto, a decisão citada trouxe uma série de outros elementos que merecem ser ressaltados quando pensamos que, em uma democracia, há que se definir limites claros para a atuação das polícias.
Ao reforçar a tese da priorização do mandado judicial como “meio ordinário e seguro para o afastamento do direito à inviolabilidade da morada”, o STJ acena, necessariamente, para a importância da investigação policial, que é o que sustenta a expedição desse tipo de ordem. Em um país em que boa parte das condenações judiciais se sustentam exclusivamente em flagrantes desacompanhados de provas técnicas ou outros elementos além de testemunhos e reconhecimentos pessoais muitas vezes questionáveis, um tribunal superior começar a refletir e discutir essas pautas é importantíssimo.
E, pensando no impacto da decisão na vida do policial que está na rua, a decisão se mostra igualmente importante, na medida em que estabelece limites claros ao procedimento policial, possibilitando maior segurança em sua atuação.
Em um país em que pouco se discute temas relacionados à profissionalização da atuação policial por meio da padronização de procedimentos operacionais, modernização de doutrinas e permeabilidade ao controle civil, o STJ vem promovendo uma pequena revolução – que, além da decisão recente, envolve também a deliberação que exige mandado judicial para a polícia acessar o celular por ocasião do flagrante e a decisão que reformula o reconhecimento pessoal, exigindo o cumprimento fiel do art. 226 do Código de Processo Penal.
Diversos temas, porém, seguem abertos e, mais cedo ou mais tarde, terão que ser enfrentados pelos tribunais superiores e pela sociedade em geral. Além de já ter passado da hora de se fixar minimamente o que vem a ser a tal “fundada suspeita” que cotidianamente alicerça as reiteradas abordagens policiais – muitas vezes violenta – de jovens negros nas periferias das grandes cidades de todo o país, estão cada vez mais fortes os alertas sobre o uso de tecnologias de reconhecimento facial que, por vezes, reforçam padrões racistas de controle social.
Em suma, a decisão do STJ torna mais claras as regras e limites da atuação policial, ao mesmo tempo em que determina a adoção de tecnologias que servirão como importante instrumento de proteção jurídica para os policiais. Em um país desigual e de tradição autoritária como o Brasil, nunca é demais lembrar que as polícias podem muito, mas não podem tudo.
É socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo pela FGV
É advogada, mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP e especialista em Gestão Pública pela ENAP. Foi secretária-adjunta de Segurança Pública do Distrito Federal e diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Consultora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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