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    Reprodução/Documentário Kátia, de Karla Holanda Crédito: Reprodução/Documentário Katya/Karla Holanda (2012)

depoimento

Política é coisa de trans

A história de Kátia Tapety, primeira travesti a ocupar um cargo político no Brasil

Kátia Tapety | 29 jun 2023_14h00
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Em 1992, na cidade de Colônia do Piauí – com 7253 mil habitantes, 300 km ao Sul de Teresina -, Kátia Tapety se tornou a primeira transexual eleita a um cargo político no Brasil. Foi reeleita outras duas vezes ao mesmo cargo e se tornou vice-prefeita na cidade, à época pelo Partido Popular Socialista (PPS). Quase três décadas após a eleição de Tapety, o Brasil elegeu pela primeira vez, em 2022, as duas primeiras deputadas federais transexuais do Brasil, as parlamentares Erika Hilton (PSol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Outras duas assembleias legislativas também elegeram suas primeiras representantes trans, no Sergipe e no Rio de Janeiro: Linda Brasil (Psol-SE) e Dani Balbi (PCdoB-RJ). Em 2012, Tapety teve sua história contada em um longa-metragem dirigido pela documentarista Karla Holanda. Aos 74 anos, aposentada, diz que abriu portas para que pessoas como ela pudessem concorrer a cargos políticos no país. E dispara: “Será que agora, no Brasil de 2023, também é loucura acreditar que um dia teremos uma travesti na Presidência?

Em depoimento a Vitória Pilar

Eu nasci no povoado de Colônia do Piauí, parte de Oeiras. Tudo era zona rural, com gente que vivia da plantação e dos animais. Passava o dia inteiro com a minha mãe, cuidando de porco, bode e galinha no quintal lá de casa. Naquela época, éramos nove filhos: sete homens, uma mulher e eu, que ninguém sabia dizer o que era. Numa tarde, quando eu já tinha mais de oito anos, minha mãe pediu ao meu pai que me mandasse para estudar em Oeiras. Todos os homens já tinham ido para a escola fazer o segundo grau, menos eu e minha irmã, que só estudamos até a terceira série. No caso dela, papai dizia que mulher não precisava de estudo. Quando mamãe fez o pedido pela minha educação, foi uma confusão. Papai disse que não me mandaria para a escola porque eu ia querer namorar os rapazes. 

Por muitos anos, papai tentou me esconder da porta de casa para trás. Não gostava da minha voz fina, do meu jeito de caminhar, nem da minha presença. Sempre que havia visitas em casa, e eu precisava passar pelos cômodos, tinha que atravessar correndo. Meu pai não gostava que ninguém me visse. Como se eu fosse um bicho com peste. Quando estávamos sozinhos, ele fazia questão de dizer em alto e bom som: “Homem que quer ser mulher tem que morrer.”

Passei a vida toda dentro de calças de pano e blusas que não fossem nem masculinas nem femininas. Quando sozinha, vestia as roupas da minha mãe e fazia penteado nos cabelos. Eu sempre soube que era Kátia, mas só me senti Kátia quando botei o primeiro vestido. Fiz isso depois de o papai falecer. Ele morreu sem me ver ser quem eu era. Se tivesse visto, talvez tivesse morrido só de desgosto. 

Apareci nas ruas de Colônia do Piauí andando de vestido, e comecei a pedir que me chamassem somente pelo nome que eu escolhi. Os vizinhos e amigos não demoraram a me chamar pelo nome feminino. O problema foram meus irmãos, que não queriam me aceitar. Hoje, só um irmão me chama de Kátia. Os outros me chamam pelo nome de batismo. Tem um que nunca mais falou comigo, finge que eu não existo. 

Como não pude estudar, acabei ficando na roça. Nossa família não era rica, mas tinha casa e terreno. Sempre dividi tudo o que tive: remédio, roupa, comida e enxada. Isso fez com que as pessoas me vissem como uma espécie de liderança comunitária. Lembro que não tinha consultório odontológico na cidade e levavam as crianças para eu arrancar os dentes de leite. As mães tinham confiança em mim. 

A Colônia do Piauí deixou de ser povoado de Oeiras em 1992 para virar cidade. Não demorou muito para pedirem que eu fosse vereadora, o que achei fabuloso. Parecia uma ironia do destino: eu, que passei a vida sendo escondida, agora ia representar o povo. 

Recebi das pessoas na rua o acolhimento que nunca tive em casa. Gente que me viu criança nunca perguntou por que eu era uma travesti. Para elas, parece que eu sempre fui Kátia. Quando fiz campanha, nas três vezes consecutivas, ganhei as eleições. Não esqueço nunca que, numa noite de campanha, os homens da cidade saíram me levando pelos braços, como se eu fosse uma cantora de show ou uma estrela de cinema. Tive que segurar o vestido com as mãos para não aparecer meus fundos. Fico me perguntando o que papai diria. 

No último mandato, virei presidente da Câmara de Vereadores da cidade. A maioria das pessoas que encontrei me tratam como gente, mas também encontrei preconceito. Certa vez, num comércio de Oeiras, o dono me chamou de “burra preta”. Me segurei para não chorar e falei umas poucas e boas antes de sair. Quando fui concorrer à vice-prefeitura, os opositores quiseram derrubar a nossa chapa argumentando que eu era analfabeta. É verdade que tive pouco estudo, mas aprendi a ler e escrever com uma professora que mamãe arranjou escondida de papai. Na sala de um juiz, em Oeiras, recitei e escrevi o hino da cidade para provar que eu sabia ler e escrever. Eles já sabiam que eu era capaz, mas queriam me menosprezar. Ver a cara deles inconformados foi melhor que ganhar a eleição. 

Eu tinha noção de que estava quebrando alguma barreira por saber que os meus votos não eram apenas de gays, nem lésbicas, nem pessoas trans ou travestis. Ver pessoas que não eram como eu me apoiando e confiando o voto em mim pode ter alavancado que outras travestis também pudessem se candidatar. Hoje, aos 74 anos, sentar em frente à televisão e ver deputadas como Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) protagonizando cargos de deputadas federais é dar a certeza que vem muito mais outras de nós no futuro. 

Chamei a atenção do país e, em 1995, me convidaram para dar uma entrevista no programa do Jô Soares. Foi naquele estúdio que eu me dei conta de que estava começando a representar uma geração de pessoas trans que antes não eram ouvidas e, agora, enxergavam em mim uma perspectiva de futuro. 

Poucos dias depois da entrevista, recebi uma ligação da Jovanna Baby, considerada a fundadora do Movimento Organizado de Travestis e Transexuais no Brasil. Ela disse que queria conhecer a mulher preta e sertaneja que se tornou vereadora no Piauí. Tomei um susto porque eu já conhecia a Jovanna de nome e de legado, então para mim foi uma honra. Não imaginava que, depois de tanto sofrer na vida por ser quem eu era, ia encontrar gente igual a mim que pudesse dizer que estava se inspirando na minha história. 

Foi muito por causa de mim que a Jovanna Baby veio morar no Piauí, lá na cidade de Picos. Criamos vários projetos bonitos para as nossas iguais no sertão. Antes, a gente sabia de um monte de casos de travestis que foram apedrejadas até a morte em pequenas cidades aqui do estado. Ainda na década de 1990, a gente começou a bater na tecla da assistência social e da segurança pública. A solução foi fazer zuada na rua: se uma travesti fosse morta, a gente ocupava a cidade até darem um jeito de achar o assassino. Em junho, era sagrado: tínhamos que organizar uma Parada Gay, com muita música e bandeiras de arco-íris. Eu acho que é por essa luta que a gente fez lá atrás que, hoje, o medo não é maior do que um dia já foi. 

Quando terminei meu mandato de vice-prefeita, quis saber mais do que estava acontecendo em outros lugares do Brasil. Não quis disputar outros cargos, o meu desejo era estar perto das pessoas como eu para saber o que pensavam e como estavam lutando. Participei de encontros nacionais e regionais da comunidade LGBTQIA+ e achava coisa de outro mundo ver como a luta organizada pela causa das travestis e transexuais estava ganhando fôlego. As pessoas me achavam um máximo por ter sido vereadora de uma região onde tudo é dividido como coisa de mulher e coisa de homem. Parece que eu tinha chegado para mostrar que política também podia ser coisa de travesti.

Talvez fosse loucura dizer, há cinquenta anos, que a primeira vereadora travesti eleita no país seria uma negra, pobre e do sertão, mas eu aconteci. Quando deixei a política, ainda era cedo demais para dizer que as travestis chegariam à Câmara Federal, lá em Brasília. Mas elas chegaram e ainda vão chegar muito mais. Será que agora, no Brasil de 2023, também é loucura acreditar que um dia teremos uma travesti na Presidência? Estamos existindo, cada vez mais. Tudo pode acontecer. 

 

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